segunda-feira, dezembro 29

DOIDera

Tem alma reclusa, dessas que se basta ao sentar e ler um livro em vez de sair, tomar cerveja no calorão da cidade. Os amigos não entendem e por não compreenderem pararam os convites para as noitadas. Só de ano em ano, aniversário, confraternização de natal é que se lembram de convidar-lhe. Cinema no mais das vezes vai sozinha que a companhia não é companhia para as horas que ela pode e também porque não é mais riso pra ninguém. A turma, a outra, é bem mais animada.

Há dias em que pensa que é melhor usar uma capa de invisível e passar pela vida sem ser vista. Mas, é teimosa e insiste em viver. Viver de teimosia é seu lema há um tempão, desde aquele dia longínquo quando se deu conta de que era só, mesmo que vivesse arrodeada de gente.

Já tentou, bem que tentou se livrar dessa sensação, mas não conseguiu. Festa de casamento, nascimento de filho, enterros, formatura, tudo que junta gente só lhe faz aumentar a dor de se saber só. Quando adoece, adoece por inteiro, começando na cabeça e num crescendo pelo corpo que lhe diz que a solidão interna é mais forte e perene. É um diacho de vida.

Não sabe, e olha que faz tempo que nisso pensa, se escolheu viver assim ou se foi escolhida. Se foi escolhida, foi muito azar entre tantas gentes; se escolheu, é bem mais doida do que se pensa. Às vezes até que gosta porque não precisa dá satisfação a ninguém, esclarecendo isso, aquilo, explicar cansa. Às vezes aumenta a dor a uma dimensão que somente a teimosia lhe sustenta.

Outro dia, discutindo com uma amiga, esta lhe disse que o que ela chama de teimosia é apenas fé, a simples e velha fé pregada em todos os púlpitos que não mais freqüenta. Não concordou nem discordou da amiga, pois nem isso valia a pena. Aliás, bem pouca coisa vale a pena, aceita com uma dor indiferente as coisas que vão passando, ficando, passando, assim tipo navegar é preciso, viver não.

Esse estoicismo só é verdadeiro para quem não a conhece, pois na reclusão da alma sofre feito condenada por ser só.

Nem sabe mais as contas que fez enumerando as vezes em que fica em casa sábado, domingo, semanas à noite sem que o telefone toque uma única vez. A telefônica só lhe ver o dinheiro da assinatura básica e nem esses minutos são gastos. É claro que podia telefonar. E já o fez. E escutou que fulano tava doente, que sicrano tinha acabado o namoro e tava na maior depressão, que outra vivia no céu porque arranjara um namorado virtual, que Miguel isso, Noêmia aquilo, que todo mundo tava com problema, mas saía sempre para afogar as mágoas nos copos, nos corpos.

Como todo mundo ela também tem problemas, e eles estão se escondendo nas folhas dos livros que lê, na limpeza obsessiva que criou em casa – não pode ver poeira, nos seriados que na tv assiste, nas conversas – poucas – que mantém com alguns – poucos – estão escondidos até da pessoa que ama. Tá certo que essa pessoa nem se sabe tão amada, acha apenas que é um amorzinho de ocasião. Mas não, ela sabe que é o amor pra toda a vida, possivelmente o último amor que terá. Tem até ciúmes, ciúmes da exuberância do outro – que não acompanha, ciúme disfarçado, mal, que, no entanto, não atrapalha.

É de uma incoerência gritante ao expor o que sente, porque só fala bem sobre o que pensa. E pensa, repensa, é uma verdadeira roda gigante de palavras. Quando trabalhava – ainda trabalha, um pouco menos, mas ainda sim – encantava os colegas com os raciocínios rápidos, as informações atuais sobre quase tudo, até mesmo sobre o conflito no Oriente Médio. Hoje ainda se mantém informada, mas não tem ouvintes; quando tenta numa roda de conversa falar um tanto sobre as religiões que consagram Jerusalém, sobre a menina que roubava livros, ninguém nem ouve, querem lá saber. Só falam de novelas, big brother, a última briga da Piovani e coisas e tais.

É um caso perdido. Mas, de teimosia vive. E achando pouco, ama.



sábado, dezembro 20

EsPElhO EspeLHo meU

A faca desliza sem estranhamento. Um filete de sangue escorre, descobrindo a falta de realeza no vermelho que cai. Um impulso mais forte atravessa a pele causando um pequeno estremecimento. Não dor, um roçar mais quente. Acostumada, não se importa. Enfinca a ponta da faca, fazendo um semi-arco no braço, deixando um risco de sangue viscoso a escorrer. O alvor do pano se escurece no enxugar. Normal. Nada para ela é estranho.

Ninguém conhece esses traços que se misturam às veias das coxas, aos músculos das costas, às glândulas dos seios. Nua nunca se postara a ninguém, médico, amante. Só ao espelho se dá. E por causa dele começara a se lanhar em desespero à imagem refletida. Naquela hora aprendera a odiar seu corpo.

Não adiantava os vestidos moldados com desvelo que a mãe insistia em meter-lhe corpo afora. A lingerie comprada em grandes lojas, tecido que amaciava as mãos e punha-lhe fogo. Vestia obrigada e amuava-se calada e hirta na cadeira da sala à vista de todos. O silêncio lhe roendo por dentro, na cabeça de todos uma doida. De que adiantavam aqueles panos, se a carne era má e feia? Pra que tudo se a danação vivia dentro dela, forçando léguas? Des tá, dizia pra si, um dia verão!

A promessa nem mesmo lhe tinha sentido, pois não sabia o que fazer para descontar a raiva que lhe impregnava o viver. Olhar-se era o que lhe restava. A imagem era de um mar sem fim, o espelho parecia entronchar a moldura, querendo da parede se esvair. Se tivesse coragem, punha-se nua à frente de um médico pedindo que lhe arrancasse o excesso, deixando-a fina. A vergonha, no entanto, não lhe permite tal ousadia.

A casa se tornara um claustro. Há tempo deixara a escola, os encontros com as amigas. Contato só telefônico, mesmo assim com poucos. Como se mostrar larga ao ponto de mal caber numa cadeira? A imagem que via era grotesca, puxada por um guindaste para subir num ônibus, em automóvel qualquer, vítima de risos, olhares de repulsa, alguns até de pena.

Percebe que aos poucos uma inquietação se apodera da mãe. Olhares dissimulados, gavetas remexidas, sinais de uma vigilância disfarçada. Não se incomoda. Aprendera a esconder os sinais. Confiante, sabe que a mãe não lhe descobrirá os esconderijos onde seus utensílios de tortura são guardados, onde seus líquidos viscosos em fel são enterrados.

É preciso ter cuidado com o comer. Não pode se deixar convencer pela mãe que reclama da comida de pinto que jaz no prato. Todos os dias a cantilena à mesa lhe martela a necessidade de se alimentar bem, de se exercitar, que ela não está Moby Dick. Sabe de tudo isso, mas sucumbir àquele pudim é deixar mais disforme a imagem no espelho, é riscar mais sangue no corpo que a custo se mantém sobre os pés.

Aos poucos um cansaço toma conta de seu corpo, as pernas com vida própria se negam ao movimento, deixando-a prostrada na maior parte do tempo. Recusa o suco, o remédio, nega-se ao médico. Alucinações lhe atormentam e aos gritos pede para que retirem do quarto o espelho, onde se vê com tantas longitudes.

Alarmada ao ver os lanhos no corpo da filha, a mãe não compreende. O primeiro pensamento é de culpa pela cegueira em não ver o quanto a filha sofria. Na tentativa de remediar o que já parece definitivo, chama o médico. Basta um olhar para que o doutor se transforme em juiz decretando um fim. O espelho ainda no quarto atesta um corpo ludibriado pela ilusão de ser vasto, quando na cama repousa somente pele, ossos à vista.

