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Mostrando postagens de 2008

DOIDera

Tem alma reclusa, dessas que se basta ao sentar e ler um livro em vez de sair, tomar cerveja no calorão da cidade. Os amigos não entendem e por não compreenderem pararam os convites para as noitadas. Só de ano em ano, aniversário, confraternização de natal é que se lembram de convidar-lhe. Cinema no mais das vezes vai sozinha que a companhia não é companhia para as horas que ela pode e também porque não é mais riso pra ninguém. A turma, a outra, é bem mais animada. Há dias em que pensa que é melhor usar uma capa de invisível e passar pela vida sem ser vista. Mas, é teimosa e insiste em viver. Viver de teimosia é seu lema há um tempão, desde aquele dia longínquo quando se deu conta de que era só, mesmo que vivesse arrodeada de gente. Já tentou, bem que tentou se livrar dessa sensação, mas não conseguiu. Festa de casamento, nascimento de filho, enterros, formatura, tudo que junta gente só lhe faz aumentar a dor de se saber só. Quando adoece, adoece por inteiro, começando na cabeça...

EsPElhO EspeLHo meU

A faca desliza sem estranhamento. Um filete de sangue escorre, descobrindo a falta de realeza no vermelho que cai. Um impulso mais forte atravessa a pele causando um pequeno estremecimento. Não dor, um roçar mais quente. Acostumada, não se importa. Enfinca a ponta da faca, fazendo um semi-arco no braço, deixando um risco de sangue viscoso a escorrer. O alvor do pano se escurece no enxugar. Normal. Nada para ela é estranho. Ninguém conhece esses traços que se misturam às veias das coxas, aos músculos das costas, às glândulas dos seios. Nua nunca se postara a ninguém, médico, amante. Só ao espelho se dá. E por causa dele começara a se lanhar em desespero à imagem refletida. Naquela hora aprendera a odiar seu corpo. Não adiantava os vestidos moldados com desvelo que a mãe insistia em meter-lhe corpo afora. A lingerie comprada em grandes lojas, tecido que amaciava as mãos e punha-lhe fogo. Vestia obrigada e amuava-se calada e hirta na cadeira da sala à vista de todos. O silêncio lh...

As tiMe goeS bY

Ainda quando estudava o antigo ginasial, uma professora de Português, interessada em que os alunos gostassem de ler e apreciassem os clássicos, passou como tarefa de avaliação uma redação sobre o texto AMOR MENINO (parte II do Sermão do Mandato – mas isso só soube muito depois já na faculdade) do Pe. Antonio Vieira. Agora, imaginem a dificuldade de adolescentes nos idos final dos anos 60 em cumprir essa tarefa. O que sabíamos do amor? Nada. Do tempo muito menos. O amor era em preto e branco nas fotonovelas que eu comprava no sebo na banca da feira livre, hábito que era também o das minhas amigas, caso contrário não leríamos nada. Apesar dessas imagens de amor, não lembro se as conversas já rondavam assuntos de namoro, casamento. Acho que não, pois éramos àquela época imaturas para tais assuntos. O universo ainda girava em volta de livros, estudar para provas, sorvetes, ouvir música e meninos não faziam parte do grupo. Aliás, eram olhados com uma estranheza que beirava ao exílio. Em c...

FaLtA de iDéiA

Eu gostaria de hoje ter chegado em casa com uma idéia quase acabada para aqui escrever. Há dias, muitos dias, que não escrevo. Não escrevo nada da minha cabeça, a não ser memorandos, ofícios, conclusões de análises de planilhas, letras burocráticas que não contém metáforas, poesia alguma. Mas, a idéia não chegou comigo. São 21 horas e 23 minutos, fora do horário de verão, e não faz nem 30 minutos que cheguei em casa, pois hoje trabalhei até as 20 horas. Como já tinha jantado por lá mesmo, ao chegar tomei banho, comi uma goiaba e liguei o computador na vã esperança que de repente - como acontecido de outras vezes - a tal da inspiração começasse a me azucrinar o juízo, querendo pôr-se a descoberto. Qual o quê! Até agora só transpiração do baita calor que faz nesta Cidade do Sol. Não tenho escrito, porém continuo lendo. Impregnada das letras de Mia Couto, fico mais apequinhada para escrever. O que será que se passa na cabeça dele especificamente ao escrever? Será que o livro se forma int...

