quarta-feira, julho 29

Fermento

Não parecia, mas era. Era bruxa. Não das antigas com vassoura e balde e corvos sobre os ombros. Das modernas, aliás bem modernas. Tinha uma namorada. É verdade que a namorada não valia nada, só queria o bem estar proporcionado pelo dinheiro, mas tava ali toda noite lhe dando uma costela quente. Nem sempre o algo mais.
Tinha 60 anos, aparência de 50 depois de algumas correções estéticas, aposentada por órgão federal depois de muito trabalho e algumas bruxarias. Viagem anual à Europa, banho de civilização e guarda-roupa renovado nas calles espanholas e piazzas italianas. Quando necessário, usava alguns truques sem que os outros percebessem. Era uma fera na arte da dissimulação.
A namorada era o alvo preferido. Freqüentava o mesmo bar há anos, embora de restaurante tivesse mais opções, porque era adepta da boa mesa. E era no bar onde as brigas sempre começavam. Bastava um olhar atravessado, um sorriso mais gentil para que os demônios lhe cutucassem disparando suspeitas em volta da pobre moça que nada fizera – nem sempre, é verdade!
Ciumenta, todo o conforto que conferia a Alzira – esse o nome da infeliz (embora não muito) - era cobrado em atenções eternas, mínimas e possessivas. Era o telefonema que não dava quando chegava na academia, quando saía – a moça fazia academia religiosamente todos os dias, paga, claro, pela bruxa; o chá que não deixara já feito na garrafa térmica quando saíra para a faculdade – paga pela bruxa; era o decote da blusa um pouco mais embaixo nas costas, um tanto da barriga saradíssima aparecendo sob a blusa, mostrando o piercing do umbigo – pago pela tal. Era um rol de atenções que deixava Alzira completamente antenada. Suas mentiras tinham que ser cuidadosamente planejadas.
E havia várias. Morrer de estudar era uma delas, a que tinha mais valor. Nessa, mal freqüentava às aulas, assistia apenas o essencial para não perder nenhuma disciplina, nem tanto pelo conhecimento não aprendido, mas porque a bruxa saberia e daria um belo sermão, do qual ela já andava cheia. Outra bem satisfatória era a da colega que passava por alguma dificuldade e precisava dos seus cuidados – o altruísmo sempre lhe dava pontos! – o que lhe permitia algumas escapadas, mesmo que à la cinderela estivesse em casa antes de meia-noite.
No final não tinha do que reclamar. Ficaria atônita se soubesse que a bruxa dissimulava a aceitação das mentiras. Sabia de todas as andanças de Alzira, mas ainda não chegara a hora. Chegaria, ah! chegaria, ela faria acontecer quando estivesse pronta. Quando todos os ingredientes estivessem misturados, os astros posicionados corretamente. Não tinha pressa.
Quando conhecera Alzira achara que enfim a felicidade batera à porta e entrara. Há 5 anos estão juntas, trinta e cinco anos de diferença entre elas, embora isso não fora problema no início, nem mesmo agora. Apesar da idade, sentia-se jovem, era saudável, tinha fôlego ainda para muita empolgação. Não era à toa que gastava uma verba considerável com cosméticos, alimentos orgânicos, hidropônicos, reposição hormonal e o escambau.
Enganara-se. O problema não era a diferença de idade, mas o caráter de Alzira. No início desculpara, achara que era deslumbramento de menina de periferia. Depois, não. Era mau caráter mesmo e tinha que encarar. Encarava, mas de ladinho, dando uma face, escondendo a outra. Não era bruxa por nada.
Alzira não suspeitava que a enganada era ela. Achava-se o máximo nas mentiras inventadas, atuações de verdadeira atriz. A dupla se completava, rancor de ambos os lados inundando a alma tal rio na vazão do açude. Um dia arrebentaria, ambas sabiam, mas cada uma a sua maneira confiava na própria vitória, vantajosa vitória arrasando a outra sem muito alarde, na surdina onde todo ódio fermenta.
Um domingo após o café, Alzira começou a passar mal. Dores terríveis acometiam-na no abdômen como se algo se partisse dentro de si. A dor não lhe era estranha, vez por outra vinha, principalmente se a comida era apimentada e tomava-lhe o fôlego, deixando-a a ponto de desmaiar. Sozinha, pois a bruxa saíra para a caminhada e ainda não voltara, foi penosamente à cozinha e tomou uma dose de um poderoso analgésico. De volta à sala, arriou no sofá esperando que o remédio fizesse efeito, adiando a necessidade de chamar por alguém que pudesse levá-la ao hospital.
Mas nada. A dor não diminuía e a bruxa não chegava. As chamadas para o celular só caíam na caixa postal. Lívida, o suor inundando-lhe o corpo, resolveu ligar para a emergência. Não entendia por que a bruxa não atendia tampouco por que ainda não voltara. Será que acontecera algo? Não dava tempo de pensar de tanto que era a dor. A ambulância chegou e foi transportada para o hospital, o enfemeiro de imediato verificando o quanto a pressão estava alta.
Entre a casa e o hospital, Alzira desmaiou. Assim, não viu que sobre a maca o corpo da bruxa encolhia-se todo machucado pelo assalto sofrido durante a caminhada. Um sujeito de capuz lhe assaltara no parque e ao ver que não estava com nada de valor, além de celular, batera-lhe, roubara a chave de casa encontrada no bolso do moleton. A bruxa por entre as dores, viu o camarada correr com a chave na mão e só pensou o que ele faria com Alzira. Mal sabia ela que Alzira tomara do analgésico cuidadosamente preparado para aumentar-lhe a pressão quando sentisse dor.
Chegara a hora. A bruxa não podia usufruir da vitória. Alzira sob os cuidados médicos, via sua vida subindo e descendo no ar, sem saber que o cara fizera o ataque encomendado sem deixar marcas de premeditação, arrombando-lhe agora a casa e roubando-lhe os dólares cuidadosamente escondidos.