domingo, dezembro 14

As tiMe goeS bY

Ainda quando estudava o antigo ginasial, uma professora de Português, interessada em que os alunos gostassem de ler e apreciassem os clássicos, passou como tarefa de avaliação uma redação sobre o texto AMOR MENINO (parte II do Sermão do Mandato – mas isso só soube muito depois já na faculdade) do Pe. Antonio Vieira.
Agora, imaginem a dificuldade de adolescentes nos idos final dos anos 60 em cumprir essa tarefa. O que sabíamos do amor? Nada. Do tempo muito menos. O amor era em preto e branco nas fotonovelas que eu comprava no sebo na banca da feira livre, hábito que era também o das minhas amigas, caso contrário não leríamos nada. Apesar dessas imagens de amor, não lembro se as conversas já rondavam assuntos de namoro, casamento. Acho que não, pois éramos àquela época imaturas para tais assuntos. O universo ainda girava em volta de livros, estudar para provas, sorvetes, ouvir música e meninos não faziam parte do grupo. Aliás, eram olhados com uma estranheza que beirava ao exílio.
Em casa não se falava de amor, da sua alquimia. Os pais raramente se beijavam ou se abraçavam publicamente, nem mesmo – ou principalmente – na presença dos filhos. O amor aparecia nos namoros que observávamos em nossas primas, irmãs
– no meu caso não, que não tenho irmã – e vizinhas mais velhas. E as vizinhas eram as secretamente invejadas, pois namoravam “descaradamente”, beijavam os namorados na rua sem a menor vergonha, saíam e entravam de carros com uma desfaçatez que os moralistas nomeavam-nas logo como filhas da outra (daí a inveja secreta, vá que também fôssemos nomeadas!).
Se não falavam entre si sobre o amor, nem rabiscavam para nós, crianças – aos olhos dos pais e parentes adultos não crescemos nunca. Uma aproximação de um colega já era uma ameaça em potencial, tanto que tratavam logo de afastar o dito cujo, ou bem pior – faziam com que nos afastássemos dele. Lembro nitidamente de um colega do quinto ano de admissão que uma tarde resolveu aparecer na minha casa sem ser para estudar. Só tive tempo de chegar à porta e minha mãe saltou lá da cozinha perguntando o que ele queria e no mesmo tom, acho que antes mesmo da resposta do Josué – esse era o nome do boy – mandá-lo embora. Ele foi e durante o resto do ano letivo não falou comigo, o que manteve enquanto estudávamos por quatro anos em outra escola e ainda na faculdade quando nos encontrávamos no campus universitário, adultos, eu, casada e ele ainda solteiro. Depois ele casou, virou físico e deve ter apagado o trauma (ou não, caetaneando).
Essa vigilância de minha mãe não valeu quando eu tinha quatorze anos, pois em plena Copa do Mundo de 70 eu ameaçava um namoro com um rapaz que até então tinha sido meu vizinho, mais velho do que eu onze anos (hoje seria assédio sexual, que coisa!). Para ele as restrições foram bem menores, tão menores que com ele casei mal completei dezoito anos. Aí é outra estória.
Se o amor era assim, o tempo era apenas o vagaroso passar das horas divididas entre escola, domingo marcado pela feira à porta de casa e escola dominical de manhã, arrumar casa, estudar, conversar na calçada, assistir novela não, que não tínhamos televisão. Tudo parecia muito longo, muito longe. O máximo do tempo que víamos era completar dezoito anos e entrar num cinema para ver filme adulto, poder beber nem que fosse um gole de vinho e ler abertamente aqueles livros considerados proibidos (Até hoje não sei por que, pois li muito antes dos dezoito anos e achei-os uma besteira e falo aqui especificamente da Nossa Vida Sexual do famoso autor Fritz Kahn, cujo exemplar vivia escondido na gaveta do guarda-roupa do meu primo mais velho, que morava vizinho a minha casa).
Ao contrário do amor, o tempo nos mostrou ser traiçoeiro quando em um intenso inverno, interior sob a ação de enchentes, estradas carregadas pelas águas, uma colega morreu afogada ao tentar atravessar um rio agarrando-se às cordas que serviam como uma ponte suspensa. Ela não agüentou o cansaço e caiu, sendo arrastada pelas águas. Nem a família nem nós da rua superamos de todo esse acontecimento, ainda mais que no decorrer do tempo vimos a família se desintegrar como conseqüência disso.
Passados tantos anos, não entendo de amor e muito menos de tempo, embora sinta e veja em mim mesma a ação dos dois. Já sorri, fui feliz, chorei e desanimei com os dois. Se posso conquistar um, é uma mera ilusão, pois o outro se atrela a esse enfraquecendo-o ou fortalecendo-o. Do que não aprendi, os dois me ensinaram que a vida é só uma e por isso mesmo deveríamos nascer velhos e aos poucos regredindo, aplicando o que sabemos, deixando pelo tempo a casca do que não nos serve para pequenos esquecer, morrer, renascer.
Mesmo com essa inversão, nem o amor, tampouco o tempo, conseguiria nos livrar desse ciclo de vida-morte que nos aprisiona contra nossa vontade. Na ânsia de ganhar tempo, perdemos muitas coisas e no medo de amar, perdemos muito tempo. Afinal, o
poeta é quem tinha razão, pois

"A vida é o dever que nós trouxemos para fazer em casa.
Quando se vê, já são seis horas!
Quando de vê, já é sexta-feira!
Quando se vê, já é natal...
Quando se vê, já terminou o ano...
Quando se vê perdemos o amor da nossa vida.
Quando se vê passaram 50 anos!
Agora é tarde demais para ser reprovado...
Se me fosse dado um dia, outra oportunidade, eu nem olhava o relógio.
Seguiria sempre em frente e iria jogando pelo caminho a casca dourada e inútil das horas...
Seguraria o amor que está a minha frente e diria que eu o amo...
E tem mais: não deixe de fazer algo de que gosta devido à falta de tempo.
Não deixe de ter pessoas ao seu lado por puro medo de ser feliz.
A única falta que terá será a desse tempo que, infelizmente, nunca mais voltará."

quarta-feira, dezembro 3

FaLtA de iDéiA

Eu gostaria de hoje ter chegado em casa com uma idéia quase acabada para aqui escrever. Há dias, muitos dias, que não escrevo. Não escrevo nada da minha cabeça, a não ser memorandos, ofícios, conclusões de análises de planilhas, letras burocráticas que não contém metáforas, poesia alguma.
Mas, a idéia não chegou comigo. São 21 horas e 23 minutos, fora do horário de verão, e não faz nem 30 minutos que cheguei em casa, pois hoje trabalhei até as 20 horas. Como já tinha jantado por lá mesmo, ao chegar tomei banho, comi uma goiaba e liguei o computador na vã esperança que de repente - como acontecido de outras vezes - a tal da inspiração começasse a me azucrinar o juízo, querendo pôr-se a descoberto. Qual o quê! Até agora só transpiração do baita calor que faz nesta Cidade do Sol.
Não tenho escrito, porém continuo lendo. Impregnada das letras de Mia Couto, fico mais apequinhada para escrever. O que será que se passa na cabeça dele especificamente ao escrever? Será que o livro se forma inteiro na cabeça ou vai se fazendo aos poucos, os personagens ganhando vida, ousando ter domínio sobre o escritor? Sei não.
Cada pessoa ao ler deixa o pensamento vagar de uma forma. Uns viajam nas paisagens descritas, visualizando espaços e personagens; outros imaginam formas de falar, os gestos dos personagens como se estes fossem pessoas que estivessem ali, postas bem a sua frente; alguns criam a realidade inteira, transpondo a ficção para o mundo real, ao ponto de se pegarem falando sozinhos, pensando no que leu como se tivesse de prosa com os personagens, até mesmo brigando com eles (às vezes até com o autor por ter "deixado" determinada coisa acontecer).
Os livros de Mia Couto suscitam essa capacidade de eu me ver ali no espaço e tempo dos personagens, visualizando-os naquelas situações, tentando compreender-lhes os sentidos que põem na vida. Neles residem uma procura contínua em manter a identidade em meio a tantas desilusões, destruições não só da terra, mas de um povo sofrido por tantas guerras. (Há no livro Terra Sonâmbula uma opinião sobre guerra, mas não vou me levantar para procurar - o livro não está aqui por perto - pois prefiro escrever de uma sentada só - literalmente).
Ao mesmo tempo que os livros desse moçambicano me fascinam pela capacidade lingüística, pela poesia que salta de sua prosa, pela consistência dos personagens bem criados, completamente verossímeis em suas ações e falas, também me inquietam por que não consigo apreender em sua totalidade a essência do povo que transita entre dois mundos, mistura de crendices (para nós) e racionalidades. Fico a imaginar o quanto há de ficção e de realidade naquilo que é contado.
E isto é que faz um livro ser um bom livro: o nos fazer pensar, inquietar-se à medida que se lê, quando ao terminá-lo ficamos com a sensação que aprendemos muito, que aqueles personagens não são meras invenções, mas gente que mora do outro lado do oceano.
Obs.: Obrigada a meu irmão e aos amigos do Errante por me apresentarem Mia Couto.


