segunda-feira, março 31

Sol, do re mi fá de chuva

Chove. Aqui, como em toda cidade que raramente chove, quando chove, chove sem preparação. Época já de findo verão e anunciação do inverno. Contudo, aqui não sabemos o que é inverno. Mesmo quando chove, faz calor. Da terra vem uma quentura que cola na pele, pegajosa pele. Quem sabe do inverno é o povo do sertão que vê os açudes sangrando, que aproveita a água do céu para plantar o milho e o feijão colhidos nas festas de São João.
Chove. De repente as ruas são tomadas por guarda-chuvas, passos apressados que pulam poças de água. Aqui, como em toda cidade que raramente chove, quando chove, o que se vê são ruas enlameadas, barracos encosta abaixo, velhas árvores desabando sobre carros. Somos uma cidade com vocação para o sol, daí negar que um dia choverá. A espera da chuva se faz sem crença.
Chove. A tarde se apresenta num lusco-fusco que cintila nas lâmpadas de mercúrio que conferem às ruas um ar fantasmagórico em meio à água que cai. Na calçada, a moça se desvia do banho irresponsável do motorista em velocidade espanando água pra todo lado. Na bicicleta, o rapaz mal se equilibra tentando proteção sob uma inusitada sombrinha.
Chove. Nesses tempos a água não cai mais de calhas oferecendo às crianças um banho de bica na chuva. Quem se molha é quem desprevenido não acreditou. Não há criança soltando barcos de papel na correnteza formada de rua em rua. O asfalto impossibilita o rio de outrora. É da janela que ela vê a chuva, agasalhada como se em pleno ártico.
Chove. Sem ter janela, o papelão retirado do supermercado se transforma em piso, parede e telhado debaixo da laje. Toda uma gente se agrega em espaços escuros fugindo d’água. Diferente água que dia após dia escava a vida em lagoas.
Chove. Não haverá demora nessa água. A manhã trará o sol e da chuva uma lembrança apenas na areia marcada, brilho nas calçadas, uma notícia a mais no jornal. O agasalho de tricô guardado, papelão dobrado no armazém por empréstimo. O rio aprisionado em suas margens ao longe divisa a ponte entrada de mar.

terça-feira, março 25

ESPaciAl

Espacial - Composição de Belchior na voz de Vanusa. Lá para os idos dos anos 70.
Talvez você lembre da música. Talvez nem seja do seu tempo.
Perca só três minutos para ver. Depois se pergunte como vivem hoje o oriente e o ocidente. Estrela nenhuma consegue unir; céu e terra já têm donos.

