Velho, sobe as escadas com pés inchados de cansaço o segundo degrau depois do quinto. Arrasta-se ainda pelo corredor até a porta pintada de azul, extravagância da filha que queria um céu ao entrar. Dedos trêmulos mal conseguem colocar a chave. Ao abrir a porta, o assombro: toda a sala fora tomada por pombos que entraram pela janela. Com cuidado fecha a porta atrás de si. Na cozinha, coloca as compras sobre a mesa. Abre o armário e de lá retira o saco há tempo guardado e com ele à mão, puxa a poltrona até o umbral da janela, senta-se e sobre si derrama todo o milho. Agora é esperar que os pombos ergam-no. ****** O som da tv sai pela porta incomodando os outros que naquele corredor não ousam abrir as portas para reclamar. Dentro da sala, o som passa despercebido à mulher que de frente para a parede branca, vassoura à mão, bate freneticamente na teia que toma toda a parede agora já acinzentada pelos vários anos de umidade. Ela tem que limpar, arrancar aqueles fios que se entrelaçam ameaç...
A poesia está guardada nas palavras — é tudo que eu sei. Meu fado é o de não saber quase tudo. Sobre o nada eu tenho profundidades. Não tenho conexões com a realidade. Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro. Para mim poderoso é aquele que descobre as insignificâncias (do mundo e as nossas). Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil. Fiquei emocionado. Sou fraco para elogios. MANOEL DE BARROS