sexta-feira, agosto 15

Bem-me-quer, mal-me-quer

Ao perceber que o sonho cuidadosamente planejado era só seu; ao sentir no corpo o afastamento da paixão de Pedro; ao contar noites mal dormidas dominadas pela saudade, Alzira soube que nada mais lhe restava daquilo que era a sua vida. A vida que em casas separadas vivia com Pedro há quatro anos.
Passara o tempo “de tudo ao meu amor serei atento”. Agora, tempo de brumas, de mãos espalmadas segurando o espanto, espumas de repente, “não mais que de repente”. Bem que não fora assim tão de repente; mas, surda e cega, pensara que aqueles sinais eram apenas isto: sinais, crise passageira. Enganara-se, redondamente se enganara. E o resultado é este que se posta bem aí a sua frente, remediado está.
Da caixa escondida no fundo do guarda-roupa retira o que sobrara, papéis amarelados com o amor escrito em mau português, letra miúda, recortes de poemas entre corações desenhados. Até mesmo uma peça íntima vermelha no meio do papel manteiga recorda-lhe os tempos. Num ímpeto, rasga; não, estraçalha a seda. Que seus pedaços descansem no lixo onde também deveria colocar Pedro. Deveria, mas não o fará. Não, por enquanto.
Com um pequeno baú sobre o braço senta-se no corredor em posição que o espelho lhe reflete o perfil. Ela se vê, mas o espelho não a enxerga. Pedaços de tecidos começam a sair da caixa e se espalham sobre suas pernas estendidas. Agulha e linha dançam rapidamente na feitura de um boneco nu, sem face, descalço. Pontuada toda linha, o lápis preto tece o rosto de Pedro. Pelo espelho vê o resultado do trabalho sem que o pequeno Pedro lhe retribua o olhar. Recolhe tudo, levanta-se e no quarto sobre a cômoda repousa o boneco de frente para o espelho. Não tardará.
Alzira em sua auto-estima machucada pela rejeição não percebe que Pedro seguira o curso da vida, injusto possivelmente, mas irremediável aos que se apaixonam pela paixão, esquecendo de ninar o amor dia após dia. Para ela, nada sem Pedro. Para Pedro, a justiça de suas mãos por deixá-la sonhar pensando-se amigada.
Entre volta e meia pelo corredor, os pés levam-na ao quarto, o quarto guiando suas mãos ao boneco pinicado de alfinetes, furos invisíveis no peito que no corpo real de Pedro começaram por uma coceira seguida de uma rosácea cheia de pústulas. O peito parecia-lhe fogo auto se consumindo no esfregar de suas unhas, no remédio que ardia sem apaziguar. Não compreende a doença de tão sadio que era.
De tão pequeno, já não suporta mais o Pedrito alfinetes pelo peito, oferecendo inerte as costas, pernas e braços. O rosto não. Frente a frente, Alzira percebe que o rosto do boneco demonstra dor e espanto, uma agonia nunca vista em Pedro. Cuidadosamente, aninha o ferido Pedro nos braços e senta-se no corredor em posição que o espelho lhe reflete o perfil. O pequeno alfinete desliza pelo rosto de Pedro, provocando-lhe pontadas, uma sutil coceira que aos poucos vai se avermelhando.
Subitamente uma dor aguda lhe atravessa a orelha, um vácuo se formando no labirinto. O alfinete atravessa o tímpano e na volta traz na ponta um filete de sangue, que escorre quente pelo pescoço, causando em Pedro o medo súbito de uma praga. Como explicar esse mal repentino que lhe tira a vida aos poucos senão como obra do maligno?
Trocada pelo alfinete, a longa agulha de tricô atravessa o maxilar de Pedro, perfura-lhe os olhos e encrava-se certeira no lobo temporal direito apagando-lhe a memória. Sentada, Alzira movimenta o espelho, vendo-se inteira com o boneco nas mãos cravejado de alfinetes, agulhas e furos. Não tardará.
Negando-se a pensar em castigo, não por deixar Alzira, mas por amar Daniel, Pedro desmaia. Negando-se a pensar no amor de antanho, não por ter sido traída, mas por ainda amar, Alzira tomba sobre Pedro, a longa agulha de tricô encravando-se inteira no coração.

sexta-feira, julho 25

Fingimento

Quando Tonha resolveu namorar Quincas às escondidas, resolveu também que teria de encontrar uma forma de se comunicar com o namorado sem que as pessoas de casa, principalmente o pai, descobrissem. Não adiantava falar com Quincas sobre qual maneira seria a melhor, porque pra ele o melhor era fugir e acabar logo com essa estória. O pai dela pensava o quê, que ele era um cabra safado querendo a riqueza dele? Ele ia mostrar muito bem do que era capaz.
A melhor maneira de passar uma rasteira nos de casa era fingir-se de triste por ter sido obrigada a acabar o namoro, deixar até de comer. Nem mesmo em Lucinda, a irmã mais velha, poderia confiar. Diabo que só vivia pra xeretar a vida dos outros em vez de arranjar uma costela para casar logo, deixando o caminho livre. Mas quem, quem iria aturar aquele demônio feito cobra? Os de casa só agüentavam por obrigação, imagine um homem pra casar! Encalhada, Tonha sabe que não tinha jeito e o melhor seria se concentrar no próprio problema.
O códg precisv ser siples porq Quincas mal sab le com tods as ltras, com algma troc aí q iria se atrpalhr. Pesou em fzer u cdig utilzando só as consoates, ms viu q fcav mt difcl, precisav ter mt cabç. Desitiu ds consoates e fico imagnado q só de vogas tmbm não dara cert. Mistra letras e númros seria trbalho em dobo, já q precsari atrbur a cad letr um númro. Diacho! Precisava encontrar uma solução.
Enquanto o código não ficava certo, continuava com os encontros às escondidas. Depois da aula sempre dizia à mãe que ia à biblioteca da Prefeitura e lá entre as estantes conversava menos e beijava mais, os corações aos pulos não tanto pela paixão, mas sim pelo medo de serem surpreendidos. A insistência de Quincas em falar com o doutor Severo fazia Tonha tremer. Bem sabia do que o pai era capaz. O nome de doutor era só enfeite daquele povo temeroso do seu dinheiro e de suas posses de terras.
Continuava se fingindo de triste. O corpo de magro não precisava fingir, já fino de tanta tristeza fingida e fome com mesa farta. A mãe aumentou a reclamação, agora porque tinha que consertar pano, o corpo dançando nas roupas de tanta magreza. Até Quincas reclamou que ela tava exagerando. Será que não dava pra comer um tanto mais e ser triste só por fora? Não, não dava. Tonha queria convencer que tinha acabado o namoro com Quincas e todos deveriam acreditar que a triste magreza era real.
Os passeios à biblioteca ao encontro de Quincas começaram a rarear, pois Tonha acordava cansada e mal assistia às aulas, pensando naquela rede largada no alpendre de casa. Era uma delícia ir-se no balanço, espiar os bichos indo e vindo, o sol derriando a luz lá pra trás do rio, visto só em uma nesga ao longe. Levantava pouco e o que mais comia era água, descendo fresca garganta abaixo. Tinha preguiça de mastigar e além de água, só comia papa, sopinha, leite, comida de gente triste. Ia mostrar ao pai que o melhor era consentir no namoro, se não quisesse vê-la defunta. As aulas não tinham mais importância, a biblioteca da Prefeitura começou a ser muito longe.
Vendo a hora Tonha morrer, Quincas resolveu falar com o doutor Severo. Pegou o cavalo e foi encontrar o homem lá no cercado onde as reses eram marcadas a ferro. Aproximando-se, o que primeiro viu foi a arma na cintura do empregado posto ao lado do dono. Com o chapéu na mão e a uma distância maior que o braço de Seu Severo, Quincas contou o que estava acontecendo. As últimas palavras o doutor Severo nem ouviu, correndo para o cavalo, galopando de volta pra casa.
Puxando as rédeas rudemente, Seu Severo pulou e da beira da rede gritou pra Tonha deixar de palhaçada, pois ele já sabia que aquilo tudo era fingimento, que não adiantava aquela encenação, porque com aquele safado do Quincas ela não casaria, agora mais do que nunca. Onde já se vira fingir-se de triste, deixar quase de comer por causa de um moleque daqueles! E trate logo de se levantar dessa rede se não eu mesmo corto os punhos, jogando você no chão pra acabar de vez com isso.
Tonha, acolhida pela rede, mal ouvia o pai, não entendia o porquê dos gritos, ela num tava obedecendo suas ordens de não namorar o Quincas, então pra que isso? Não queria se levantar, queria só beber água e olhar aquele sol.
Parado logo atrás do pai de Tonha, Quincas viu o que os gritos não deixavam o doutor Severo vê: Tonha não tinha mais forças, a tristeza tomara de conta e pra ela não era mais um fingimento. Tonha morria de verdade.

sexta-feira, junho 27

Ôrra meu!

