sexta-feira, maio 15

Uma ROSA é uma rosa

Quando a conheci, tinha o cabelo penteado de modo casual para parecer despenteado, não muito longo, de uma cor que hoje não sei mais precisar. Possivelmente louro, mas não o convencional para se associar à famigerada fama de loura burra. De burra não tinha nada; aliás, não tem.
Era abril de 1991 e sua chegada provocou um verdadeiro terremoto em um lugar acostumado à mesmice, onde quem tinha muitos anos de trabalho se vangloriava do tempo, do amor pelo lugar, mas preferia que nada fosse alterado. Alterar era questionar, inquietar-se, possivelmente trabalhar mais. Incisiva, não demorou a anunciar a que tinha ido. Não estava ali pelos seus belos olhos claros, mas para colocar em prática suas idéias sobre o que seria uma educação de qualidade.
Tinha em si uma força e uma coragem ímpares, embora em alguns momentos parecesse desiludida com a natureza humana, com os discursos distanciados da prática. Contudo, não perdia os rumos. Cautelosa, observou o espaço, as pessoas, dando-lhes tempo para a poeira do terremoto se esvair no vento. Passado o tempo que a si mesma se deu para as acomodações, impulsiva pôs mãos na massa furando o bloqueio da indiferença, da raiva fermentada que em alguns atravancava o fazer.
Passamos a partilhar os desafios que o trabalho nos impôs. A ela, tacharam de autoritária por querer o cumprimento de horários e funções, por não aceitar uma prática que não alcançava os alunos; a mim, de traidora por não compactuar com os desmandos, pretensamente me desviando do grupo a quem cabia uma oposição, quaisquer que fossem os direcionamentos. O lema cubano virou moeda corrente: si hay gobierno, soy contra. Por um tempo, ainda foi possível no perder la ternura. Depois, não.
De tanto vê-la na ânsia de acertar, mudar o que parecia pedra e fogo, preguei-lhe na sala um cartaz com os dizeres de Drummond: “Lutar com palavras é a luta mais vã. No entanto, luto mal rompe as manhãs.” Era um lembrete para a perseverança da esperança necessária a todo educador, que ela se lembrasse que educação é um fazer complexo, demorado e árduo por que complexas são as pessoas e o domar a mesmice não é tarefa que se faz em dedos contados.
Na convivência, descobrimos o gosto por Chico Buarque e um bom vinho. Perdíamos a noção do tempo entre papéis e conversas à noite, atualizando documentos, idéias de trabalho e o encantamento singular que toda amizade tem. Via nela uma fome de vida, uma pressa em viver tudo a que tinha direito de uma vez só, uma inquietação que não a deixaria ali por muito tempo. Nem ali nem na vida que à época vivia. Imaginava-se em longas travessias, sorvendo de uma única vez o que a vida lhe reservaria, mãos e braços abertos para o que viesse. E a vida não lhe seria aquelas salas, aquela gente.
Muitas vezes me falava que não deveríamos estar na profissão de professora, que éramos inteligentes demais para aquela mesmice (modéstia dela e minha), para uma profissão que dez anos depois ainda teria quase que os mesmos resultados. Sonhava montar uma empresa, um restaurante, um negócio que lhe desse prazer e dinheiro. O mundo era muito vasto.
Quando as palavras já não surtiam efeito, ela se foi. Eu fiquei e lá permaneci para também sair quatro anos depois. Ela realizou os sonhos dos negócios e do prazer de ter restaurante. Aumentou a família, divorciou-se. A exuberância continua e acredito que não passe indiferente pela vida de ninguém. Eu continuei educadora, não aumentei a família, divorciei-me.
De caminhos paralelos temos feito a nossa vida. Há anos não nos encontramos, não tomamos o vinho, não ouvimos as velhas músicas de Chico. No entanto, a qualquer dia recomeçaremos a conversa de onde paramos, pois de longe há muito perto a identidade que nos fez colegas de trabalho ao mesmo tempo amigas onde estejamos.
PS.: Parabéns, Rosa Macedo.

