A poltrona colocada frente à janela mostra uma rua sossegada, pouco movimento de carros e gente. Nela, Zuleide observa a rua sem ver. Seus olhos se apertam devido a claridade que vem de fora; ouvidos surdos ao vozerio que vem do interior da casa. Filhos e netos falam animados da festa que há um mês preparam com a ansiedade de casamento. A festa vai comemorar seu aniversário, mas pouco ligam para a aniversariante. Fará 85 anos. Não sabe se fala com Miguel ou se espera ele se aproximar. A vergonha de ser falada inibe sua vontade e fica sentada na praça, um olho lá, meio ouvido aqui. E se ele não se decidir? Esperar agoniada outro domingo, passar outra semana ouvindo em casa o pai elogiar o governo de Getúlio Vargas, fazendo comida, lavando roupa no rio bacia na cabeça? Não, tem que fazer alguma coisa. Tem 15 anos e muita pressa em viver. Não vai ficar pra titia de jeito nenhum. Se Miguel não se mexer, o jeito é ficar falada. As imagens são takes na cabeça de Zuleide. As conversas no po...
A poesia está guardada nas palavras — é tudo que eu sei. Meu fado é o de não saber quase tudo. Sobre o nada eu tenho profundidades. Não tenho conexões com a realidade. Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro. Para mim poderoso é aquele que descobre as insignificâncias (do mundo e as nossas). Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil. Fiquei emocionado. Sou fraco para elogios. MANOEL DE BARROS