quarta-feira, março 19

Pingo do meio-dia

Ai, meu Deus, como estou cansada!, e esse ônibus que não chega, esse calor, a parada cheia e esse homem ainda fica aí falando de política, quem quer saber disso, de que adianta... pelo amor de Deus, essa moça de bota num calor desse, só pode tá doida, tem gente que não tem senso, acho que vou comprar uma água de coco, pelo menos engana a sede até chegar no shopping, ainda mais essa... vou ver se tenho uma moeda, tem água de coco? Um copo, por favor, obrigada, lá vem o ônibus, vou beber logo se não na subida o povo derruba, tomara que dê preu sentar, do jeito que estou cansada, ainda ficar em pé até o shopping, ninguém merece, ainda bem que tinha lugar, vou abrir essa janela pra ver se fica menos quente, tomara que Josias não se atrase, do jeito que ele é, vai me atrasar, podia muito bem deixar para comprar esse tênis amanhã, esse menino ainda me mata, tenho que cortar um pouco as asas dele, inda mais agora que o dinheiro da gratificação diminuiu, não vai dá pra ficar comprando coisa e ainda se está pagando... Oi, tudo bem? É, mulher, tava longe, pensando... tudo bem. Como está Sara, passou no vestibular? Ah, que bom. Não, ele ainda está no primeiro ano, mas diz que vai fazer pra arquitetura, vamos ver, esse povo muda tanto de idéia. É verdade. Ainda, ainda estou lá. O de sempre, você sabe como é. Tem visto Carminha? Ah, eu também, esse povo some e fica difícil, parece até que a gente mora em outra cidade. Nem me fale, um corre-corre mesmo. Tá, vamos marcar, sim. Tchau, um abraço em Sara. Até parece que vai ligar, entra ano, sai ano, é a mesma conversa, nunca dão notícia, se eu não procurar, sei não!, acho que vou ler se não termino dormindo aqui. “Porque estou cansado. O Iraque é o reino do medo. Ninguém vai lhe dizer a verdade se aparecer com o seu tradutor oficial ou acompanhada por outros iraquianos desconhecidos. Poucos vão falar com você, mesmo que fique a sós com eles. Por uma só palavra, pode-se ir para a prisão durante vinte anos; e por uma só palavra, um estrangeiro pode desaparecer para sempre..”, quem decide guerra nunca pensa no povo comum, embora diga que a razão é salvá-lo, como será viver num país em guerra, as pessoas parecem ver com naturalidade, é difícil se colocar assim numa situação limite, ai que calor, bem que podia chover um pouco, ainda tenho que fazer aquele projeto hoje à noite, não sei pra quê disse que podia fazer, droga, agora vou ter que terminar, ainda bem que falta pouco, bem que Luciano podia ajudar, mas vai ficar vendo o jogo e ali morre, reclamando de cansaço. Boa tarde, passageiros, desculpem interromper a viagem de vocês, mas estou vindo do hospital, vocês podem ver aqui a receita,... de novo?, cada ônibus que se pega tem alguém pedindo, como ele pode interromper a viagem se o ônibus continua andando?, vou dar não, esse aí não tem cara de doente, podia tentar arranjar um biscaite, coitado!, deve ser difícil sem estudo, profissão, será que ele tem mesmo esses filhos?, vou dá não, quando eu voltar vai ter outro no ônibus, aí eu dou, já são doze e trinta e cinco, esse ônibus não anda, vou me atrasar, ainda tenho que almoçar, acho que vou comer sushi, melhor do que massa, preciso telefonar para Sônia, saber se ela vai ao aniversário de Lorena amanhã, pedir pra ela passar lá em casa e me pegar, ainda tenho que comprar alguma coisa, Vige Maria, esse mês é fogo, ainda tem os aniversários de Salete, de Lúcia e de Isabel, melhor conversar com o pessoal e fazer uma cota para o presente de Salete, assim não fica tão pesado. Oi. Estou no ônibus. Você já está no shopping? Ainda bem que não se atrasou. Tenho culpa se o ônibus não anda? Não, senhor, aproveite e vá olhando os tênis pra gente não demorar. Não, senhor, pode olhar preço também. Tá, Josias, tá, tô chegando, beijo. Com certeza ele vai escolher os mais caros, que saco, ainda tenho que argumentar com ele, dizer que também tem a irmã que com certeza vai inventar de comprar alguma coisa só pra não ficar atrás, ai, meu Deus, isso é que um calor, o que vou comprar pra Lorena, será que um livro tá bom, ela lê tanto, é capaz de eu não acertar, melhor comprar uma bijuteria, um brinco, ela adora essas coisas, será que Joana almoçou direito, aquela menina só pensa em emagrecer e nem gorda tá, vou levá-la ao médico pra ver isso, na próxima semana não dá, não vou poder sair do trabalho enquanto não terminar aquele relatório, ai que meus pés tão doendo, queria tomar um banho agora. Licença aí, por favor, vou descer, licença, facilite aí, por favor. Ai!