Bem-me-quer, mal-me-quer

Ao perceber que o sonho cuidadosamente planejado era só seu; ao sentir no corpo o afastamento da paixão de Pedro; ao contar noites mal dormidas dominadas pela saudade, Alzira soube que nada mais lhe restava daquilo que era a sua vida. A vida que em casas separadas vivia com Pedro há quatro anos. Passara o tempo “de tudo ao meu amor serei atento”. Agora, tempo de brumas, de mãos espalmadas segurando o espanto, espumas de repente, “não mais que de repente”. Bem que não fora assim tão de repente; mas, surda e cega, pensara que aqueles sinais eram apenas isto: sinais, crise passageira. Enganara-se, redondamente se enganara. E o resultado é este que se posta bem aí a sua frente, remediado está. Da caixa escondida no fundo do guarda-roupa retira o que sobrara, papéis amarelados com o amor escrito em mau português, letra miúda, recortes de poemas entre corações desenhados. Até mesmo uma peça íntima vermelha no meio do papel manteiga recorda-lhe os tempos. Num ímpeto, rasga; não, estraçalha a ...

Fingimento

Quando Tonha resolveu namorar Quincas às escondidas, resolveu também que teria de encontrar uma forma de se comunicar com o namorado sem que as pessoas de casa, principalmente o pai, descobrissem. Não adiantava falar com Quincas sobre qual maneira seria a melhor, porque pra ele o melhor era fugir e acabar logo com essa estória. O pai dela pensava o quê, que ele era um cabra safado querendo a riqueza dele? Ele ia mostrar muito bem do que era capaz. A melhor maneira de passar uma rasteira nos de casa era fingir-se de triste por ter sido obrigada a acabar o namoro, deixar até de comer. Nem mesmo em Lucinda, a irmã mais velha, poderia confiar. Diabo que só vivia pra xeretar a vida dos outros em vez de arranjar uma costela para casar logo, deixando o caminho livre. Mas quem, quem iria aturar aquele demônio feito cobra? Os de casa só agüentavam por obrigação, imagine um homem pra casar! Encalhada, Tonha sabe que não tinha jeito e o melhor seria se concentrar no próprio problema. O códg preci...

Ôrra meu!

Não sei se a Língua Portuguesa está se tornando de verdade “ a última flor ” ou se eu é que sou purista demais. Mas, o que estão fazendo com o idioma “de minha pátria, de minha pátria sem sapatos/ e sem meias pátria minha/ tão pobrinha” – como diria o Vinícius – é uma coisa de louco, ôrra meu! Não vou dizer que todo professor de português fica danado da vida quando ouve e lê os absurdos, porque, infelizmente, alguns colegas derrapam nas coisas mais comuns (o tal de a nível de pega e derruba muita gente). Quem faz da leitura uma dose diária melhor que qualquer lexotan fica paranóico quando presencia atos de verdadeiro vandalismo cometidos na língua. O vandalismo do muro às vezes escreve certo por linhas tortas. Em um muro está escrito em letras garrafais – como não poderia deixar de ser: “o verdadeiro governo assiste ao povo”! E não é que é mesmo! O verdadeiro governo está vendo o que se passa com o povo, mas não está dando a assistência necessária, quer dizer, o governo não assiste o...

Nada maiS

O primeiro que Rita encontrou foi um par de brincos sob o travesseiro. Duas argolas prateadas. Não se assustou. Certamente Mariana, sua sobrinha de oito anos, tinha deixado os brincos ali na hora de assistir tv, embora não fossem brincos de crianças. Colocou-os na estante para devolver, não sem antes fazer Mariana entender que não apressasse o tempo da infância. Cinco dias depois, domingo na hora da missa, ao procurar o rosário encontrou na gaveta um sutiã vermelho um número menor que os seus. Do sutiã vinha um perfume de sândalo misturado a cheiro de bebida que uma mancha bem no peito não deixava dúvida. Chateada, porque aquela coisa escarlate deveria ser de Rosana, a irmã destrambelhada que tinha, jogou o sutiã sobre o cabide para entregar depois. Ao acordar naquela segunda-feira, a cabeça doía-lhe como bebedeira de véspera. Mas nada bebera além das duas taças de vinho, um tanto assim irrisório para provocar tamanho enfado. A dor a água fria do banho aliviou o suficiente para se...