Não sei se a Língua Portuguesa está se tornando de verdade “a última flor” ou se eu é que sou purista demais. Mas, o que estão fazendo com o idioma “de minha pátria, de minha pátria sem sapatos/ e sem meias pátria minha/ tão pobrinha” – como diria o Vinícius – é uma coisa de louco, ôrra meu!
Não vou dizer que todo professor de português fica danado da vida quando ouve e lê os absurdos, porque, infelizmente, alguns colegas derrapam nas coisas mais comuns (o tal de
a nível de pega e derruba muita gente). Quem faz da leitura uma dose diária melhor que qualquer lexotan fica paranóico quando presencia atos de verdadeiro vandalismo cometidos na língua. O vandalismo do muro às vezes escreve certo por linhas tortas. Em um muro está escrito em letras garrafais – como não poderia deixar de ser: “o verdadeiro governo assiste ao povo”! E não é que é mesmo! O verdadeiro governo está vendo o que se passa com o povo, mas não está dando a assistência necessária, quer dizer, o governo não assiste o povo – era isso que o grafiteiro queria dizer. Ato falho?
Estou quase sem tempo de ver televisão, mas lá por volta das dez, onze horas da noite existe um noticiário local que é um celeiro para qualquer professor. O tal é daqueles programas cuja pauta é recheada de casos policiais, entrevistas com populares no local da ocorrência, um repórter esbaforido literalmente correndo atrás da notícia. No calor da hora – que aqui na cidade é toda hora! – o camarada fala verdadeiras pérolas.
Outro dia ele noticiava a morte de um casal de namorados atingido pelo trem. Depois das locações, já terminando a matéria, ele solta: todos os moradores ficaram horrorizados com a grandeza desse acidente!!!! Grandeza, cara, grandeza! Se eu fosse parente dos infelizes tinha processado esse repórter por desrespeito à dor alheia. Antes ele já vaticinara com muita propriedade que “o homem e a mulher acabaram tendo morte fatal”. Estou curiosíssima para conhecer esse rapaz e perguntar-lhe qual morte não é fatal, pois é desse tipo que quero morrer.
Por sua vez, a apresentadora do programa não deixou por menos. Comentando essa mesma notícia, chamando a atenção para o perigo de uma via férrea em área urbana, apelando às pessoas terem cuidado, porque “mais vale perder um minuto na vida do que a vida num minuto”, ela concluiu dizendo que “é muito perigoso, mas no entanto é necessário redobrar os cuidados”!!!!!! Como se pode entender, ela provou que não vai admitir que um repórter erre mais que ela, ela tem que errar em grande estilo. Não só usou duas conjunções de mesmo sentido, como anulou completamente o significado da primeira oração, pois as conjunções têm valor de idéias contrárias, as famosas adversativas. Para ela dizer o que queria, bastava usar a conjunção aditiva e ou a conclusiva por isso (Em tempo: esse mesmo
por isso já causa sua própria confusão).
Depois de tantos assassinatos lingüísticos, a apresentadora transformou-se numa serial killer e atirou uma bala pleonástica: voltaremos depois de um pequeno breve intervalo!
O uso do gerúndio é outra praga junto a tantos outros descaminhos. Estou cansada de ouvir “a gente teria de estar atuando”, “não tinha como a gente estar trabalhando isso”, “nós enquanto educadores somos mal reconhecidos”, e uma expressão novíssima no embalo da exibição: você não está gestionando isso! Pelas caridades, essa doeu quando ouvi, porque a tal moça estava se referindo a uma forma de gestão.
É inadmissível que pessoas que usam o idioma como instrumento de trabalho não tenham a decência de falar corretamente. Não importa o nível de escolaridade do ouvinte. Falar corretamente não é falar difícil, usar um vocabulário incompreensível. A comunicação é importante, nem por isso se deve relaxar e ficar usando tá ligado? a torto e a direito, pensando que de outro modo não será entendido.
Contudo, melhor é ler sobre quem sabe escrever e ganha
prêmio por isso (ainda mais que estou falando de cria de casa, meu lado tia). Afinal, “esse é o menor dos maus causados” como me escreveu uma amiga inconformada por ter ouvido uma repórter usar maus e não males!
Fazer o quê, cidadão??????

terça-feira, maio 27

Nada maiS


O primeiro que Rita encontrou foi um par de brincos sob o travesseiro. Duas argolas prateadas. Não se assustou. Certamente Mariana, sua sobrinha de oito anos, tinha deixado os brincos ali na hora de assistir tv, embora não fossem brincos de crianças. Colocou-os na estante para devolver, não sem antes fazer Mariana entender que não apressasse o tempo da infância.
Cinco dias depois, domingo na hora da missa, ao procurar o rosário encontrou na gaveta um sutiã vermelho um número menor que os seus. Do sutiã vinha um perfume de sândalo misturado a cheiro de bebida que uma mancha bem no peito não deixava dúvida. Chateada, porque aquela coisa escarlate deveria ser de Rosana, a irmã destrambelhada que tinha, jogou o sutiã sobre o cabide para entregar depois.
Ao acordar naquela segunda-feira, a cabeça doía-lhe como bebedeira de véspera. Mas nada bebera além das duas taças de vinho, um tanto assim irrisório para provocar tamanho enfado. A dor a água fria do banho aliviou o suficiente para se apresentar à mesa, onde todos se encontravam, esmiuçando os acontecimentos do fim de semana.
Depois de encaminhadas as tarefas para a empregada, telefonou para Rosana dando-lhe conta dos brincos e do sutiã. Ouviu uma negativa para os dois objetos, mas não acreditou. A irmã era dada a brincadeiras e certamente essa era uma delas. Ainda mais que afirmou que aqueles brincos ela usara na festa de casamento da prima na semana passada e o sutiã foi o que compraram juntas há uns quinze dias. Desliga, repetindo pra si mesma que a irmã não tem jeito.
Ignorando os comentários da irmã, vai ao jardim ver as roseiras e todas as outras espécies que com cuidado plantou. O assombro do jardim tira-lhe a voz por um momento. O espaço vazio denuncia que todos os jarros com os crótons desapareceram. Paulo, só pode ter sido Paulo, é o primeiro pensamento; ele afinal concretizara o que dizia há semanas: que cortaria tudo, pois o jardim parecia mais uma floresta. Muda, contempla o jardim sem saber se espera para brigar à noite ou se liga agora mesmo, descascando tudo.
Entra, arreia na cadeira, o pensamento correndo sem fixação. Levanta-se e telefona para o consultório da doutora Marta, marcando uma consulta para amanhã. A atendente lhe diz que ela já telefonara ontem e que a consulta fora marcada para hoje à tarde. As lágrimas ardem-lhe nos olhos e começa a sentir que algo está errado. Não lhe é normal o esquecimento, sempre teve boa memória. Ontem mesmo lembrava do aniversário de 90 anos de sua mãe, acontecido há uns dias. Todos lá, felizes, idade rara para merecida festa.
Volta ao quarto devagar. Entra, senta-se á escrivaninha e pega o bloco de papel dado por Sara, a filha de 9 anos, a caçula, fim de rama. As idéias não estão claras e da ponta do lápis só riscos, rabiscos se entrecruzando. Não sabe o quê, mas sente algo pesando-lhe no peito. Vai esperar a consulta, não adianta falar com ninguém de casa, vão chamá-la de louca e isso ela não é. Abandona os lápis, deita e liga o televisor. O programa matutino ensina a fazer deliciosas comidas proibidas pela hipertensão, pelo colesterol alto. Não gosta de remédio, mas toma. O som da televisão lhe embala num cochilo.
A mão bate-lhe no ombro acordando-a. Olha e vê uma moça vestida de branco, e não escuta o que ela lhe diz, embora veja seus lábios se movendo, fazendo-lhe gestos com as mãos. Coitada, deve ser muda, pensa. Entende que precisa tomar o remédio e aceita a água que a moça lhe dá. Tomado o remédio, vira-se para a mesinha de cabeceira e pega um pirulito, resto da festa dos noventa anos da mãe. Sempre gostou de pirulito. Vê novamente os lábios da moça de branco se mexendo. Mas não escuta.
- Dona Rita, a senhora tá lembrada da festa do seu aniversário? Noventa anos, hem?, quem diria!

******A foto desta postagem chama-se Planície do Esquecimento e se encontra aqui.

domingo, maio 18

Sem tempo


Quem passa sempre por aqui talvez estranhe o espaço entre uma postagem e outra. Ando ligada demais no trabalho, pois dez meses depois de férias, licenças, retornei. Não digo que ao batente, pois tantos anos depois não sei se trabalho pra mim é pegar no batente. De tanto subir escadas e descer ladeiras, a gente fica assim um tanto anestesiado com tudo que nos acontece na vida profissional. Em alguns momentos até parece que saímos de nós e flutuamos além da cena, contemplando-a com uma certa descrença.

O danado é que quando nos fazemos de um jeito não há jeito de mudar. Trabalhar na área de educação é uma mão dupla sempre, há inevitavelmente um prazer misturado à frustração de não se conseguir todo o sonhado, há sempre o esforço para manter a chama acesa, dizendo-se a si mesmo que daqui a uns anos aquelas lições darão frutos. Há uma mania generalizada de na educação se criar uma metáfora com árvore, com frutos como se nós, educadores, fossemos os únicos responsáveis pelo futuro de crianças e adolescentes. Entre a casa e a escola há muito mais razões do que sonha a nossa pedagogia. Há uma gigantesca coisa chamada política e bem no seu miolo uns bichos chamados ideologia, responsabilidade social, renda digna, cidadania. Ai de nós, esse povo que mendiga pelo saber a ouvidos surdos!