quinta-feira, março 13

Amor de feira

Não chega notícia nenhuma. Uma leve saudade a faz esperar, embora saiba que nada virá. Não pode culpar o carteiro, não se entrega carta que não é postada.
A carta pedindo notícias foi inútil. Sabe que foi entregue, pois fulano recebeu resposta a que mandara. Para ela nada. O silêncio é o adeus não pronunciado.
Paga pelo erro de gostar de frutas próprias de cada estação. O último encontro fora de muita conversa e nada. Não podia simplesmente sair de casa, deixar tudo assim como quem vai à esquina para logo voltar. Não cedera às exigências pedidas em nome do amor. Que amor?
O amor viera de caminhão com as frutas descarregadas no pátio da feira. Melões, graviolas, abacaxis, bananas, cajás da região que há muito não vê. Do avental tirara o dinheiro pagando a entrega e justando prazo para novo descarrego. Olhara bem aquele homem e o corpo de imediato estremecera. Mal disse obrigada e voltara para trás da banca.
Ele dera as costas indiferente a sua presença, interessado no dinheiro, na carga, na viagem de volta. Fora-se assim como chegara: de supetão, cheiro de abacaxi, cajás.
Agora se arrepende do prazo dado para nova entrega. Muito longo para tanta freguesia que acabara rápido os abacaxis, cajás, melões. Muito tempo para essa agonia do corpo que reclama um novo olhar, esquecido frenesi. Vai que chove e alaga as estradas? Como ficará o corpo depois de tanta sede?
O tempo escoa pelas telhas e o caminhão pela estrada, pátio da feira, acerolas, graviolas, abacaxis, serigüelas, mangaba não que é fruta que dá em qualquer lugar. Não pode deixar de sorrir: tá madura caindo de amores por um desconhecido. Grande coisa! Sabe lá que diabo é isso, essa agonia desatada de olho no calendário, admirando fruta besta em banca de feira!
Quando o ranger dos freios do caminhão se faz anunciar, a boca já derrama tudo que tinha planejado: quer a safra toda de abacaxi, dez caixas de melões, de caju que tá na época, graviolas, cajás e umbus verdes, até mesmo dez caixas de jambo que a gente daqui não tem em calçada. E vamos tomar um café lá em casa para se acertar formas de pagamento?
Na quentura do café desarrumara a cama e se fartara de todas as frutas da estação. As telhas ficaram paradas pelo tempo do olho aberto aos sentidos, braços e pernas como caranguejos naquele mangue de sua infância onde em todo carnaval se lambuzava, foto de bloco de cão aparecendo na televisão. Não quer saber da dona do dono do caminhão, da filha que a qualquer hora porta adentro, se é tarde ou cedo, dia de feira ou não.
Depois de tantas feiras, o ranger dos freios foi perdendo o guincho de paixão, o cheiro e o mel do abacaxi se tornaram banais. Não pedira para ser dona do caminhão. Para que fazer o tempo só de cajus, cajás, graviolas e serigüelas, quando nas outras estações há tantos morangos, pêssegos, nectarinas, ameixas, maçãs e uvas?
Uma leve saudade e o ar já se enche de jacas, goiabas, do doce mel do sapoti no ranger de novos freios que descarregam.