terça-feira, maio 12

Lição de casa

Vinte e cinco anos passei trabalhando em um mesmo lugar, na mesma escola. Para ser exata, foram 9.484 dias de serviço, segundo está escrito na placa que a mim foi dada pela atual direção da Escola, quando de lá saí. Passei metade da minha vida na Escola Mun. Iapissara Aguiar. Saí da escola há dois anos e a escola ainda não saiu de mim.
Não sei se algum dia sairá. Acho que não. Acho que ela sairá de mim quando em mim não restar memórias e ainda assim temo que ela será uma das lembranças que se misturarão ao turbilhão de imagens provocado pela velhice. Eu espero envelhecer.
Escrevo isso hoje, porque fui na página do Orkut de uma aluna que hoje aniversaria e em uma das fotos em seu álbum ela está com uns colegas sentada sobre a mesa do refeitório, os pés sobre o banco, um colega sentado adequadamente no banco. E lágrimas me vieram quando li a legenda posta na foto: saudades. Ela sente saudades dos colegas e do tempo que passou lá naquela escola. Eu também.
Não sei se o que me faz sentir saudades e chorar é o espaço físico da escola que vi crescer, a falta da balbúrdia que toda escola tem e não é mais do que vida, se é a falta do convívio com os amigos que fiz por lá. Desses, alguns ainda me acompanham onde for, onde estou, cimentam a amizade que lá nasceu. Possivelmente, choro sentindo falta de mim, da professora idealista que um dia chegou acreditando mudar o mundo. O mundo eu não mudei, mas tenho consciência que mudei alguns alunos e mais consciência ainda de que eles me fizeram mudar.
Aprendi com eles, e nunca deixarei de reconhecer isso, muito mais do que fui capaz de ensinar-lhes. Alguns quando me encontram me agradecem até mesmo pelas reprimendas, pelos "castigos" (castigo maior era chamar a mãe e dizer do comportamento, até que eles me ensinaram que o melhor seria conversar e com eles mesmos negociar uma mudança, fazendo-os reconhecer o erro, "pagar" pelo mal feito).
Não me perguntem se tinha uma linha construtivista, piagetiana, ou de algum outro teórico. Tinha apenas a clara noção que se deve ensinar responsabilidade, que a vida não é fácil, que pagamos um preço por tudo, sejam nossos acertos e/ou erros, mas nem por isso a vida precisa ser só dever de casa, brincadeira, tirar dez. Pode-se sim, tirar somente a média para passar, pode-se brincar, "ficar" com alguém nos bancos da escola sem necessidade do escurinho do muro. Pode-se achar a escola um lugar bom onde também se estuda. Também, porque alguns alunos acham que escola é lugar pra tudo, menos pra estudar!
Vez em quando vou lá. Sou recebida muito bem, festejam-me e é bom. Mas, paro e contemplo as árvores que plantei, (das que encontrei lá há vinte e sete anos atrás, não resta nenhuma) e vejo, sinto que não é a mesma coisa. Poucas vezes voltei ao turno vespertino, que foi sempre o meu xodó, pois nele fui professora, coordenadora antes de ser diretora. As minhas maiores lembranças estão naquele horário das 13 às 17:30, antes até 17, 18 horas, começando mais cedo, mais tarde. Não tenho coragem de enfrentar o entardecer sentada em dos bancos olhando a quadra se encher de alunos para mais um treino, alunos sentados nos bancos fazendo hora pra ir embora, correndo, fazendo "arte".
Também me aborreci lá. Muitas vezes. Dores menores, maiores, de todas as cores e faces. Fui desrespeitada, ignorada, agredida na minha integridade, pessoas me decepcionaram, feriram-me profundamente. Tão profundamente que ainda lembro da dor, embora os detalhes já apareçam nublados. Muitas vezes chorei, quis sair e não voltar e voltava. Até que saí de vez.
Saí acreditando no que fazia, saí pelo esgotamento físico e emocional de lidar com coisas e pessoas que andavam e davam voltas, a impressão que nada mais valia ser feito. Era a hora de deixar para outros a tarefa, deixar a alguns, especialmente, a brecha que tanto reclamavam para respirar sem ter uma "autoridade". O tempo, senhor de todos os males e bens, dirá a resposta. A mim, ele já me disse e diz que o poeta tinha razão: "Quem quer passar além da dor, tem que passar além do Bojador. Valeu a pena? Tudo vale a pena quando a alma não é pequena".