sexta-feira, agosto 24

AMARelinha

Desenhado a giz na calçada o jogo da amarelinha escancara a palavra céu. Suas pernas pulam casa por casa movimentando em harmonia o corpo no jogar/pegar a pedra. O sol se reflete no concreto secando o chão da chuva. Ao seu lado, as colegas esperam a vez de jogar.
A calçada é sua. Naquela rua de pedras e buracos com canteiros de lixo, sua casa é das poucas que tem calçada, trabalho do pai pedreiro. Sobre ela reúnem-se diariamente as amigas após o horário escolar. O giz amarelo, tirado da caixa da professora, amplia a mágica no desejo de ganhar o céu. Ali, pular leva ao céu; cair, ao inferno, palavra riscada com o giz vermelho tirado da mesma caixa.
Tem oito anos e o mundo é todo seu. Escuta todo dia em casa que a vida não é fácil. O significado só pode ser porque se tem pouco dinheiro, o pai nem sempre tem trabalho e a roupa que a mãe lava das donas lá do outro bairro cada dia fica menos, porque parece que as senhoras não têm mais dinheiro pra pagar e outras não confiam em lavadeiras e mandam para as lavanderias chiques, onde tem lavagem a seco. Para lavar não é preciso molhar?
Todo dia aproveita a merenda da escola para comer e repetir seja lá o que for servido, pois assim come menos em casa, deixando mais para os outros dois irmãos ainda sem idade escolar. Fora a merenda, a escola é uma agonia, não entende o que a professora fala, aqueles desenhos lá no quadro não compreende direito, mas faz tudo bem bonitinho no caderno para não levar grito. Na hora de ler, é um danado de aperreio, gaguejando as letras, às vezes não sabe nem o que disse. Mas, vai aprender, vai mostrar pra aquela sabichona da sala que vai ler de carreirinha.
Distraída, erra o quadrado. Encosta-se na parede da casa, dando vez à colega no ritmo de pegar/jogar a pedra. São quase seis horas. Dali a pouco todas as mães vão chamá-las para tomar café, e brincadeira só amanhã, pois ninguém fica na rua à noite. De uns tempos pra cá, quase toda noite zunido de bala vai e vem entre polícia e aqueles homens lá de cima da ladeira. Deles só sabe o que entreouve, porque isso não é conversa de criança. Dizem que são bandidos, vendem drogas, armas. Se são bandidos, por que não vivem na cadeia em vez de correr, apitar com os carrões para lá e pra cá na maior carreira?
Ao observar a amiga pular para alcançar o céu, um zunido alto corta o ar, tirando Magda das suas inocentes perguntas. De início pensa que Clarinha pisou forte demais e caiu, mas ao se aproximar vê um fio vermelho manchando a camiseta. Os gritos se misturam a barulho de carros passando como raios pela rua. Bandido na frente, polícia atrás. Inútil. Magda não compreende, mas sabe que a amiga não vai atender o chamado da mãe, nem caminhar com ela todos os dias para a escola. Não vai jogar amarelinha, tentando alcançar o céu, temendo o inferno. Aquele círculo tracejado em vermelho na calçada já a alcançou.
Desenhado a giz na calçada o jogo da vida escancara a palavra injustiça, o giz amarelo se dissolvendo, misturando-se ao vermelho inocente. Nunca mais amarelinha. Agora Magda sabe que a vida não é fácil tem outro sentido.

