segunda-feira, dezembro 29

DOIDera

Tem alma reclusa, dessas que se basta ao sentar e ler um livro em vez de sair, tomar cerveja no calorão da cidade. Os amigos não entendem e por não compreenderem pararam os convites para as noitadas. Só de ano em ano, aniversário, confraternização de natal é que se lembram de convidar-lhe. Cinema no mais das vezes vai sozinha que a companhia não é companhia para as horas que ela pode e também porque não é mais riso pra ninguém. A turma, a outra, é bem mais animada.

Há dias em que pensa que é melhor usar uma capa de invisível e passar pela vida sem ser vista. Mas, é teimosa e insiste em viver. Viver de teimosia é seu lema há um tempão, desde aquele dia longínquo quando se deu conta de que era só, mesmo que vivesse arrodeada de gente.

Já tentou, bem que tentou se livrar dessa sensação, mas não conseguiu. Festa de casamento, nascimento de filho, enterros, formatura, tudo que junta gente só lhe faz aumentar a dor de se saber só. Quando adoece, adoece por inteiro, começando na cabeça e num crescendo pelo corpo que lhe diz que a solidão interna é mais forte e perene. É um diacho de vida.

Não sabe, e olha que faz tempo que nisso pensa, se escolheu viver assim ou se foi escolhida. Se foi escolhida, foi muito azar entre tantas gentes; se escolheu, é bem mais doida do que se pensa. Às vezes até que gosta porque não precisa dá satisfação a ninguém, esclarecendo isso, aquilo, explicar cansa. Às vezes aumenta a dor a uma dimensão que somente a teimosia lhe sustenta.

Outro dia, discutindo com uma amiga, esta lhe disse que o que ela chama de teimosia é apenas fé, a simples e velha fé pregada em todos os púlpitos que não mais freqüenta. Não concordou nem discordou da amiga, pois nem isso valia a pena. Aliás, bem pouca coisa vale a pena, aceita com uma dor indiferente as coisas que vão passando, ficando, passando, assim tipo navegar é preciso, viver não.

Esse estoicismo só é verdadeiro para quem não a conhece, pois na reclusão da alma sofre feito condenada por ser só.

Nem sabe mais as contas que fez enumerando as vezes em que fica em casa sábado, domingo, semanas à noite sem que o telefone toque uma única vez. A telefônica só lhe ver o dinheiro da assinatura básica e nem esses minutos são gastos. É claro que podia telefonar. E já o fez. E escutou que fulano tava doente, que sicrano tinha acabado o namoro e tava na maior depressão, que outra vivia no céu porque arranjara um namorado virtual, que Miguel isso, Noêmia aquilo, que todo mundo tava com problema, mas saía sempre para afogar as mágoas nos copos, nos corpos.

Como todo mundo ela também tem problemas, e eles estão se escondendo nas folhas dos livros que lê, na limpeza obsessiva que criou em casa – não pode ver poeira, nos seriados que na tv assiste, nas conversas – poucas – que mantém com alguns – poucos – estão escondidos até da pessoa que ama. Tá certo que essa pessoa nem se sabe tão amada, acha apenas que é um amorzinho de ocasião. Mas não, ela sabe que é o amor pra toda a vida, possivelmente o último amor que terá. Tem até ciúmes, ciúmes da exuberância do outro – que não acompanha, ciúme disfarçado, mal, que, no entanto, não atrapalha.

É de uma incoerência gritante ao expor o que sente, porque só fala bem sobre o que pensa. E pensa, repensa, é uma verdadeira roda gigante de palavras. Quando trabalhava – ainda trabalha, um pouco menos, mas ainda sim – encantava os colegas com os raciocínios rápidos, as informações atuais sobre quase tudo, até mesmo sobre o conflito no Oriente Médio. Hoje ainda se mantém informada, mas não tem ouvintes; quando tenta numa roda de conversa falar um tanto sobre as religiões que consagram Jerusalém, sobre a menina que roubava livros, ninguém nem ouve, querem lá saber. Só falam de novelas, big brother, a última briga da Piovani e coisas e tais.