quinta-feira, março 6

GoSto de maçã

Às vezes estico a memória num exercício para saber até onde ela vai. E tal como tartaruga, lentamente me vejo em vários lugares, takes se sobrepondo trazendo-me fases distintas da vida. Nem sempre consigo situá-las no tempo, embora as cores e até mesmo alguns sabores se materializem de repente.
Meu avô materno era carpinteiro e vejo-o com serragem pelos braços no movimento do serrote, advertindo-nos, a mim e aos meus primos, do perigo de chegar muito perto. A bancada onde trabalhava ficava no alpendre nos fundos da casa. Era exímio com as mãos e nunca lhe faltava encomendas tanto para lhe fazer sobreviver como para abastecer a família de mesas, armários, cadeiras, na verdade tamboretes, visto que não tinham espaldar. Raramente fez alguma coisa para os netos, mas meu irmão foi o felizardo de ganhar um tamborete bem pequeno que durante anos andou na nossa casa, perdido em uma das mudanças, ele já adolescente e meu avô já morto.
Vizinha a casa dos meus avós era a casa de minha tia com um quintal imenso que tinha até uma vala que servia como rio em nossa imaginação. Não importava que perto dali minha tia lavasse roupa e a água escorresse a céu aberto cheia de sabão. Descalça eu não ficava, pois se o fizesse minha mãe não deixaria barato, mas meus primos sim, e nem por isso adoeciam. No quintal, mangueiras, bananeiras, um pé de carambola, outro de limão, em algumas épocas ramas de jerimum e de batata, serviam de selva em nosso corre-corre e nos concorridos "cozinhados": usávamos um fogareiro e numa pequena panela se misturavam o feijão, o arroz, a carne dados por minha tia. Era uma gororoba de primeira, horrível!, saboreada como um manjar.
Um tio morava longe. Se eu ia para a casa da minha tia sozinha, para a casa do meu tio não tinha como, pois no caminho existia uma longa rua - famosa por acontecer assaltos e ataques a mulheres - ladeada por uma cerca viva de pés de urucu, que pegávamos para os adultos fazerem colorau e nós para lambuzar a cara na brincadeira de índio.
Uma outra tia materna não morava na capital e passei um mês na cidade fria de Currais Novos, cuja altitude é 341m em relação ao nível do mar, quando Natal só tem 31m. De manhã a névoa cobria tudo e eu ali, puxada pela minha mãe – não lembro quantos anos tinha – comendo maça assada, mel formado na coroa de frade. Cortava-se a parte superior do cactus, colocava-se açúcar mexendo-o à polpa, tampava-se e deixava toda a noite no sereno para que de manhã eu tomasse aquilo. Não sei a origem da receita, como também não sei quem ensinou que eu ficaria boa tomando leite "pedrado", literalmente: fervia-se o leite com uma pedra dentro. Ainda bem que não ensinaram que era para derramar o leite e eu engolir a pedra, porque naquele desespero não duvido nada que me obrigariam a tomar. Nenhuma das receitas deu resultado, a coqueluche só me deixou muitos meses depois.
Não conheci o meu avô paterno e minhas avós não foram chegadas a afagos com os netos. A mãe da minha mãe era presbiteriana das antigas, rígida, de pouca conversa com os netos, cuja responsabilidade era das filhas, não de vó. A lembrança mais vívida é a dela lendo constantemente a Bíblia, apertando os olhos, pois até o fim da vida nunca usou óculos. De minha avó paterna é outra estória, porque quando nasci meus pais ainda moravam "dentro de casa" e cresci acompanhando a rixa velada entre ela e minha mãe, pois quando meus pais se mudaram para outro bairro, ela deu um jeito e foi morar na casa vizinha, onde viveu até morrer. Não gostava de netas –e teve muitas – somente dos netos. Pra ela mulher não servia pra nada, além de parideira. Essa opinião era a causa de todos os desaforos entre ela e a minha mãe que não aceitava intromissão na própria vida.
De todas as lembranças, no entanto, nada há a que se compare com a da minha única tia paterna de quem recebi todo o carinho e cumplicidade de que só as tias são capazes. Dela recebi o apelido de amor muito antes de saber o que a palavra significava, com ela fui a muitos aniversários, casamentos, até mesmo a comícios e passeatas políticas, na casa dela comia o que queria, e também podia me esconder fugindo das broncas de minha mãe – não que adiantasse, porque existia sempre a volta! - podia ficar lendo horas seguidas sem nenhuma interrupção. Foi a presença mais constante durante toda a minha infância e adolescência e gostava de me contar que no dia do meu nascimento, ao me ver magrinha, prematura de 8 meses, saíra dizendo a minha mãe que voltaria para o enterro. Ela se enganou e durante toda a sua vida me deu o privilégio de saber o que é amor incondicional de tia!
C'est la vie, c'est la vie!