sábado, novembro 24

Miserere

Sentado sobre o muro, pernas balançando, observa a rua. Com gesto de cinema, muda a aba do boné para trás. A luz do sol confere ao rosto do garoto uma alegoria de pierrô. Camiseta, da bermuda larga sobressaem as pernas compridas balançantes, nervosas sobre o muro. Espera.
O muro não é tão alto. Em pé na calçada, bastou-lhe um impulso para alcançá-lo. Em casa, os irmãos assistem a desenho animado, a mãe prepara o almoço. Seus onze anos parecem pesar-lhe no olhar perdido no fim da rua. Quando pensa na vida, não sabe se pensa na vida. A maturidade não lhe chega a tanto. Olhar fixo na rua lá embaixo muda seu pensar para um prédio em construção, um carro de mão pesado de areia, barro, cimento no movimento de tábua acima, tábua abaixo. Um homem suado, boné do time vermelho e negro, camisa aberta.
Antes da escola, levava a marmita ao pai. Pegava ônibus, passava por baixo da roleta e se tinha lugar, sentava-se à janela. A cidade é linda, a avenida correndo perto do mar, aquele vento no rosto. Nem se lembrava de casa, de livros, cadernos, queria ser marinheiro e viajar naquele navio. Todos os dias ida e vinda. O pai orgulhoso de ele já andar sozinho, freqüentar a escola para ter um futuro, não quer o filho comendo cimento, respirando cal.
Quando não tinha aula, ficava mais tempo na construção. Com o carrinho que levara, as tábuas eram pistas de corrida; montes de areia, os obstáculos que faziam o carro voar; as telhas, escuros túneis. O amigo do pai lhe dera um carrão com controle remoto e a brincadeira se tornara melhor. Fazia aquela miniatura de ferrari correr, bater, dá ré com velocidade, girando pra lá e pra cá. Esquecia o mar e sonhava-se piloto de Fórmula 1.
O pai trabalha até o meio-dia do sábado. Domingo é dia de praia, tão perto que vão de bicicleta, sol queimando, pelada na beira d'água, ginga com tapioca. O amigo do pai compra picolé, pipoca, brinca n'água no meio das crianças. É cheio de moda, em todas passa bronzeador sob as graças do pai que manga do colega sem filhos.
Sentado no caixote observava o pai comer da marmita, quando começou a se sentir mal, correndo pra trás dos tapumes. Foi aqueles pastéis, tem certeza. O Deda correra, segurando-o, apoiando-lhe a barriga. Além do mal estar, sentiu outra coisa espinhando-lhe as pernas. Ergueu-se rápido e quis correr. Deda o puxara e dissera para não ter medo. Entregou-lhe dinheiro para sarar e nada de contar ao pai que pode perder o emprego. É segredo deles.
Quando entra no ônibus só pensa naquele navio, pois quebrou o carrão que ganhara. Quer ficar perto do pai, mas ele manda-o ao andar de cima com Deda onde a vista é bonita. De lá não vê nada, as pernas querendo derrubá-lo de tanto tremor. No caminho dá a moeda ao mendigo. Na escola não escuta nada que a professora diz, na hora do recreio danou o murro em Pedrinho que veio tirar onda. Vai de castigo, em casa ainda tem mais, a boca fechada, os olhos queimando de sal. É João e Maria perdido na floresta.
Ele diz que não quer ir deixar a marmita, mas a mãe diz que vai e acabou-se a estória. Senta-se à janela e o mar parece chuva forte na calçada. O pai briga pelas notas vermelhas na escola, pedindo que Deda dê conselhos a esse menino que de uma hora pra outra não liga mais pra nada, parece doente, toda noite acorda gritando e nada diz. O amigo pede calma e leva o menino pra conversar nos andaimes, puxa sua cabeça sobre o colo e alisa-lhe os cabelos. Agora vai ser diferente, é só um carinho, depois mal respira sob o peso da mão naufragando. Tosse e vomita. Desce feito bala, cego, surdo. Doído.
É domingo, dia de praia. Espera. Com gesto de cinema, pula do muro ao ver subindo a rua um homem suado, boné do time vermelho e negro, camisa aberta. Corre, corre, dobra na segunda esquina e entra. O que lhe fizeram tem um nome difícil, ele viu ontem na reportagem da televisão, mas não esqueceu e chega com ele na ponta da língua na frente do polícia.