E antes que eu termine usando o tom messiânico, planfletário dos anos 70, vejam o vídeo que não tem nada a ver com o que eu estava escrevendo. É apenas uma cena de um filme de 1985, um belo filme de Spielberg, com uma interpretação magistral de Whoopi Goldberg. Eu e Socorro, minha amiga que vive na ponte aérea Rio-Natal-Rio, assistimos vezes sem conta. Em todas sessões ela chorava, talvez na esperança de na próxima o filme ter se tornado menos triste. Nada como relembrar o velho sul dos Estados Unidos com seus negros sofridos, as barcaças do Mississipi, e o bom velho blues para voltar a ter esperança.

terça-feira, abril 22

E por falar em saudade...

Há exatamente 28 anos entrava numa sala de aula pela primeira vez. As aulas do estágio não contam; contam esses anos que vivi rodeada de alunos a quem pude realmente chamar de meus alunos.
Como tudo que é novo, naquele dia tive medo. Não sabia o que encontraria e sentia que o aprendido na Universidade não seria bastante. Saber dá aula é completamente diferente do saber o que ensinar. Saber o que ensinar é indispensável, mas saber o como é uma aprendizagem que transcorre no decorrer do tempo, através dos acertos e dos erros cometidos. Na época eu sabia o que ensinar, não como deveria ensinar.
As teorias aprendidas eram palavras e palavras que não se aplicavam ali à frente daquele mundo de alunos, que, independente das idades, têm como passatempo predileto tirar o juízo do professor. E se vai tentanto: o bonzinho não dá certo, porque eles levam na bagunça; o tirano não dá certo porque eles fazem de tudo para sair da sala e tirar, no dizer deles, !a moral" do professor. A medida certa somente o tempo vai indicar e depende de cada um, de suas vivências e do quanto o professor gosta do que faz.
Eu adoro dá aula. Não há lugar onde eu me sinta tão bem quanto em uma sala de aula. Conversar, explicar, rir com os alunos, chamar atenção sem ser ditador, ouvi-los, responder o que perguntam, dizer que não sei, que vamos aprender juntos, às vezes consolá-los diante de um problema. Uma sala de aula é um caldeirão efervescente de vida, apesar do cansaço, do esforço na voz e na paciência.
Na ciranda da vida alguns deles se tornaram professores com quem tive o prazer de trabalhar. Alguns são advogados, médicos, comerciários, contadores, administradores; outros não continuaram os estudos; uns tantos são universitários, encontram empregos temporários, ficam sem emprego; algumas são mães em tempo integral. Não importa. Na sala de aula aprendi a respeitar as diferenças diante de universo tão dinâmico e ímpar. De muitos alunos fiz amigos que até hoje sentam e riem comigo, que me convidam até para ser madrinha dos filhos, quando eles próprios eram adolescentes há um tempo.
Alguns dos meus alunos se perderam, encaminharam-se para a marginalidade e é impossível não questionar sobre aquela lacuna de vida que a escola, a educação não preenche. Se ri com muitos deles, também chorei por muitos que partiram tão prematuramente. Eles me reconhecem pelas tantas broncas dadas na ânsia de ensinar-lhes responsabilidades e limites, mas também pelo carinho do abraço.
Há seis anos não tenho mais turmas sob minha responsabilidade, envolvida que fiquei em outras funções na escola. Mas não sentia tanto a falta da sala de aula propriamente porque não perdera os alunos, convivia com eles e, diretora, não perdi o hábito de me misturar, jogando conversa fora sentada no corredor, nos bancos.
Ser professor é apostar no futuro mesmo que tenhamos desilusões, que não vejamos a profissão sendo valorizada. Tive recompensas que foram além de qualquer salário, de qualquer política educacional. Quando comecei a trabalhar uma colega me disse que depois de dez anos eu já não estaria com tanto ânimo, que o trabalho já teria acabado comigo. Não acabou. O trabalho em escola é extenuante e saí dele para uma função mais burocrática num órgão central por crer que fiz a minha parte na escola, embora também o nível de stress estivesse me arrebentando. Não me arrependo.
Ainda digo que quem dá menos trabalho em escola é aluno, porque o seu comportamento, ou mal comportamento, é previsível, é da natureza do jovem querer o enfrentamento com os adultos. Seus comportamentos só me surpreenderam quando descobri em alguns (graças a Deus, poucos) um traço de crueldade que me atingiu duramente. Nem isso, no entanto, fizeram-me perder a fé.
Há duas semanas voltei a dar aula apenas nas sextas-feiras a uma turma de trinta alunos na Escola de Teatro recém inaugurada aqui em natal. E vejo nessas aulas o quanto sinto falta disso, desse dia-a-dia de aula, de alunos. Tenho saudade do meu tempo de professora, ainda mais que passei vinte e cinco anos em apenas uma escola. Lá vivi tudo que poderia aprender, aprendi mais com meus alunos do que eles aprenderam comigo e ainda não me acostumei a ficar longe.
**A foto dessa postagem é do pátio da escola por onde vaga meu coração.

sábado, abril 12

Pé ante pé

Todos os dias passava por aquela rua de ponta a ponta só lojas. Admirava as vitrines. Quase tudo lhe chamava a atenção, a maioria custava a metade do seu salário e não podia se dá a esse luxo. Resistia heroicamente à visão das sandálias, principalmente. Ah, as sandálias! Nessa hora de desejo dava todas as razões a Imelda Marcos, a Claudia Raia.
Naquela segunda-feira chuvosa, mal prestava atenção às lojas de tanta água na rua. De repente a sandália prateada saltou-lhe aos olhos, fazendo-a parar. Salto fino da altura que gosta, aberta na frente, dedos à mostra. Linda, pedindo para ser comprada, a sandália acompanhou-a durante o dia todo. A cabeça dava voltas e mais voltas nos cálculos possíveis, procurando brecha para comprar, comprar. A sandália tinha que ser dela.
A rua agora se resumia àquela única vitrine, àquela sandália no pedestal esperando. Esperando-a. O mês estava terminando e alguma coisa não seria paga para que a sandália fosse sua. Mas, o quê? O que poderia deixar de lado para ter a sandália?
Mal abre a porta, joga a bolsa no sofá, tira os sapatos e começa a abrir freneticamente o pacote. Ainda bem que conseguira comprar antes que outra a levasse.
De repente, o telefone toca. Não, logo agora! O visor do celular mostra uma ligação da coordenadora da escola onde Bruno estuda. Ele deve ter aprontado mais uma. Atende. Enquanto escuta, vai pegando a bolsa, fechando a casa, saindo. Bruno está no hospital depois de um acidente na escola. Não sabe bem o que fará. O dinheiro da mensalidade do plano de saúde fora usado na compra da sandália.
No sofá a sandália repousa em meio ao emaranhado da vida.

segunda-feira, março 31

Sol, do re mi fá de chuva

Chove. Aqui, como em toda cidade que raramente chove, quando chove, chove sem preparação. Época já de findo verão e anunciação do inverno. Contudo, aqui não sabemos o que é inverno. Mesmo quando chove, faz calor. Da terra vem uma quentura que cola na pele, pegajosa pele. Quem sabe do inverno é o povo do sertão que vê os açudes sangrando, que aproveita a água do céu para plantar o milho e o feijão colhidos nas festas de São João.
Chove. De repente as ruas são tomadas por guarda-chuvas, passos apressados que pulam poças de água. Aqui, como em toda cidade que raramente chove, quando chove, o que se vê são ruas enlameadas, barracos encosta abaixo, velhas árvores desabando sobre carros. Somos uma cidade com vocação para o sol, daí negar que um dia choverá. A espera da chuva se faz sem crença.
Chove. A tarde se apresenta num lusco-fusco que cintila nas lâmpadas de mercúrio que conferem às ruas um ar fantasmagórico em meio à água que cai. Na calçada, a moça se desvia do banho irresponsável do motorista em velocidade espanando água pra todo lado. Na bicicleta, o rapaz mal se equilibra tentando proteção sob uma inusitada sombrinha.
Chove. Nesses tempos a água não cai mais de calhas oferecendo às crianças um banho de bica na chuva. Quem se molha é quem desprevenido não acreditou. Não há criança soltando barcos de papel na correnteza formada de rua em rua. O asfalto impossibilita o rio de outrora. É da janela que ela vê a chuva, agasalhada como se em pleno ártico.
Chove. Sem ter janela, o papelão retirado do supermercado se transforma em piso, parede e telhado debaixo da laje. Toda uma gente se agrega em espaços escuros fugindo d’água. Diferente água que dia após dia escava a vida em lagoas.
Chove. Não haverá demora nessa água. A manhã trará o sol e da chuva uma lembrança apenas na areia marcada, brilho nas calçadas, uma notícia a mais no jornal. O agasalho de tricô guardado, papelão dobrado no armazém por empréstimo. O rio aprisionado em suas margens ao longe divisa a ponte entrada de mar.