É um caso perdido. Mas, de teimosia vive. E achando pouco, ama.



sábado, dezembro 20

EsPElhO EspeLHo meU

A faca desliza sem estranhamento. Um filete de sangue escorre, descobrindo a falta de realeza no vermelho que cai. Um impulso mais forte atravessa a pele causando um pequeno estremecimento. Não dor, um roçar mais quente. Acostumada, não se importa. Enfinca a ponta da faca, fazendo um semi-arco no braço, deixando um risco de sangue viscoso a escorrer. O alvor do pano se escurece no enxugar. Normal. Nada para ela é estranho.

Ninguém conhece esses traços que se misturam às veias das coxas, aos músculos das costas, às glândulas dos seios. Nua nunca se postara a ninguém, médico, amante. Só ao espelho se dá. E por causa dele começara a se lanhar em desespero à imagem refletida. Naquela hora aprendera a odiar seu corpo.

Não adiantava os vestidos moldados com desvelo que a mãe insistia em meter-lhe corpo afora. A lingerie comprada em grandes lojas, tecido que amaciava as mãos e punha-lhe fogo. Vestia obrigada e amuava-se calada e hirta na cadeira da sala à vista de todos. O silêncio lhe roendo por dentro, na cabeça de todos uma doida. De que adiantavam aqueles panos, se a carne era má e feia? Pra que tudo se a danação vivia dentro dela, forçando léguas? Des tá, dizia pra si, um dia verão!

A promessa nem mesmo lhe tinha sentido, pois não sabia o que fazer para descontar a raiva que lhe impregnava o viver. Olhar-se era o que lhe restava. A imagem era de um mar sem fim, o espelho parecia entronchar a moldura, querendo da parede se esvair. Se tivesse coragem, punha-se nua à frente de um médico pedindo que lhe arrancasse o excesso, deixando-a fina. A vergonha, no entanto, não lhe permite tal ousadia.

A casa se tornara um claustro. Há tempo deixara a escola, os encontros com as amigas. Contato só telefônico, mesmo assim com poucos. Como se mostrar larga ao ponto de mal caber numa cadeira? A imagem que via era grotesca, puxada por um guindaste para subir num ônibus, em automóvel qualquer, vítima de risos, olhares de repulsa, alguns até de pena.

Percebe que aos poucos uma inquietação se apodera da mãe. Olhares dissimulados, gavetas remexidas, sinais de uma vigilância disfarçada. Não se incomoda. Aprendera a esconder os sinais. Confiante, sabe que a mãe não lhe descobrirá os esconderijos onde seus utensílios de tortura são guardados, onde seus líquidos viscosos em fel são enterrados.

É preciso ter cuidado com o comer. Não pode se deixar convencer pela mãe que reclama da comida de pinto que jaz no prato. Todos os dias a cantilena à mesa lhe martela a necessidade de se alimentar bem, de se exercitar, que ela não está Moby Dick. Sabe de tudo isso, mas sucumbir àquele pudim é deixar mais disforme a imagem no espelho, é riscar mais sangue no corpo que a custo se mantém sobre os pés.

Aos poucos um cansaço toma conta de seu corpo, as pernas com vida própria se negam ao movimento, deixando-a prostrada na maior parte do tempo. Recusa o suco, o remédio, nega-se ao médico. Alucinações lhe atormentam e aos gritos pede para que retirem do quarto o espelho, onde se vê com tantas longitudes.

Alarmada ao ver os lanhos no corpo da filha, a mãe não compreende. O primeiro pensamento é de culpa pela cegueira em não ver o quanto a filha sofria. Na tentativa de remediar o que já parece definitivo, chama o médico. Basta um olhar para que o doutor se transforme em juiz decretando um fim. O espelho ainda no quarto atesta um corpo ludibriado pela ilusão de ser vasto, quando na cama repousa somente pele, ossos à vista.

