domingo, setembro 30

Janela adentro

A poltrona colocada frente à janela mostra uma rua sossegada, pouco movimento de carros e gente. Nela, Zuleide observa a rua sem ver. Seus olhos se apertam devido a claridade que vem de fora; ouvidos surdos ao vozerio que vem do interior da casa. Filhos e netos falam animados da festa que há um mês preparam com a ansiedade de casamento. A festa vai comemorar seu aniversário, mas pouco ligam para a aniversariante. Fará 85 anos.
Não sabe se fala com Miguel ou se espera ele se aproximar. A vergonha de ser falada inibe sua vontade e fica sentada na praça, um olho lá, meio ouvido aqui. E se ele não se decidir? Esperar agoniada outro domingo, passar outra semana ouvindo em casa o pai elogiar o governo de Getúlio Vargas, fazendo comida, lavando roupa no rio bacia na cabeça? Não, tem que fazer alguma coisa. Tem 15 anos e muita pressa em viver. Não vai ficar pra titia de jeito nenhum. Se Miguel não se mexer, o jeito é ficar falada.
As imagens são takes na cabeça de Zuleide. As conversas no portão vigiadas pela irmã mais velha, a timidez de Miguel, os dois anos arrumando-se para casar, a convivência difícil com a sogra até irem para uma casa só deles, o nascimento de Paulo Neto. Aquelas primeiras dores rasgando-lhe as entranhas nunca foram esquecidas, embora seguidas de mais quatro. Criara todos os filhos, três homens, duas mulheres, praticamente sozinha de cidade em cidade quando o marido encasquetava de mudar-se no comércio de comprar e vender tudo em que colocasse as mãos. Primeiro, foram as viagens que os afastaram; depois, as mulheres. Onde ficara aquele rapaz tímido, carinhoso e que esperara suas iniciativas?
O som das conversas se mistura ao som interno de Dona Zuleide. Ao virar-se na cadeira, vê Paulo Neto guardando umas cervejas na geladeira e mais uma vez vê o falecido marido naquele rosto cuspido e escarrado tal como dizem. Tem hoje a mesma idade do pai quando morreu vítima de um ataque cardíaco que o fulminou na casa da amante. Remexe-se inquieta na cadeira e grita com o filho, chamando-o de Miguel, reclamando que ele só vive com as mulheres, que não sabe dá valor à família.
A poltrona colocada frente à janela mostra um jardim florido, telhados baixos, casas e gente conhecidas. A boca saliva da umbuzada com leite tirado na hora, o trem chegando na estação parecendo trovão, o barulho do jepp de Miguel aproximando-se pela rua preparando-se para nova briga ou nova mudança. Perdera a noção de em quantas casas vivera, a quanto tivera que se fingir de cega e surda na esperança do amor e no compromisso perante Deus e os homens. Na sombra crescera ritmando a vida dos filhos e a de si própria nas longas ausências, discussões, dissimulações. Falada não ficaria!
Sabe que preparam seu aniversário, isso não esquecera. Ninguém lhe pede opinião para nada, a empregada rodeando-lhe pra ver se precisa de alguma coisa, um filho morando em outro país, outro sob a terra vítima de acidente. As filhas indo e vindo na vida como passageiros em estações. Ora fica na casa de um, ora na casa de outro, dividindo-se no trabalho que dá a cada um, a paga pelo que fez. O filho da neta mais velha é a única alegria que tem. Não é mais mãe nem avó. É Bisa. É velha. Não pensa na vida nem na morte. Às vezes acha até que nem pensa, as imagens se atropelando na cabeça, dando-lhe o medo da loucura. Aqueles remédios de cores e formatos variados devem lhe causar toda essa confusão. Se os alcançasse na prateleira lá de cima onde os colocam, jogava todos na privada. Mas, não tem tamanho; durante toda a vida tivera altura. Hoje, nem isso!
(PS.: A segunda foto foi gentilmente cedida por Rosa Santana, amiga orkuteira de Goiânia. Obrigada, professora!)

terça-feira, setembro 25

LeTRitude

Depois de vários meses, terminei a leitura do livro "A menina que roubava livros" do australiano Markus Zusac. Mesmo gostando da narrativa, não sei por que demorei tanto para concluir sua leitura, atropelando-a com outros livros. A estrutura do livro é soberba, uma aula de teoria literária para os que acreditam em Paulo Coelho como o mago das letras neste século!
Não há uma temática nova. Relatos ficcionais ou não sobre a vida nos países em guerras, sejam elas as de agora ou as de antanho, proliferam aos milhares. O que o nazismo causou à população mundial, notadamente à européia, e amargamente aos judeus e às minorias, sempre será um assombro e a personalidade de Hitler já rendeu tratados tanto sócio-políticos como psicanalíticos.