terça-feira, março 25

ESPaciAl

Espacial - Composição de Belchior na voz de Vanusa. Lá para os idos dos anos 70.
Talvez você lembre da música. Talvez nem seja do seu tempo.
Perca só três minutos para ver. Depois se pergunte como vivem hoje o oriente e o ocidente. Estrela nenhuma consegue unir; céu e terra já têm donos.

quarta-feira, março 19

Pingo do meio-dia

Ai, meu Deus, como estou cansada!, e esse ônibus que não chega, esse calor, a parada cheia e esse homem ainda fica aí falando de política, quem quer saber disso, de que adianta... pelo amor de Deus, essa moça de bota num calor desse, só pode tá doida, tem gente que não tem senso, acho que vou comprar uma água de coco, pelo menos engana a sede até chegar no shopping, ainda mais essa... vou ver se tenho uma moeda, tem água de coco? Um copo, por favor, obrigada, lá vem o ônibus, vou beber logo se não na subida o povo derruba, tomara que dê preu sentar, do jeito que estou cansada, ainda ficar em pé até o shopping, ninguém merece, ainda bem que tinha lugar, vou abrir essa janela pra ver se fica menos quente, tomara que Josias não se atrase, do jeito que ele é, vai me atrasar, podia muito bem deixar para comprar esse tênis amanhã, esse menino ainda me mata, tenho que cortar um pouco as asas dele, inda mais agora que o dinheiro da gratificação diminuiu, não vai dá pra ficar comprando coisa e ainda se está pagando... Oi, tudo bem? É, mulher, tava longe, pensando... tudo bem. Como está Sara, passou no vestibular? Ah, que bom. Não, ele ainda está no primeiro ano, mas diz que vai fazer pra arquitetura, vamos ver, esse povo muda tanto de idéia. É verdade. Ainda, ainda estou lá. O de sempre, você sabe como é. Tem visto Carminha? Ah, eu também, esse povo some e fica difícil, parece até que a gente mora em outra cidade. Nem me fale, um corre-corre mesmo. Tá, vamos marcar, sim. Tchau, um abraço em Sara. Até parece que vai ligar, entra ano, sai ano, é a mesma conversa, nunca dão notícia, se eu não procurar, sei não!, acho que vou ler se não termino dormindo aqui. “Porque estou cansado. O Iraque é o reino do medo. Ninguém vai lhe dizer a verdade se aparecer com o seu tradutor oficial ou acompanhada por outros iraquianos desconhecidos. Poucos vão falar com você, mesmo que fique a sós com eles. Por uma só palavra, pode-se ir para a prisão durante vinte anos; e por uma só palavra, um estrangeiro pode desaparecer para sempre..”, quem decide guerra nunca pensa no povo comum, embora diga que a razão é salvá-lo, como será viver num país em guerra, as pessoas parecem ver com naturalidade, é difícil se colocar assim numa situação limite, ai que calor, bem que podia chover um pouco, ainda tenho que fazer aquele projeto hoje à noite, não sei pra quê disse que podia fazer, droga, agora vou ter que terminar, ainda bem que falta pouco, bem que Luciano podia ajudar, mas vai ficar vendo o jogo e ali morre, reclamando de cansaço. Boa tarde, passageiros, desculpem interromper a viagem de vocês, mas estou vindo do hospital, vocês podem ver aqui a receita,... de novo?, cada ônibus que se pega tem alguém pedindo, como ele pode interromper a viagem se o ônibus continua andando?, vou dar não, esse aí não tem cara de doente, podia tentar arranjar um biscaite, coitado!, deve ser difícil sem estudo, profissão, será que ele tem mesmo esses filhos?, vou dá não, quando eu voltar vai ter outro no ônibus, aí eu dou, já são doze e trinta e cinco, esse ônibus não anda, vou me atrasar, ainda tenho que almoçar, acho que vou comer sushi, melhor do que massa, preciso telefonar para Sônia, saber se ela vai ao aniversário de Lorena amanhã, pedir pra ela passar lá em casa e me pegar, ainda tenho que comprar alguma coisa, Vige Maria, esse mês é fogo, ainda tem os aniversários de Salete, de Lúcia e de Isabel, melhor conversar com o pessoal e fazer uma cota para o presente de Salete, assim não fica tão pesado. Oi. Estou no ônibus. Você já está no shopping? Ainda bem que não se atrasou. Tenho culpa se o ônibus não anda? Não, senhor, aproveite e vá olhando os tênis pra gente não demorar. Não, senhor, pode olhar preço também. Tá, Josias, tá, tô chegando, beijo. Com certeza ele vai escolher os mais caros, que saco, ainda tenho que argumentar com ele, dizer que também tem a irmã que com certeza vai inventar de comprar alguma coisa só pra não ficar atrás, ai, meu Deus, isso é que um calor, o que vou comprar pra Lorena, será que um livro tá bom, ela lê tanto, é capaz de eu não acertar, melhor comprar uma bijuteria, um brinco, ela adora essas coisas, será que Joana almoçou direito, aquela menina só pensa em emagrecer e nem gorda tá, vou levá-la ao médico pra ver isso, na próxima semana não dá, não vou poder sair do trabalho enquanto não terminar aquele relatório, ai que meus pés tão doendo, queria tomar um banho agora. Licença aí, por favor, vou descer, licença, facilite aí, por favor. Ai!

quinta-feira, março 13

Amor de feira

Não chega notícia nenhuma. Uma leve saudade a faz esperar, embora saiba que nada virá. Não pode culpar o carteiro, não se entrega carta que não é postada.
A carta pedindo notícias foi inútil. Sabe que foi entregue, pois fulano recebeu resposta a que mandara. Para ela nada. O silêncio é o adeus não pronunciado.
Paga pelo erro de gostar de frutas próprias de cada estação. O último encontro fora de muita conversa e nada. Não podia simplesmente sair de casa, deixar tudo assim como quem vai à esquina para logo voltar. Não cedera às exigências pedidas em nome do amor. Que amor?
O amor viera de caminhão com as frutas descarregadas no pátio da feira. Melões, graviolas, abacaxis, bananas, cajás da região que há muito não vê. Do avental tirara o dinheiro pagando a entrega e justando prazo para novo descarrego. Olhara bem aquele homem e o corpo de imediato estremecera. Mal disse obrigada e voltara para trás da banca.
Ele dera as costas indiferente a sua presença, interessado no dinheiro, na carga, na viagem de volta. Fora-se assim como chegara: de supetão, cheiro de abacaxi, cajás.
Agora se arrepende do prazo dado para nova entrega. Muito longo para tanta freguesia que acabara rápido os abacaxis, cajás, melões. Muito tempo para essa agonia do corpo que reclama um novo olhar, esquecido frenesi. Vai que chove e alaga as estradas? Como ficará o corpo depois de tanta sede?
O tempo escoa pelas telhas e o caminhão pela estrada, pátio da feira, acerolas, graviolas, abacaxis, serigüelas, mangaba não que é fruta que dá em qualquer lugar. Não pode deixar de sorrir: tá madura caindo de amores por um desconhecido. Grande coisa! Sabe lá que diabo é isso, essa agonia desatada de olho no calendário, admirando fruta besta em banca de feira!
Quando o ranger dos freios do caminhão se faz anunciar, a boca já derrama tudo que tinha planejado: quer a safra toda de abacaxi, dez caixas de melões, de caju que tá na época, graviolas, cajás e umbus verdes, até mesmo dez caixas de jambo que a gente daqui não tem em calçada. E vamos tomar um café lá em casa para se acertar formas de pagamento?
Na quentura do café desarrumara a cama e se fartara de todas as frutas da estação. As telhas ficaram paradas pelo tempo do olho aberto aos sentidos, braços e pernas como caranguejos naquele mangue de sua infância onde em todo carnaval se lambuzava, foto de bloco de cão aparecendo na televisão. Não quer saber da dona do dono do caminhão, da filha que a qualquer hora porta adentro, se é tarde ou cedo, dia de feira ou não.
Depois de tantas feiras, o ranger dos freios foi perdendo o guincho de paixão, o cheiro e o mel do abacaxi se tornaram banais. Não pedira para ser dona do caminhão. Para que fazer o tempo só de cajus, cajás, graviolas e serigüelas, quando nas outras estações há tantos morangos, pêssegos, nectarinas, ameixas, maçãs e uvas?
Uma leve saudade e o ar já se enche de jacas, goiabas, do doce mel do sapoti no ranger de novos freios que descarregam.

