terça-feira, maio 27

Nada maiS


O primeiro que Rita encontrou foi um par de brincos sob o travesseiro. Duas argolas prateadas. Não se assustou. Certamente Mariana, sua sobrinha de oito anos, tinha deixado os brincos ali na hora de assistir tv, embora não fossem brincos de crianças. Colocou-os na estante para devolver, não sem antes fazer Mariana entender que não apressasse o tempo da infância.
Cinco dias depois, domingo na hora da missa, ao procurar o rosário encontrou na gaveta um sutiã vermelho um número menor que os seus. Do sutiã vinha um perfume de sândalo misturado a cheiro de bebida que uma mancha bem no peito não deixava dúvida. Chateada, porque aquela coisa escarlate deveria ser de Rosana, a irmã destrambelhada que tinha, jogou o sutiã sobre o cabide para entregar depois.
Ao acordar naquela segunda-feira, a cabeça doía-lhe como bebedeira de véspera. Mas nada bebera além das duas taças de vinho, um tanto assim irrisório para provocar tamanho enfado. A dor a água fria do banho aliviou o suficiente para se apresentar à mesa, onde todos se encontravam, esmiuçando os acontecimentos do fim de semana.
Depois de encaminhadas as tarefas para a empregada, telefonou para Rosana dando-lhe conta dos brincos e do sutiã. Ouviu uma negativa para os dois objetos, mas não acreditou. A irmã era dada a brincadeiras e certamente essa era uma delas. Ainda mais que afirmou que aqueles brincos ela usara na festa de casamento da prima na semana passada e o sutiã foi o que compraram juntas há uns quinze dias. Desliga, repetindo pra si mesma que a irmã não tem jeito.
Ignorando os comentários da irmã, vai ao jardim ver as roseiras e todas as outras espécies que com cuidado plantou. O assombro do jardim tira-lhe a voz por um momento. O espaço vazio denuncia que todos os jarros com os crótons desapareceram. Paulo, só pode ter sido Paulo, é o primeiro pensamento; ele afinal concretizara o que dizia há semanas: que cortaria tudo, pois o jardim parecia mais uma floresta. Muda, contempla o jardim sem saber se espera para brigar à noite ou se liga agora mesmo, descascando tudo.
Entra, arreia na cadeira, o pensamento correndo sem fixação. Levanta-se e telefona para o consultório da doutora Marta, marcando uma consulta para amanhã. A atendente lhe diz que ela já telefonara ontem e que a consulta fora marcada para hoje à tarde. As lágrimas ardem-lhe nos olhos e começa a sentir que algo está errado. Não lhe é normal o esquecimento, sempre teve boa memória. Ontem mesmo lembrava do aniversário de 90 anos de sua mãe, acontecido há uns dias. Todos lá, felizes, idade rara para merecida festa.
Volta ao quarto devagar. Entra, senta-se á escrivaninha e pega o bloco de papel dado por Sara, a filha de 9 anos, a caçula, fim de rama. As idéias não estão claras e da ponta do lápis só riscos, rabiscos se entrecruzando. Não sabe o quê, mas sente algo pesando-lhe no peito. Vai esperar a consulta, não adianta falar com ninguém de casa, vão chamá-la de louca e isso ela não é. Abandona os lápis, deita e liga o televisor. O programa matutino ensina a fazer deliciosas comidas proibidas pela hipertensão, pelo colesterol alto. Não gosta de remédio, mas toma. O som da televisão lhe embala num cochilo.
A mão bate-lhe no ombro acordando-a. Olha e vê uma moça vestida de branco, e não escuta o que ela lhe diz, embora veja seus lábios se movendo, fazendo-lhe gestos com as mãos. Coitada, deve ser muda, pensa. Entende que precisa tomar o remédio e aceita a água que a moça lhe dá. Tomado o remédio, vira-se para a mesinha de cabeceira e pega um pirulito, resto da festa dos noventa anos da mãe. Sempre gostou de pirulito. Vê novamente os lábios da moça de branco se mexendo. Mas não escuta.
- Dona Rita, a senhora tá lembrada da festa do seu aniversário? Noventa anos, hem?, quem diria!

******A foto desta postagem chama-se Planície do Esquecimento e se encontra aqui.

domingo, maio 18

Sem tempo


Quem passa sempre por aqui talvez estranhe o espaço entre uma postagem e outra. Ando ligada demais no trabalho, pois dez meses depois de férias, licenças, retornei. Não digo que ao batente, pois tantos anos depois não sei se trabalho pra mim é pegar no batente. De tanto subir escadas e descer ladeiras, a gente fica assim um tanto anestesiado com tudo que nos acontece na vida profissional. Em alguns momentos até parece que saímos de nós e flutuamos além da cena, contemplando-a com uma certa descrença.

O danado é que quando nos fazemos de um jeito não há jeito de mudar. Trabalhar na área de educação é uma mão dupla sempre, há inevitavelmente um prazer misturado à frustração de não se conseguir todo o sonhado, há sempre o esforço para manter a chama acesa, dizendo-se a si mesmo que daqui a uns anos aquelas lições darão frutos. Há uma mania generalizada de na educação se criar uma metáfora com árvore, com frutos como se nós, educadores, fossemos os únicos responsáveis pelo futuro de crianças e adolescentes. Entre a casa e a escola há muito mais razões do que sonha a nossa pedagogia. Há uma gigantesca coisa chamada política e bem no seu miolo uns bichos chamados ideologia, responsabilidade social, renda digna, cidadania. Ai de nós, esse povo que mendiga pelo saber a ouvidos surdos!

E antes que eu termine usando o tom messiânico, planfletário dos anos 70, vejam o vídeo que não tem nada a ver com o que eu estava escrevendo. É apenas uma cena de um filme de 1985, um belo filme de Spielberg, com uma interpretação magistral de Whoopi Goldberg. Eu e Socorro, minha amiga que vive na ponte aérea Rio-Natal-Rio, assistimos vezes sem conta. Em todas sessões ela chorava, talvez na esperança de na próxima o filme ter se tornado menos triste. Nada como relembrar o velho sul dos Estados Unidos com seus negros sofridos, as barcaças do Mississipi, e o bom velho blues para voltar a ter esperança.