terça-feira, fevereiro 24

Perhaps

Pode ser meio assim
meio assado
mal passado
um simples acaso
ocaso
incêndio ocasional
água enchente
percalço acidente
via sem acesso
acesso de loucura.
Pode ser assim meio
sem jeito
disfarçado de lado
campo minado
meia circunferência
linha meridiana
tangente diagonal
descalço terra quente
fogo feito cinza
verão outonal.
E assim pode ser
meio assim
volta e meia
volto já.

quinta-feira, fevereiro 19

Ângulos

Olhar de frente
o furo
que se fez na alma
olhar de costas
a mancha
que ficou da mágoa
olhar de lado
a incerteza
que desviou os passos
olhar de cima
o rastro
que se perdeu no tempo
olhar de baixo
a fé
que sobreviveu a tudo
e recomeçar.

sábado, fevereiro 14

Adiamento de vida

Era uma vez uma menina e o seu maior sonho era aos dezoito anos sair de casa, ter sua própria casa, seu carro, tudo isso à custa de um belo e grandioso emprego. Não pensava em casar e isso torturava sua mãe, para quem filha minha só sai de casa casada.
Na festa dos seus quinze anos, entre tantos presentes, ganhou um relógio que usou por pouco tempo. Ser controlada pelo tempo não era seu forte. Até hoje é extremamente impontual, odeia rotina e o antigo relógio repousa na caixa original como uma lembrança de uma festa que tinha tudo pra dá errado. E deu.
O vestido rosa apertava-lhe o busto, a saia rodada não era nada do que tinha imaginado. A maquilagem que lhe foi feita serviu muito bem para esconder as lágrimas que durante todo o dia brigaram com a mãe na tentativa de convencer-lhe que a festa era dela, ela tinha o direito de resolver como fazer. Não teve.
Passado o trauma, quando conseguiu o primeiro emprego comprou uma televisão e a transportou de ônibus para casa. Era um troféu carregado sobre os ombros. Ela agora era gente. Ao ver aquele bem, a mãe não teve dúvida: requisitou o objeto novo para a cozinha, trocando-o pelo televisor velho de imagens trêmulas. Calada estava, calada ficou. Tem nada não, quando eu completar 25 anos eu saio de casa.
O segundo emprego a obrigou a estudar à noite. O comércio no shopping arrancava-lhe todas as forças, dormia na aula, mas foi aprovada nos três anos de ensino médio. Não comprou mais nada pra casa, o dinheiro repousava numa bela conta poupança. Não temia pela conta, Collor já tinha feito sua raspagem.
Perto dos 25 anos, a loja faliu e ela foi despedida. Adeus emprego, adeus cursinho para fazer vestibular. O seguro desemprego a sustentou durante três meses. Passado o tempo, nada de novo trabalho e a cada mês a conta minguava. Se não olhava pra relógio, passou a olhar para o calendário na parede da cozinha já repleto de X dos dias sem emprego. Sair de casa ficou adiado.
Depois de quase um ano assim, encontrou emprego, sustenta-se com ele e é uma das melhores profissionais no ramo. Já passou dos trinta anos, comprou carro, concluiu faculdade, e transformou o quarto na casa da mãe num apart-hotel e acha que só vai sair de casa quando casar. Isto é, quando arranjar um namorado, porque os homens de hoje são todos uns safados que não querem compromisso.
Como disse Marcelo, anda à procura da lincatura do sartejo!

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* Marcelo, é um gaúcho arretado, amigo virtual que escreveu um belíssimo conto chamado A Lincatura do Sartejo – as palavras não existem; são atribuídas às desculpas que usamos para não realizar determinada coisa.

sexta-feira, fevereiro 6

CansAÇO


Joga o sapato e se perde. O cansaço impregna até o ar que respira. A toalha molhada enxuga-lhe o corpo aquecendo as lágrimas que durante todo o dia conteve. Nua e descalça estira a alma na cama. Fecha os olhos, abrindo-se para um mar calmo, nuvens ao longe, gaivotas pousando sobre um passadiço de navio que somente sua imaginação vê. Besteira. De repente, sobressaltada, pula da cama.
Abre a bolsa, tira a chave. Abre a vida e se joga.

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É obrigado a parar no sinal. Impacienta-se porque não vê carro nenhum no cruzamento, apenas a presença da câmara o impede de continuar. Um carro prateado para ao seu lado. Percebe uma mulher na direção e tem a impressão de ver asas. O sinal não abre, escuta o bater de uma porta e estranha. Olhando em direção ao carro de antes, não encontra mulher alguma. Tenta olhar em todas as direções, mas o cinto de segurança impede-lhe os movimentos.
Vira-se e destrava o cinto no mesmo instante em que o sinal abre. No pára-brisa do carro, a mulher ergue a mão, estilhaça o vidro e o leva em direção ao céu.