quinta-feira, março 6

GoSto de maçã

Às vezes estico a memória num exercício para saber até onde ela vai. E tal como tartaruga, lentamente me vejo em vários lugares, takes se sobrepondo trazendo-me fases distintas da vida. Nem sempre consigo situá-las no tempo, embora as cores e até mesmo alguns sabores se materializem de repente.
Meu avô materno era carpinteiro e vejo-o com serragem pelos braços no movimento do serrote, advertindo-nos, a mim e aos meus primos, do perigo de chegar muito perto. A bancada onde trabalhava ficava no alpendre nos fundos da casa. Era exímio com as mãos e nunca lhe faltava encomendas tanto para lhe fazer sobreviver como para abastecer a família de mesas, armários, cadeiras, na verdade tamboretes, visto que não tinham espaldar. Raramente fez alguma coisa para os netos, mas meu irmão foi o felizardo de ganhar um tamborete bem pequeno que durante anos andou na nossa casa, perdido em uma das mudanças, ele já adolescente e meu avô já morto.
Vizinha a casa dos meus avós era a casa de minha tia com um quintal imenso que tinha até uma vala que servia como rio em nossa imaginação. Não importava que perto dali minha tia lavasse roupa e a água escorresse a céu aberto cheia de sabão. Descalça eu não ficava, pois se o fizesse minha mãe não deixaria barato, mas meus primos sim, e nem por isso adoeciam. No quintal, mangueiras, bananeiras, um pé de carambola, outro de limão, em algumas épocas ramas de jerimum e de batata, serviam de selva em nosso corre-corre e nos concorridos "cozinhados": usávamos um fogareiro e numa pequena panela se misturavam o feijão, o arroz, a carne dados por minha tia. Era uma gororoba de primeira, horrível!, saboreada como um manjar.
Um tio morava longe. Se eu ia para a casa da minha tia sozinha, para a casa do meu tio não tinha como, pois no caminho existia uma longa rua - famosa por acontecer assaltos e ataques a mulheres - ladeada por uma cerca viva de pés de urucu, que pegávamos para os adultos fazerem colorau e nós para lambuzar a cara na brincadeira de índio.
Uma outra tia materna não morava na capital e passei um mês na cidade fria de Currais Novos, cuja altitude é 341m em relação ao nível do mar, quando Natal só tem 31m. De manhã a névoa cobria tudo e eu ali, puxada pela minha mãe – não lembro quantos anos tinha – comendo maça assada, mel formado na coroa de frade. Cortava-se a parte superior do cactus, colocava-se açúcar mexendo-o à polpa, tampava-se e deixava toda a noite no sereno para que de manhã eu tomasse aquilo. Não sei a origem da receita, como também não sei quem ensinou que eu ficaria boa tomando leite "pedrado", literalmente: fervia-se o leite com uma pedra dentro. Ainda bem que não ensinaram que era para derramar o leite e eu engolir a pedra, porque naquele desespero não duvido nada que me obrigariam a tomar. Nenhuma das receitas deu resultado, a coqueluche só me deixou muitos meses depois.
Não conheci o meu avô paterno e minhas avós não foram chegadas a afagos com os netos. A mãe da minha mãe era presbiteriana das antigas, rígida, de pouca conversa com os netos, cuja responsabilidade era das filhas, não de vó. A lembrança mais vívida é a dela lendo constantemente a Bíblia, apertando os olhos, pois até o fim da vida nunca usou óculos. De minha avó paterna é outra estória, porque quando nasci meus pais ainda moravam "dentro de casa" e cresci acompanhando a rixa velada entre ela e minha mãe, pois quando meus pais se mudaram para outro bairro, ela deu um jeito e foi morar na casa vizinha, onde viveu até morrer. Não gostava de netas –e teve muitas – somente dos netos. Pra ela mulher não servia pra nada, além de parideira. Essa opinião era a causa de todos os desaforos entre ela e a minha mãe que não aceitava intromissão na própria vida.
De todas as lembranças, no entanto, nada há a que se compare com a da minha única tia paterna de quem recebi todo o carinho e cumplicidade de que só as tias são capazes. Dela recebi o apelido de amor muito antes de saber o que a palavra significava, com ela fui a muitos aniversários, casamentos, até mesmo a comícios e passeatas políticas, na casa dela comia o que queria, e também podia me esconder fugindo das broncas de minha mãe – não que adiantasse, porque existia sempre a volta! - podia ficar lendo horas seguidas sem nenhuma interrupção. Foi a presença mais constante durante toda a minha infância e adolescência e gostava de me contar que no dia do meu nascimento, ao me ver magrinha, prematura de 8 meses, saíra dizendo a minha mãe que voltaria para o enterro. Ela se enganou e durante toda a sua vida me deu o privilégio de saber o que é amor incondicional de tia!
C'est la vie, c'est la vie!

quinta-feira, fevereiro 28

PARalelas

O cão está parado no meio fio. Todas as vezes que avança, recua, pois sente a vibração de um carro vindo. Olha para um lado e outro, mas não se atreve. A saliva denuncia seu cansaço e ansiedade.
Sentado na parada de ônibus o homem observa os movimentos do cão. Espera a hora do atropelamento e nada faz. A marca na perna lhe dá todos os motivos para não gostar de cachorro. Raça desgraçada! Por ele, todos os cães viravam sabão.
O negro do pêlo reluz ao sol. O focinho pouco saliente, orelhas curtas apontadas para cima, uma grande mancha branca sobressaindo-se na pata direita não indicam a raça do cão. Pelo ir e vir na calçada, incerto sobre a hora de atravessar, denuncia-se sua pouca experiência de rua. Não está gordo, mas não tem uma ossatura que indique fome de cão. Se tem dono, ninguém por perto lhe pertence.
Uma acentuada calvície brilha ao sol no calor da manhã. Retira um lenço do bolso da camisa e enxuga o suor da testa. As pernas magras à mostra pela bermuda indicam uma idade mais de 50. Magro e alto, a mão segura três pacotes de compras aos seus pés, o corte de cabelo e a pose denunciam sua raça militar. Se tem dona, ninguém por perto se atreve.
Indiferente às pessoas, o cão se concentra na vibração do chão e nos flashes de suas retinas que se sucedem dando-lhe os movimentos dos carros. Não sabe distinguir as cores do semáforo, mas precisa atravessar na hora certa nem que seja por entre os carros, correndo raspando.
Indiferente às pessoas, o alerta do cão começa a lhe incomodar. Como diabo pode esse nojento saber a hora certa de atravessar? Mas não vai adiantar, ele vai se danar todinho e será menos um nessa terra.
O cão agora se arrepende. Quando vira o portão aberto só quisera correr maior do que o jardim. Vê muitos pneus correndo ao seu lado, nada como aquele parado no jardim onde não pode levantar a perna. Precisa dá um jeito de voltar, o menino deve tá danado.
O homem agora se arrepende de não ter vindo de carro. O calor sufocante, a demora do ônibus, o cão, tudo lhe incomoda. Besteira achar que seria melhor deixar o carro na garagem, a essa hora o filho já o pegou para ir a praia. A mulher deve tá danada com a demora, esperando as frutas que recomendara.
Resolve ficar perto daquelas manchas no chão. De vez em quando vê pernas indo e vindo. Vai escolher uma e seguir com ela como Júnior um dia ensinou quando saia à rua, mesmo que ali tenha duas avenidas para atravessar. Quando do outro lado não terá mais perigo. É só correr, dobrar na clínica, correr mais e avançar portão adentro.
Já são onze horas. Melhor atravessar a rua e pegar um táxi. Aproveita e compra para Júnior uns jambos que o homem vende no canteiro. Levanta-se e sente a perna direita formigando. Antes de caminhar até a faixa de pedestre, bate o pé várias vezes no chão ativando a circulação. Parado na mesma faixa está o cão. Pára longe dele e espera o sinal fechar.
Um homem vai chegando. Vendo aquelas pernas o cão se aproxima decidido a segui-las. Vai fazer de conta que é um passeio com o dono. Assim não tem perigo, porque mesmo sem coleira o dono vai cuidar dele, chamando-o pela rua para nada de ruim acontecer.
O sinal fecha. Homem e cão, lado a lado, atravessam a faixa de pedestre. Diabo deste cão, tanto tempo ali na calçada e resolve atravessar justo nesta hora, ainda mais nos meus calcanhares. Será que este bicho sabe que tenho medo de cão e tá fazendo isso só pra me aporrinhar mais a vida? Eu devia era lhe dá um chute. Desgraçado! Ufa! Ainda bem que escolhi as pernas certas, o homem nem olha para mim, mas ele sabe atravessar e eu não corro perigo, é só seguir o movimento das pernas e pronto. Ainda bem que ele gosta de cão e não vai me chutar.