domingo, dezembro 14

As tiMe goeS bY

Ainda quando estudava o antigo ginasial, uma professora de Português, interessada em que os alunos gostassem de ler e apreciassem os clássicos, passou como tarefa de avaliação uma redação sobre o texto AMOR MENINO (parte II do Sermão do Mandato – mas isso só soube muito depois já na faculdade) do Pe. Antonio Vieira.
Agora, imaginem a dificuldade de adolescentes nos idos final dos anos 60 em cumprir essa tarefa. O que sabíamos do amor? Nada. Do tempo muito menos. O amor era em preto e branco nas fotonovelas que eu comprava no sebo na banca da feira livre, hábito que era também o das minhas amigas, caso contrário não leríamos nada. Apesar dessas imagens de amor, não lembro se as conversas já rondavam assuntos de namoro, casamento. Acho que não, pois éramos àquela época imaturas para tais assuntos. O universo ainda girava em volta de livros, estudar para provas, sorvetes, ouvir música e meninos não faziam parte do grupo. Aliás, eram olhados com uma estranheza que beirava ao exílio.
Em casa não se falava de amor, da sua alquimia. Os pais raramente se beijavam ou se abraçavam publicamente, nem mesmo – ou principalmente – na presença dos filhos. O amor aparecia nos namoros que observávamos em nossas primas, irmãs
– no meu caso não, que não tenho irmã – e vizinhas mais velhas. E as vizinhas eram as secretamente invejadas, pois namoravam “descaradamente”, beijavam os namorados na rua sem a menor vergonha, saíam e entravam de carros com uma desfaçatez que os moralistas nomeavam-nas logo como filhas da outra (daí a inveja secreta, vá que também fôssemos nomeadas!).
Se não falavam entre si sobre o amor, nem rabiscavam para nós, crianças – aos olhos dos pais e parentes adultos não crescemos nunca. Uma aproximação de um colega já era uma ameaça em potencial, tanto que tratavam logo de afastar o dito cujo, ou bem pior – faziam com que nos afastássemos dele. Lembro nitidamente de um colega do quinto ano de admissão que uma tarde resolveu aparecer na minha casa sem ser para estudar. Só tive tempo de chegar à porta e minha mãe saltou lá da cozinha perguntando o que ele queria e no mesmo tom, acho que antes mesmo da resposta do Josué – esse era o nome do boy – mandá-lo embora. Ele foi e durante o resto do ano letivo não falou comigo, o que manteve enquanto estudávamos por quatro anos em outra escola e ainda na faculdade quando nos encontrávamos no campus universitário, adultos, eu, casada e ele ainda solteiro. Depois ele casou, virou físico e deve ter apagado o trauma (ou não, caetaneando).
Essa vigilância de minha mãe não valeu quando eu tinha quatorze anos, pois em plena Copa do Mundo de 70 eu ameaçava um namoro com um rapaz que até então tinha sido meu vizinho, mais velho do que eu onze anos (hoje seria assédio sexual, que coisa!). Para ele as restrições foram bem menores, tão menores que com ele casei mal completei dezoito anos. Aí é outra estória.
Se o amor era assim, o tempo era apenas o vagaroso passar das horas divididas entre escola, domingo marcado pela feira à porta de casa e escola dominical de manhã, arrumar casa, estudar, conversar na calçada, assistir novela não, que não tínhamos televisão. Tudo parecia muito longo, muito longe. O máximo do tempo que víamos era completar dezoito anos e entrar num cinema para ver filme adulto, poder beber nem que fosse um gole de vinho e ler abertamente aqueles livros considerados proibidos (Até hoje não sei por que, pois li muito antes dos dezoito anos e achei-os uma besteira e falo aqui especificamente da Nossa Vida Sexual do famoso autor Fritz Kahn, cujo exemplar vivia escondido na gaveta do guarda-roupa do meu primo mais velho, que morava vizinho a minha casa).
Ao contrário do amor, o tempo nos mostrou ser traiçoeiro quando em um intenso inverno, interior sob a ação de enchentes, estradas carregadas pelas águas, uma colega morreu afogada ao tentar atravessar um rio agarrando-se às cordas que serviam como uma ponte suspensa. Ela não agüentou o cansaço e caiu, sendo arrastada pelas águas. Nem a família nem nós da rua superamos de todo esse acontecimento, ainda mais que no decorrer do tempo vimos a família se desintegrar como conseqüência disso.
Passados tantos anos, não entendo de amor e muito menos de tempo, embora sinta e veja em mim mesma a ação dos dois. Já sorri, fui feliz, chorei e desanimei com os dois. Se posso conquistar um, é uma mera ilusão, pois o outro se atrela a esse enfraquecendo-o ou fortalecendo-o. Do que não aprendi, os dois me ensinaram que a vida é só uma e por isso mesmo deveríamos nascer velhos e aos poucos regredindo, aplicando o que sabemos, deixando pelo tempo a casca do que não nos serve para pequenos esquecer, morrer, renascer.
Mesmo com essa inversão, nem o amor, tampouco o tempo, conseguiria nos livrar desse ciclo de vida-morte que nos aprisiona contra nossa vontade. Na ânsia de ganhar tempo, perdemos muitas coisas e no medo de amar, perdemos muito tempo. Afinal, o
poeta é quem tinha razão, pois

