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Mostrando postagens de março, 2008

Sol, do re mi fá de chuva

Chove. Aqui, como em toda cidade que raramente chove, quando chove, chove sem preparação. Época já de findo verão e anunciação do inverno. Contudo, aqui não sabemos o que é inverno. Mesmo quando chove, faz calor. Da terra vem uma quentura que cola na pele, pegajosa pele. Quem sabe do inverno é o povo do sertão que vê os açudes sangrando, que aproveita a água do céu para plantar o milho e o feijão colhidos nas festas de São João. Chove. De repente as ruas são tomadas por guarda-chuvas, passos apressados que pulam poças de água. Aqui, como em toda cidade que raramente chove, quando chove, o que se vê são ruas enlameadas, barracos encosta abaixo, velhas árvores desabando sobre carros. Somos uma cidade com vocação para o sol, daí negar que um dia choverá. A espera da chuva se faz sem crença. Chove. A tarde se apresenta num lusco-fusco que cintila nas lâmpadas de mercúrio que conferem às ruas um ar fantasmagórico em meio à água que cai. Na calçada, a moça se desvia do banho irresponsável do...

ESPaciAl

Espacial - Composição de Belchior na voz de Vanusa. Lá para os idos dos anos 70. Talvez você lembre da música. Talvez nem seja do seu tempo. Perca só três minutos para ver. Depois se pergunte como vivem hoje o oriente e o ocidente. Estrela nenhuma consegue unir; céu e terra já têm donos.

Pingo do meio-dia

Ai, meu Deus, como estou cansada!, e esse ônibus que não chega, esse calor, a parada cheia e esse homem ainda fica aí falando de política, quem quer saber disso, de que adianta... pelo amor de Deus, essa moça de bota num calor desse, só pode tá doida, tem gente que não tem senso, acho que vou comprar uma água de coco, pelo menos engana a sede até chegar no shopping, ainda mais essa... vou ver se tenho uma moeda, tem água de coco? Um copo, por favor, obrigada, lá vem o ônibus, vou beber logo se não na subida o povo derruba, tomara que dê preu sentar, do jeito que estou cansada, ainda ficar em pé até o shopping, ninguém merece, ainda bem que tinha lugar, vou abrir essa janela pra ver se fica menos quente, tomara que Josias não se atrase, do jeito que ele é, vai me atrasar, podia muito bem deixar para comprar esse tênis amanhã, esse menino ainda me mata, tenho que cortar um pouco as asas dele, inda mais agora que o dinheiro da gratificação diminuiu, não vai dá pra ficar comprando coisa e ...

Amor de feira

Não chega notícia nenhuma. Uma leve saudade a faz esperar, embora saiba que nada virá. Não pode culpar o carteiro, não se entrega carta que não é postada. A carta pedindo notícias foi inútil. Sabe que foi entregue, pois fulano recebeu resposta a que mandara. Para ela nada. O silêncio é o adeus não pronunciado. Paga pelo erro de gostar de frutas próprias de cada estação. O último encontro fora de muita conversa e nada. Não podia simplesmente sair de casa, deixar tudo assim como quem vai à esquina para logo voltar. Não cedera às exigências pedidas em nome do amor. Que amor? O amor viera de caminhão com as frutas descarregadas no pátio da feira. Melões, graviolas, abacaxis, bananas, cajás da região que há muito não vê. Do avental tirara o dinheiro pagando a entrega e justando prazo para novo descarrego. Olhara bem aquele homem e o corpo de imediato estremecera. Mal disse obrigada e voltara para trás da banca. Ele dera as costas indiferente a sua presença, interessado no dinheiro, na carga...

GoSto de maçã

Às vezes estico a memória num exercício para saber até onde ela vai. E tal como tartaruga, lentamente me vejo em vários lugares, takes se sobrepondo trazendo-me fases distintas da vida. Nem sempre consigo situá-las no tempo, embora as cores e até mesmo alguns sabores se materializem de repente. Meu avô materno era carpinteiro e vejo-o com serragem pelos braços no movimento do serrote, advertindo-nos, a mim e aos meus primos, do perigo de chegar muito perto. A bancada onde trabalhava ficava no alpendre nos fundos da casa. Era exímio com as mãos e nunca lhe faltava encomendas tanto para lhe fazer sobreviver como para abastecer a família de mesas, armários, cadeiras, na verdade tamboretes, visto que não tinham espaldar. Raramente fez alguma coisa para os netos, mas meu irmão foi o felizardo de ganhar um tamborete bem pequeno que durante anos andou na nossa casa, perdido em uma das mudanças, ele já adolescente e meu avô já morto. Vizinha a casa dos meus avós era a casa de minha tia com um ...