domingo, julho 19

No interior do interior

Macabéia é um dos personagens mais singulares da Literatura Brasileira. A moça que vem do interior para a cidade grande na tentativa de realizar grandes sonhos. Grandes sonhos não significam a mesma coisa para todo mundo. Os de Macabéia são basicamente encontrar o grande amor e ser feliz para sempre, mesmo que essa felicidade seja com um cara simplório, que fala difícil sobre parafuso e sonha ser deputado.
O sonho de Macabéia acaba abruptamente sob as rodas de um carro, justo quando ela saía da casa de uma cartomante que lhe predissera um futuro brilhante. Não lembro detalhes do livro, não o tenho aqui, mas em linhas gerais a narrativa se concentra em uma moça simples com uma vida monótona, que ouve rádio à noite depois de um dia repetitivo de tarefas em um escritório.
Todos nós conhecemos alguma Macabéia, aquela pessoa que sai do interior, mas não consegue tirar o interior de dentro de si. O desafio da cidade grande não é suficiente para lhe encorajar a vencer limites, buscando um autoconhecimento. Pelo contrário, tudo lhe amedronta, parece-lhe estranho. A duras penas encontra um trabalho limitado, que lhe dá apenas o suficiente para não morrer de fome. Aprende aquela determinada tarefa, não toma iniciativa no trabalho, mas sabe seguir orientações à risca. Nos finais de semana, mal sai, no máximo uma praia depois de uma certa resistência inicial, que água salgada é ruim de engolir.
As oportunidades vêm e não são percebidas. O medo do novo paralisa a vida. Se a vida parece triste, parada, não se reclama; melhor isso, que nada. Geralmente, há duas vidas: a vivida e a sonhada, esta muito mais colorida e atraente que a real, embora proibida porque parece imprópria aos olhos de Deus. A fé em um Deus onipresente não permiti voos, tudo é visto sob o olho do castigo eterno. Felicidade não é coisa fácil, é um bem que não se alcança, não através de prazeres, coisas mundanas.
O casamento está quase sempre no final de um arco-íris. Não casar é atestar uma incapacidade contrária à mulher, destino natural de quem foi abençoada. A mulher infértil é tal qual uma árvore ressequida, nem mesmo tem sombra. Conviver com isso é muito mais difícil que viver um mau casamento. E algumas casam mal, vivem mal até que a morte os separe.
Sempre o mais difícil é tirar o argueiro do próprio olho. No mundo moderno, onde não há espaço para a ociosidade, o trabalho ocupa tanto tempo da nossa vida, acostumamo-nos a tirar o sustento literalmente do suor do próprio rosto, que nos é difícil entender as que fazem opção por um emprego sem expectativa de crescimento, quem enterra a cabeça no chão tal avestruz, quem conduz a fé para esperar que tudo caia do céu sem a necessidade de mover-se.
Não sei se herança do feminismo ou se conseqüência de prover a mim mesma, a vida de quem está parada me parece um desrespeito à própria vida. Independente de crenças religiosas – se não lembramos as passadas nem antevemos a futura – há uma vida por vez e esta é pra ser vivida. Os limites na maioria das vezes são impostos por nós mesmos, somos nós que nos deixamos dominar pelo medo. E há muitos medos hoje. Eu, particularmente, tenho vários. Entretanto, negá-los, não enfrentá-los não criam a mágica de fazê-los desaparecer. Às vezes faz até o monstro agigantar-se.
Não é fácil, é necessário levantar-se a cada manhã com espírito de lutador, porque há vários leões na selva que precisam ser no mínimo afugentados. Apesar de não concordar com o modo de vida de alguns – algumas (também alguns – muitos – não concordam com o meu!), aprendi a não dar conselhos, muito menos pavonear-me com elogios daquelas que paradas contemplam a minha rua, mas não ousam atravessar para o lado de cá.
O livre arbítrio – invenção do homem atribuída a Deus – é magnífico nesse sentido. Cada um que viva da forma que melhor lhe convier, desde que não cometa roubo, assassinato, calúnias. Se acho a vida de alguém uma vida macabéia, possivelmente esse alguém acha que a minha é uma vida Capitu (e aqui deixo a interpretação para vocês!).