"A vida é o dever que nós trouxemos para fazer em casa.
Quando se vê, já são seis horas!
Quando de vê, já é sexta-feira!
Quando se vê, já é natal...
Quando se vê, já terminou o ano...
Quando se vê perdemos o amor da nossa vida.
Quando se vê passaram 50 anos!
Agora é tarde demais para ser reprovado...
Se me fosse dado um dia, outra oportunidade, eu nem olhava o relógio.
Seguiria sempre em frente e iria jogando pelo caminho a casca dourada e inútil das horas...
Seguraria o amor que está a minha frente e diria que eu o amo...
E tem mais: não deixe de fazer algo de que gosta devido à falta de tempo.
Não deixe de ter pessoas ao seu lado por puro medo de ser feliz.
A única falta que terá será a desse tempo que, infelizmente, nunca mais voltará."

quarta-feira, dezembro 3

FaLtA de iDéiA

Eu gostaria de hoje ter chegado em casa com uma idéia quase acabada para aqui escrever. Há dias, muitos dias, que não escrevo. Não escrevo nada da minha cabeça, a não ser memorandos, ofícios, conclusões de análises de planilhas, letras burocráticas que não contém metáforas, poesia alguma.
Mas, a idéia não chegou comigo. São 21 horas e 23 minutos, fora do horário de verão, e não faz nem 30 minutos que cheguei em casa, pois hoje trabalhei até as 20 horas. Como já tinha jantado por lá mesmo, ao chegar tomei banho, comi uma goiaba e liguei o computador na vã esperança que de repente - como acontecido de outras vezes - a tal da inspiração começasse a me azucrinar o juízo, querendo pôr-se a descoberto. Qual o quê! Até agora só transpiração do baita calor que faz nesta Cidade do Sol.
Não tenho escrito, porém continuo lendo. Impregnada das letras de Mia Couto, fico mais apequinhada para escrever. O que será que se passa na cabeça dele especificamente ao escrever? Será que o livro se forma inteiro na cabeça ou vai se fazendo aos poucos, os personagens ganhando vida, ousando ter domínio sobre o escritor? Sei não.
Cada pessoa ao ler deixa o pensamento vagar de uma forma. Uns viajam nas paisagens descritas, visualizando espaços e personagens; outros imaginam formas de falar, os gestos dos personagens como se estes fossem pessoas que estivessem ali, postas bem a sua frente; alguns criam a realidade inteira, transpondo a ficção para o mundo real, ao ponto de se pegarem falando sozinhos, pensando no que leu como se tivesse de prosa com os personagens, até mesmo brigando com eles (às vezes até com o autor por ter "deixado" determinada coisa acontecer).
Os livros de Mia Couto suscitam essa capacidade de eu me ver ali no espaço e tempo dos personagens, visualizando-os naquelas situações, tentando compreender-lhes os sentidos que põem na vida. Neles residem uma procura contínua em manter a identidade em meio a tantas desilusões, destruições não só da terra, mas de um povo sofrido por tantas guerras. (Há no livro Terra Sonâmbula uma opinião sobre guerra, mas não vou me levantar para procurar - o livro não está aqui por perto - pois prefiro escrever de uma sentada só - literalmente).
Ao mesmo tempo que os livros desse moçambicano me fascinam pela capacidade lingüística, pela poesia que salta de sua prosa, pela consistência dos personagens bem criados, completamente verossímeis em suas ações e falas, também me inquietam por que não consigo apreender em sua totalidade a essência do povo que transita entre dois mundos, mistura de crendices (para nós) e racionalidades. Fico a imaginar o quanto há de ficção e de realidade naquilo que é contado.
E isto é que faz um livro ser um bom livro: o nos fazer pensar, inquietar-se à medida que se lê, quando ao terminá-lo ficamos com a sensação que aprendemos muito, que aqueles personagens não são meras invenções, mas gente que mora do outro lado do oceano.
Obs.: Obrigada a meu irmão e aos amigos do Errante por me apresentarem Mia Couto.