segunda-feira, fevereiro 11

Jó, Joana

Depois de um tempo casada, incontáveis visitas a médicos e orações, Joana descobriu que não podia ter filhos. Passada a tristeza inicial, procurou na maternidade da pequena cidade uma criança que pudesse ser adotada. Alguns meses se passaram até encontrar Marta. Agora sim, a família estava completa. Tinha uma filha e não interessava se de sangue, de leite, de afinidade. Era dela a filha, deles.
Quarta filha de uma família com sete filhos, pais presbiterianos calvinistas convictos até os ossos, casara com Joaquim, pequeno comerciante ambulante, de fé igualmente inabalável. Foram morar numa cidade distante da capital, embora percorressem todas as feiras da região, armando banca, vendendo bibelôs, antigos enfeites de geladeira, panelas de alumínio, plásticos em todos os formatos, de todas as cores, de preços baixos. De feira em feira, domingos de igreja, criavam a filha.
Na idade escolar, descobriram que Marta não tinha a menor aptidão para os estudos. Não adiantava castigo, palmatórias, a mão emperrava e mal levantava do papel para se reconhecer no próprio nome. Gostava de costurar vestidos para as bonecas, andar solta com os meninos, subindo em árvores, fugindo para a fábrica de sabão na mesma rua onde via indiferente a gordura de cães misturada à água sanitária e tantos outros produtos. Nunca teve um animal de estimação. Religiosamente, freqüentava a igreja.
Desfeito o sonho de ver Marta pelo menos professora, a educação desviou-se para fazê-la uma boa dona de casa. Depois de comentários sobre os furtivos encontros a pretexto dos cultos de oração, não teve jeito a não ser casar a filha, pois dali a pouco seria visível demais o corpo com outra vida. Sem casa, sem eira, nem beira, o marido Jairo saía da casa dos sogros para o trabalho em construção onde e quando havia. Se não, fazia parede de açude, arrumava cama, porta, telhado dos outros na busca pelo menos do dinheiro da pinga que começara a beber.
Quando a neta nasceu, Joana renasceu. Agora os sonhos encontravam nova morada. Não importava se os pais não tivessem maturidade, juízo, responsabilidade. Ela e Quinho cuidariam de Rute, não cuidavam já de tudo? Uma boca a mais não faria diferença, ainda mais sendo uma neta tão querida. A menina engordava parecendo leitãozinho cevado, embora a mãe lhe desse apenas os cuidados básicos, tudo a cargo da avó que se desdobrava entre casa, feira, igreja, um lavar de fraldas sem fim, sopinhas, mamadeiras. Mas, não importava, grandioso era Deus em sua sabedoria.
Poucos meses depois de completado um ano, Rute apresenta forte febre, uma gripe renitente. Os chás não debelam aquela tosse, a criança mal respira. O jeito é levar ao hospital da cidade e se não melhorar, viajar até Natal em busca de outros meios. O médico tranqüiliza a família, aquilo é gripe de criança, nada que uma penicilina não cure. Da gripe, depois de alguns dias não há vestígios. Instala-se, no entanto, uma paralisia.
Diante de tamanha provação, Joana e o marido vendem o que podem, negociam o que têm e se mudam para a capital, principalmente em busca de tratamento mais especializado para Rute. Com as economias, compram uma casa confortável em um conjunto recém inaugurado em um bom bairro da cidade, participam da criação de uma congregação evangélica, a qual se dedicam, pois, aposentados ambos, dividem o tempo entre os cuidados com a neta, os afazeres de casa, visitas. A filha e o marido moram junto, pouco tempo nasce outro neto, o genro aumenta na bebida, nas mulheres, esfacelando a convivência familiar.
De nada adiantam os tratamentos para Rute. Membros inferiores paralisados, atroviam-se sem atividades; lado direito paralisado, restando apenas o lado esquerdo para se mover na vida. A avó ensina-lhe a ler; o avô nega-lhe a televisão, as leituras que não sejam bíblicas; a mãe sem rumo, mal lava a louça, arruma a casa, bom mesmo é viver de porta em porta, falação com as vizinhas; o pai, do trabalho para a cerveja. A cadeira de rodas doada não lhe leva a escola, pois para que aprender além de ler? Tudo é obra e graça de Deus, aceita-se e vive. A crença cega embota a razão e de nada servem os conselhos dos parentes.
Do interior para a capital, Joaquim desenvolve uma renite alérgica que se transforma em asma que se transforma em enfisema pulmonar levando-o vezes sem conta ao hospital. Não há mais dinheiro, pois, na conversa do genro, vendera a boa casa, comprando uma menor com maior terreno, embora longe dos parentes, em bairro mal afamado. Entrado na velhice, ele e Joana têm a vida regulada por Jairo e o neto, agora adolescente.
A vida aos poucos cria outro ritmo. Abandonada a antiga congregação, Joana e Joaquim freqüentam outra perto de casa. Marta, presa numa vida sem luz, engorda e come. Jairo trabalha, bebe, arranja mulheres, tem automóvel. O neto Miguel cresce, exímio mecânico, engravida a namorada. Rute se locomove pela casa num carrinho tipo rolimã feito pelo pai e nos poucos passeios leva-se no carro a cadeira de rodas. Pinta, borda, trabalha com papel reciclado fazendo cestas, porta-revistas, freqüenta um órgão estatal para deficientes, recebe cesta básica, aposentam-na.
Sem forças, o coração de Joaquim não agüenta nova crise de asma e pára. Ainda ecoa o hino preferido por ele cantado por Joana no cemitério: "com Cristo no barco tudo vai muito bem, vai muito bem". Jairo, senhor absoluto, dita ordens. Marta em seus cinqüenta anos sofre calada ao ver o marido com amante até na mesma rua onde mora. Rute em plena efervescência dos trinta anos é proibida de namorar, sem direito a nada, menos pelo medo de ter o que um simples anticoncepcional impediria, mais pelas marcas do cinturão do pai em suas pernas inertes sem dor. Miguel, hoje adulto, junta-se ao pai nos ditames de três mulheres, três gerações sem voz. Joana ainda canta seus hinos, lúcida e resignada na família que lhe coube ter.


Essa é uma estória a qual não gostaria de ter contado. Trocados os nomes, hoje aos 82 anos minha tia ainda tem uma fé inabalável. Quando a chamo para ficar na casa da minha mãe, sua irmã três anos mais nova, ela diz que não pode deixar a família e me diz para não me preocupar porque "Deus proverá". É, eu sei, mas isso não impede a minha tristeza e a certeza que a cada um é destinada uma vida, apenas um tipo de vida e que nos seus mistérios deve haver algum propósito.

sábado, janeiro 26

Caso de verão

A areia quente da praia não permite um andar vagaroso. A falta de firmeza a impede de correr. Às 8 da manhã já percorria a orla indo e vindo e até agora muitos nãos. Meio dia, a hora mais adequada para que consiga o que quer. Caso não se arranje até as três horas, o jeito será desistir, dobrando-se cansada, guardando-se para amanhã.
Nessa época a cidade é um amontoado pelas praias, pelas ruas. Os bares cheios a toda hora, carros tomando ruas e calçadas. Os bares não têm o que procura, nem mesmo aqueles à beira-mar, não querem o que está oferecendo. Nas ruas não encontra pretensa companhia, mesmo com tanta gente. O melhor lugar é a praia. Como há muitas, tem que escolher a cada dia aonde vai, pois o dinheiro não dá para pegar condução de uma zona a outra da cidade. Quando escolhe o litoral - sul ou norte - percorre todas as praias à beira d'água, molhando-se em parte, o que a deixa pesada, quase se arrastando pela areia.
Todo o verão vive isso. Teimosamente resiste contrária às opiniões que lhe dizem para não insistir nesse tipo de oferta, que não vai encontrar quem a queira. No inverno, talvez, quem sabe. Não escuta. Sempre foi teimosa e não foi feita para ficar à toa, sozinha sem par. Alguém há de querê-la. Afinal, não dizem que não falta uma bota para um pé inchado? Então! Também lhe avisam do perigo que corre se oferecendo por aí. Perigo até de doença que deixa manchas, que mata. Ela se protege e também a quem com ela está, não é boba.
Não pode viver do tanque para o varal como se não houvesse um corpo com quem a vida partilhar. Admite que não seja mais vistosa, já tenha seus próprios vincos, marcas de tanto uso. É considerada velha, mas ainda serve, tem gente que daria tudo para tê-la. A essa gente não procura, é orgulhosa, não quer ficar colada o tempo todo em alguém que mal se sustenta de pé. Quer pelo menos um ar apresentável, sabendo que será usada, como sempre o foi, não conhece forma diferente e até a isso se acostumara. Melhor isso a ser deixada de lado.
Às vezes pensa em sair da cidade que é do sol o ano inteiro, morar num lugar mais frio. Aí pensa que teria outro problema, não foi feita para tanto frio, quase raquítica, pele azulada de veias amostras. O orgulho mais uma vez lhe atravessa o caminho, pois sabe que não conseguiria viver escondida sob casacos de pele, longos sobretudos, cachecóis vistosos brilhando mais do que ela. Nem olhariam para ela e isso ela não suportaria.
Cansada, resolve arriscar uma vez mais. Se nada conseguir, vai embora e quem sabe amanhã. Aproxima-se de um grupo sentado na areia. Timidamente, oferece-se. O espanto de todos já lhe diz o não. Insiste, não adianta. De tão espantados, nada falam. Um entre o grupo arrisca a dizer o que ela já sabe, como sabe que o verão inteiro ouvirá a mesma resposta:
- Tá doida? Nem pensar em ficar com você! A última coisa que a gente quer agora é uma calça!