sexta-feira, outubro 12

A rua que foi minha


Madrugada. Um carro aberto, acompanhado por uma longa comitiva, passa veloz, frustrando os aluísistas que esperaram horas e horas pela passagem daquele carro. Cansados da espera, recolheram-se as suas camas, embora completamente vestidos, pois na hora que os foguetões anunciassem a passagem do carro, era só levantar e correr à rua. O que se pôde ver foram os cabelos ao vento do senador americano Robert Kennedy, em pé ao lado de Aluízio Alves. Os moradores da São Geraldo, nas Quintas, devem a essa veloz passagem, o calçamento em paralelepípedo da rua, onde antes só havia poeira e lama.
As noites na São Geraldo não eram só de episódios políticos. Havia o bandido Baracho trocando tiros com a polícia (em uma dessas vezes, uma bala se alojou em uma bica de alumínio acima da janela da casa da minha avó); havia os assustados ao som de Renato e Seus Blue Caps e a mini-saia escandalosa de minha vizinha, cabelos louros de Wanderléia; o rebuliço das noites de sábado com cheiro de sarapatel no ar, quando os feirantes armavam suas barracas para a feira no domingo; havia a amplificadora de Seu Erivan anunciando as músicas que um alguém como muito amor e carinho oferece.
Os dias na São Geraldo também eram movimentados pela passagem diária de um senhor gordo, sem camisa, facão na mão – temor das crianças! – que ao entardecer retornava de um sítio que tinha lá para as bandas da Bernardo Vieira – onde hoje se situa a Feira do Carrasco; havia os bate-bocas na vila de dona Pitota; o leite in natura vendido por Dona Jacinta; os gritos de Genallllll...ra, ecoados por Maria Galvão, lavadeira, cujos fregueses eram os marinheiros que serviam no CEAT; havia Chico Doido, puxando, rua acima, rua abaixo, seus carros feitos por várias latas de leite, cheias de areia e unidas por barbante.
Havia, ainda, naquela rua, os sons de Carlos Alberto (o chorão), Roberto Muller, Altemar Dutra vindos da vitrola de Walter, o solteirão mais cobiçado da rua, defendido bravamente por sua mãe; havia o jeep de Seu Sebastião – dono da mercearia, cuja geladeira de madeira fazia um barulho tremendo ao fechar as portas – que aos domingos levava os filhos e os colegas destes para a Praia do Forte; havia Alfeuzinho que, sendo do Exército, foi a Suez, ajudar na construção do Canal; havia o medo de passar depois do anoitecer no beco do Grupo, ligação entre a São Geraldo e a Bela Vista; havia Seu Miguel, misto de enfermeiro, dentista e protético, que de mim tirou um dente permanente bonzinho confundindo-o com outro, candidatando-me precocemente a uma prótese (que depois ele mesmo fez!).
Havia na minha casa daquela Natal – anos 60 e início dos 70 – o meu pai saindo de madrugada para pegar o trem na Ribeira, de onde viajava a semana inteira para Lages, São Rafael, em seu comércio ambulante; em minha mãe havia a preocupação com os acidentes de trem, comuns naquela época; havia eu – e depois meu irmão – trocando livros e revistas na banca em frente ao Cine São José nos domingos de feira – fato determinante para que tanto eu como ele nos tornasse leitores vorazes e escolhêssemos profissões ligadas a livros; assistíamos televisão preto e branco na televizinha, assistindo Francisco Cuoco, um médico na novela Redenção; havia meu pai nas noites que chegava de viagem escutando Jerônimo, o Herói do Sertão, pela Rádio Poti; havia minha tia gritando para os meninos descerem do pé de almenda (castanhola), plantado na calçada de casa; a minha avó que esperava ansiosa a visita semanal do meu tio Bino, trazendo-lhe guaraná champagne e biscoito cream cracker.
Hoje, uma saudade emocionada me invade ao relembrar a Natal da minha antiga rua e imagino que histórias e que tipos populares meu sobrinho, integrante da geração internet, terá para relembrar e contar daqui a 30 anos. Certamente que serão de outro tipo e talvez ele venha a sentir saudade da Natal que hoje ele vive.

sábado, outubro 6

Bugol


Nos idos dos anos 60, os Estados Unidos implementaram um programa de assistência aos países do terceiro mundo denominado de Aliança para o Progresso. Através dele, a população carente recebia alimentos para suprir as necessidades nutricionais, além de recursos financeiros para o desenvolvimento do estado, como casas populares, escolas. Dessa leva, em Natal se construíram o conjunto habitacional Cidade da Esperança e o Instituto de Educação Pte Kennedy, enquanto o navio Hope, ancorado no Porto na Ribeira, distribuía leite em pó e realizava tratamentos médicos e cirurgias que até então eram inacessíveis aos potiguares.
O símbolo do programa era um aperto de mãos entre indivíduos, simbolicamente estadunidenses e latinos americanos. Os americanos não estavam preocupados altruisticamente em salvar populações da fome. Estavam muito mais interessados em fazer com que o comunismo não aportasse e conquistasse terrenos por essas bandas. Era o tempo da guerra fria, o mundo polarizado entre americanos e soviéticos, o inimigo vermelho.
À minha família não interessava muito quais os propósitos por trás da ajuda, embora minha mãe, como boa protestante, visse nos comunistas o diabo em pessoa. Recebiam-se leite e um tipo de grão que o povo chamava de bugol. Era um grão semelhante ao arroz integral, com o qual se fazia uma espécie de papa de gosto horrível. O tal bugol era servido nas escolas como merenda e não tinha negociação que me fizesse comê-lo.
Anos passados, sempre tive curiosidade de saber que comida era aquela e como era preparada no país de origem, porque nunca mais comera algo como aquilo – ou melhor, com aquilo. Ao comer kibe pela primeira vez, veio à mente o bugol de antes, embora não tenha feito conexão, porque no kibe, ainda que um tipo de trigo, só me vinha à mente o trigo refinado, farinha. Continuei com a dúvida e a quem perguntava também não sabia – pessoas daquele tempo lembravam-se da comida, mas não sabiam a origem.
Este ano lendo Dias de Mel, livro da americana Annia Ciedzadlo, que conta sua estadia em Beirute, acompanhando o marido libanês, entre fatos dos eternos conflitos da cidade, o livro registra algumas receitas árabes e em uma delas aparece o bugol. Na verdade, bulgar-wheat (ou Bulgur).
Explica-se por que o nome bugol. Era uma corruptela de bulgar, um cereal feito a partir de variadas espécies de trigo, utilizado em muitas receitas de comida de origem árabe.
Estava desvendado um mistério da minha infância/adolescência. Além dessa descoberta, de quebra ainda ganhei mais um exemplo de como o povo vai adaptando os sons de uma língua estrangeira à sua própria, criando novos vocábulos. Da época, ainda lembro grandes sacos de leite, das latas do querosene jacaré, necessário àquele à fome, este quando faltava luz elétrica, vinda de forma tão deficiente de Paulo Afonso.
Lembro dos cabelos ao vento do senador americano Robert Kennedy, passando na rua onde eu morava, acompanhado de Aluízio Alves. Contudo, isso é outra história.