quinta-feira, agosto 9

Pé de jurema

É um homem vazio. Depois de um sono inquieto, esse é o primeiro pensamento que vem à cabeça de Paulo: sou um homem oco, perdido. Isso o faz rir, pois se lembra imediatamente do verso "eu sou aquele amante à moda antiga, do tipo que ainda manda flores" da música de Roberto Carlos, modelo que sonhava seguir. No meio do sorriso, uma tristeza lhe invade a alma. Uma saudade que insiste em invadir-lhe o coração turva os olhos, e deseja nessa tarde chuvosa ficar à deriva na cama, lembrando um passado, coisas que poderiam ter sido.
Levanta-se, e a água fria do chuveiro alivia um pouco a sensação de peso. Sabe que tem de ir. Os colegas o esperam para uma noite de sábado. Não pode escolher uma roupa qualquer, por isso quantas tire do armário, quantas coloca sobre a cama, desprezando a combinação de cores, tentando visualizar o melhor efeito.
Homem vazio. A idéia fica martelando em sua cabeça. O vazio se instalou desde aquele longínquo dia quando aos doze anos saiu de casa levando a pouca roupa num velho saco de papel de embrulho. A surra do pai fora o motivo e, ainda sem saber, o princípio do homem que se tornaria. Sob o abrigo dos olhos e carinhos da avó crescera, freqüentando a escola, onde comia aquela mistura sem sal, sem sabor, sem nome.
Lembra-se nitidamente do dia que o pai fora buscá-lo e do pé de jurema onde se escondera, teimando em não voltar. Não voltou. E o que era visto como teimosia se transformou em determinação em sair daquele lugar, ser alguém, mostrar que não nascera para vida de sítio submetido às lamboradas, às ordens do pai. Viera para a capital onde até hoje mora. E a cidade grande o esperava para mostrar-lhe as gentes, as ruas, as vilas, as garras.
Na vila conhecera uma espécie diferente. Aquela gente perto dos seus conhecidos lá do sítio formava uma fauna humana que causaria um olhar atravessado do pai, uma censura muda dos irmãos tão tradicionais, para quem todos os diferentes eram errados, pecadores sem salvação. Espremido numa pequena casa conjugada entre um viciado e um travesti, trabalhava, estudava, estudava, trabalhava e só comia bem até o décimo dia do mês, pois o aluguel lhe levava a metade do salário. O mês passava entre bolachas secas engolidas com água, pastéis na hora do almoço. À noite ao chegar do colégio encontrava a solidariedade do vizinho travesti que muitas vezes lhe deu um prato de macarrão, uma sopa.
Aquela amizade no início lhe assustara. As estórias interioranas ecoavam em sua cabeça, criando um medo em Paulo muito maior do que a curiosidade de saber como era a vida do novo colega. Poderia um desconhecido lhe ajudar sem querer-lhe o corpo? Tal era a fama do travesti no bairro.
Não demorou muito para deixar a escola, pois trabalhava ou morria de fome. Ficou trabalhando em dois lugares ao mesmo tempo, sendo pau-mandado, pau pra toda obra. À noite, chegava morto em casa, juntando-se a Xavier, nome de guerra do colega travesti, na cerveja, no macarrão de fim de noite, nos churrascos de fim de semana à custa dos clientes ricos que em bares privados faziam suas festas. O colega, ganhando muito mais do que ele, insistia para que ele deixasse de trabalhar e formassem uma dupla na noite. Dizia não ter perigo nem de tiros nem de vírus.
Mas ele não acreditava. A figura do velho padre naquela igreja lá do fim do mundo onde morara assombrava seus pensamentos com a imagem do inferno, queimando-se vivo em chamas em meio a risadas. Melhor não arriscar em vírus nem tiro muito menos a danação.
Os estudos ficaram para trás pela idade, pela falta de tempo e agora pela falta de vontade em mudar. De trabalho em trabalho, amealhara o suficiente para comprar um bar, que depois se transformara em outro e mais outro, até que vieram os estrangeiros querendo investir no que hoje é a boate mais badalada da cidade. Os bens materiais lhe enchem a garagem, o guarda-roupa, a cama e a mesa, até mesmo os hotéis luxuosos quando viaja. Esse mesmo apego lhe tirou o medo de vírus, de tiros e, principalmente, da danação. Não precisa mais disso, pois tem sua própria danação, sua própria arma e do vírus sabe que é apenas uma questão de tempo. A tudo dera adeus, mesmo que lá em algum recanto sinta saudade do menino que foi e do homem que sonhara ser.
Sabe-se vazio sem salvação. Sabe que onde está não há mais pé de jurema algum.

quarta-feira, agosto 1

Turn, turn, turn

To everything - turn, turn, turn/There is a season - turn, turn, turn
And a time for every purpose under heaven
A time to be born, a time to die/A time to plant, a time to reap
A time to kill, a time to heal/A time to laugh, a time to weep
To everything - turn, turn, turn/There is a season - turn, turn, turn
And a time for every purpose under heaven
A time to build up, a time to break down/A time to dance, a time to mourn
A time to cast away stones/A time to gather stones together
To everything - turn, turn, turn/There is a season - turn, turn, turn
And a time for every purpose under heaven
A time of war, a time of peace/A time of love, a time of hate
A time you may embrace/A time to refrain from embracing
To everything - turn, turn, turn/There is a season - turn, turn, turn
And a time for every purpose under heaven
A time to gain, a time to lose/A time to rend, a time to sew
A time to love, a time to hate/A time of peace, I swear it's not too late!
O texto é uma música lançada em 1965 pelo grupo de rock
The Byrds. Não sei nada do grupo, escutei a música meio por acaso e ela me chamou a atenção por apresentar aquele ritmo/mensagem meio Bob Dylan/Joan Baez - ícones dos anos rebeldes. Ao descobrir a letra original, achei apropriada para hoje (e não me perguntem o porquê!).
Ao escrever isso, a rádio on line – no canal classic hits - coloca novamente o grupo, agora cantando
Mr. Tambourine Man.
Se tiverem curiosidade, vejam o grupo e seus fãs dançantes há 40 anos atrás. Que singelo!