terça-feira, novembro 13

De escritos e fogueiras

Não tenho lembrança de quando comecei a escrever, mas foi aí por volta dos 12 anos. Era um caderno tipo brochura, capa verde, pequeno e eu escrevia só de um lado da folha. Achava ruim escrever no verso. Usava caneta e achava o máximo, escrevendo com cuidado redobrado para não precisar apagar. Minha letra não era semelhante com a que tenho hoje; eu treinava arduamente para imitar a letra de uma professora da quarta série que tinha uma letra desenhada, não era feita à mão de tão perfeita. Claro que não conseguia fazer igual. Anos depois mudar a letra foi o primeiro sinal de identidade consciente: comecei a colocar letras maiúsculas no meio da palavra, coisa que faço até hoje e dando aula era a primeira lição aos meus alunos: não escrevam como eu; esta letra colocada aqui é um erro! Inútil! Nem eu deixei de escrever assim, tampouco livrei alguns de pegarem a mania da professora!
Eu escrevia de tudo. Passou na cabeça, pousou no papel. Não deixava ninguém ler, embora desconfiasse que minha mãe o fizesse quando eu não estava por perto. Depois tive certeza que ela lia, porque vinha com aquelas conversas arrodeadas, querendo saber o que eu nem falado tinha. Mãe é tudo igual, filha e privacidade são coisas que não combinam! Esse foi o primeiro AI-5 da minha vida. Após a confirmação das leituras desautorizadas, o que escrevia já tinha um certo encobrimento, metáforas sem saber que eram. Mas, continuei. De tanto escrever já não podia me dar ao luxo de fazê-lo só de um lado da folha, pois dinheiro para gastar com caderno era raro!
Da mesma forma que tenho as fases de escrever, tenho as fases de rasgar. Não tenho nada daquela época! Lá pelos 20 anos fiz a primeira fogueira do que tinha escrito, dos cartões, páginas de revistas, bilhetes que tinha guardado, enchendo gavetas. Não era mais aquela menina, não me reconheci naqueles escritos e não me doeu queimá-los. Embora não tivesse mais a preocupação de que alguém fosse ler, já casada, meu marido não mexia em nada que pertencesse só a mim, escrevia com um sensor interno, aloprada pela doença e morte do meu pai, pelas aulas no curso de Letras, o início na profissão, acreditando que autores, planos de aula, teorias literárias, freudianas iriam me dar a leitura necessária para a minha escrita. Depois, muito depois, compreendi que a leitura ajuda, mas a escrita é um ato solitário, tanto a que se faz no papel quanto a que se vai rabiscando pela vida!
O hábito de escrever me ancorava nas voltas do que eu pensava. A palavra escrita me dava a sensação de ter onde me segurar, caso eu me desequilibrasse (e quando eu desequilibrava!). Era o que eu refletia, extremamente subjetivo, mas era meu, era o meu rumo na tentativa de não errar, de não me deixar ser pega de surpresa. Paradoxalmente, as palavras me ensinaram a não temer o erro, a compreender que surpresas, além de inevitáveis, são necessárias! Escrever era uma catarse e dúvidas, tristezas, anseios jaziam no papel; vivas, as palavras denunciavam a vida de uma jovem senhora à beira de um ataque de nervos.
O ataque veio em 1985 em plena leitura de
A Insustentável Leveza do Ser, quando uma noite acordei e vi um tigre sentado à beira da cama, olhando-me, olhos de fogo na escuridão. O cão da estória do Kundera assumira duplamente o papel de uma cadela que eu tinha na época e dos medos a me arrodear. No dia seguinte, fui ao médico e pílulas goela abaixo dormi bem uns dias. Quando a primeira cartela terminou, joguei fora o resto e encarei o tigre. Entre outras coisas, fiz outra fogueira com os escritos e também não me doeu. Eu parecia cobra mudando de pele! (E o livro na minha estante conserva a sensação num poema escrito na última página!).
A cada mudança, uma fogueira queimava papéis e aquilo que andara me consumindo. Escrevia basicamente meu estado d'alma, um lado melancólico à moda Álvares de Azevedo. Não perdi o hábito de escrever, mudei a disposição, a forma, o meio. Quando bate a melancolia, hiberno e no máximo leio. Escrevo apenas dentro de mim, entrando e saindo de labirintos formados de palavras silenciosas. E quando me animo a escrever, vou nas palavras, nos personagens que construo, porque continuo cobra, mudando de pele e fazendo fogueiras. Hoje mostro o que escrevo, não sem alguma preocupação, pois esta se transformou nas metáforas conscientes que construo. Costurar os escritos em livro não me passa pela cabeça, embora dois livros digitados, encadernados com capa francesa existam: um de poemas com uma amiga; outro de crônicas memórias da minha infância dado ao meu sobrinho quando ele passou no vestibular para Jornalismo. Volumes únicos, eles (as pessoas e os livros) são donos dessas palavras, pois os originais não existem. O que escrevo no blog depois é impresso. Possivelmente material para a próxima fogueira.