O fato de a narradora ser a morte não é assombroso, embora seja inusitado. E aí reside o primeiro mérito do livro: não adianta correr para as inovações tecno-científicas em busca de elixires da imortalidade, um dia ela virá e nos colocará sobre os ombros, percebendo que cores temos, pois, em suas próprias palavras: "em algum ponto do tempo, eu me erguerei sobre você, com toda a cordialidade possível. Sua alma estará em meus braços." Assim, "Lasciate ogne speranza, voi ch'intrate". No entanto, tratar a morte como coleguinha nem pensar! E acredito que o livro não teve a pretensão de suscitar uma reflexão sobre a morte, pois disso filósofos tratam há séculos. A vida não nos torna indiferentes à morte, mas é melhor pensá-la longe, distante, de preferência apenas passeando nas alamedas do Pere-Lachaise.
O livro tem muitos atrativos. Não suaviza a dramaticidade da guerra, mas ridiculariza Hitler, "um homenzinho estranho que decidiu três detalhes importantes sobre sua vida", os quais foram repartir o cabelo de modo ridículo, usar um bigode igualmente ridículo, dominar o mundo, o que não foi nada ridículo, sabendo o que aconteceu depois dessa idéia. Numa pequena fábula – lindamente narrada por um dos personagens – o sucesso do Führer se deveu a sua plantação de palavras, jogadas todos os dias árvores abaixo pelos sacudidores de palavras, formando um grande exército de ouvintes, seguidores. Até que um dia uma outra semente – amizade – cresce, transformando-se em árvore, dominando todas as demais. (Para saber o final, é melhor vocês lerem o livro!). Os horrores da guerra não são solucionados por amizade, amor, solidariedade, mas são, sim, amenizados por sentimentos assim, pois mostram que não há exclusivamente monstros à solta.
O livro tem as mais ricas metáforas que li esse ano em qualquer publicação, tornando-se sinestésico, pois sua linguagem suscita cores, gostos, imagens. Como não se deliciar lendo que "a empolgação pôs-se de pé dentro dela", "o rosto... parecia ter as venezianas fechadas", "um sorriso de papelão", "conseguiu inserir as palavras pela brecha do vão da porta"? A linguagem é um personagem à parte, tão ou mais fascinante do que a própria narrativa.
No livro há uma crítica sutil aos que pelas atrocidades do nazismo condenaram todo o povo alemão, aos que negam que muitos ficaram sem opção de reagir. Reagir era morrer, visto que o regime não admitia controvérsias. Como no livro, deve ter havido inúmeras famílias que ficaram à beira de um ataque de nervos porque esconderam ou ajudaram judeus de alguma forma, porque não quiseram ser alemães de carteirinha do III Reich. A narrativa é um libelo a uma solidariedade prática, seca, às vezes até mascarada pela indiferença, mas extremamente necessária à situação por que impregnada de pequenos gestos que fazem a diferença quando no caos.
É um livro para ser relido, marcado em vários trechos. É uma bela história de vida, mesmo que tenhamos muito comumente para os nossos semelhantes a mesma idéia que a morte tem: "Os seres humanos me assombram".

Livros também me assombram!

sexta-feira, setembro 7

ViSÕes

Ao seu redor várias peças, chaves, martelo, alicates, parafusos e fios amarelo, azul, verde. Sobre a mesa, intacto o controle remoto abastecido com duas potentes pilhas ao lado da caixa vazia onde antes existia um televisor. Estendera no chão uma lona vermelha para que nada se espalhasse e se perdesse pela sala. Aproveita que está sozinho para pôr em prática uma idéia que há dias formiga em sua cabeça. Sua única diversão é a televisão, agora que pouco sai de casa. Não importa a qualidade dos programas, o que lhe interessa são as imagens. Não precisa mais do som agora que uma surdez faz ninho em seus ouvidos. Muda de posição, apoiando-se na parede, pega o capacete que pedira ao neto motoqueiro e lembrando-se da antiga profissão de técnico eletrônico monta todos os circuitos e com a pequena luz azulada solda uma peça na outra. Feito, desarma a oficina improvisada, guarda as ferramentas. Senta-se na poltrona, pega o controle remoto, ajusta o capacete na cabeça. Fecha os olhos e aciona o controle. Sua cabeça é instantaneamente inundada. Não precisa mais brigar para ter a televisão só para si.
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Deitado no chão contempla as formigas nos espaços do rodapé quebrado. Uma formiga vai, outra vem, batem-se e prosseguem. Espicha os olhos, mas não consegue ver o que cada uma transporta. Coloca a mão dos seus quatro anos espalmada no chão na tentativa de impedir o caminho, mas as formigas lhe rodeiam e passam. Pega no bolso do short os óculos tirados da avó enquanto ela dormia, põe sobre o nariz, mas não vê maior as formigas. De repente, vê um carro preto numa estrada poeirenta passando ao lado de vacas. Assustado, levanta-se de um pulo, livrando-se do carro e das vacas. Nunca vira aquele carro, muito menos vacas passeando nas ruas. No pulo, os óculos caíram-lhe do rosto. Olha em volta desconfiado, mas continua sozinho ali, os barulhos presos na cozinha. Pega os óculos e, de olhos fechados, temeroso da visão desabalada do carro, põe aquelas lentes que dão ao seu infantil rosto um aspecto palhaço. Deitado como antes, abre os olhos e vê o carro continuando na mesma estrada, as vacas pastando. A avó sentada no banco ao lado do motorista exibe o cabelo preto e sorri ao homem que dirige. Na tentativa de enxergar melhor, encosta a cabeça na parede, sentindo-a como chiclete fazendo bola. Assustado, levanta-se de um pulo, livrando-se da poeira e das vacas, gritando aos avós que parem o carro e levem-no.