Sem tempo

Quem passa sempre por aqui talvez estranhe o espaço entre uma postagem e outra. Ando ligada demais no trabalho, pois dez meses depois de férias, licenças, retornei. Não digo que ao batente, pois tantos anos depois não sei se trabalho pra mim é pegar no batente. De tanto subir escadas e descer ladeiras, a gente fica assim um tanto anestesiado com tudo que nos acontece na vida profissional. Em alguns momentos até parece que saímos de nós e flutuamos além da cena, contemplando-a com uma certa descrença. O danado é que quando nos fazemos de um jeito não há jeito de mudar. Trabalhar na área de educação é uma mão dupla sempre, há inevitavelmente um prazer misturado à frustração de não se conseguir todo o sonhado, há sempre o esforço para manter a chama acesa, dizendo-se a si mesmo que daqui a uns anos aquelas lições darão frutos. Há uma mania generalizada de na educação se criar uma metáfora com árvore, com frutos como se nós, educadores, fossemos os únicos responsáveis pelo futuro de crianç...

E por falar em saudade...

Há exatamente 28 anos entrava numa sala de aula pela primeira vez. As aulas do estágio não contam; contam esses anos que vivi rodeada de alunos a quem pude realmente chamar de meus alunos. Como tudo que é novo, naquele dia tive medo. Não sabia o que encontraria e sentia que o aprendido na Universidade não seria bastante. Saber dá aula é completamente diferente do saber o que ensinar. Saber o que ensinar é indispensável, mas saber o como é uma aprendizagem que transcorre no decorrer do tempo, através dos acertos e dos erros cometidos. Na época eu sabia o que ensinar, não como deveria ensinar. As teorias aprendidas eram palavras e palavras que não se aplicavam ali à frente daquele mundo de alunos, que, independente das idades, têm como passatempo predileto tirar o juízo do professor. E se vai tentanto: o bonzinho não dá certo, porque eles levam na bagunça; o tirano não dá certo porque eles fazem de tudo para sair da sala e tirar, no dizer deles, !a moral" do professor. A medida cer...

Pé ante pé

Todos os dias passava por aquela rua de ponta a ponta só lojas. Admirava as vitrines. Quase tudo lhe chamava a atenção, a maioria custava a metade do seu salário e não podia se dá a esse luxo. Resistia heroicamente à visão das sandálias, principalmente. Ah, as sandálias! Nessa hora de desejo dava todas as razões a Imelda Marcos, a Claudia Raia. Naquela segunda-feira chuvosa, mal prestava atenção às lojas de tanta água na rua. De repente a sandália prateada saltou-lhe aos olhos, fazendo-a parar. Salto fino da altura que gosta, aberta na frente, dedos à mostra. Linda, pedindo para ser comprada, a sandália acompanhou-a durante o dia todo. A cabeça dava voltas e mais voltas nos cálculos possíveis, procurando brecha para comprar, comprar. A sandália tinha que ser dela. A rua agora se resumia àquela única vitrine, àquela sandália no pedestal esperando. Esperando-a. O mês estava terminando e alguma coisa não seria paga para que a sandália fosse sua. Mas, o quê? O que poderia deixar de lado p...

Sol, do re mi fá de chuva

Chove. Aqui, como em toda cidade que raramente chove, quando chove, chove sem preparação. Época já de findo verão e anunciação do inverno. Contudo, aqui não sabemos o que é inverno. Mesmo quando chove, faz calor. Da terra vem uma quentura que cola na pele, pegajosa pele. Quem sabe do inverno é o povo do sertão que vê os açudes sangrando, que aproveita a água do céu para plantar o milho e o feijão colhidos nas festas de São João. Chove. De repente as ruas são tomadas por guarda-chuvas, passos apressados que pulam poças de água. Aqui, como em toda cidade que raramente chove, quando chove, o que se vê são ruas enlameadas, barracos encosta abaixo, velhas árvores desabando sobre carros. Somos uma cidade com vocação para o sol, daí negar que um dia choverá. A espera da chuva se faz sem crença. Chove. A tarde se apresenta num lusco-fusco que cintila nas lâmpadas de mercúrio que conferem às ruas um ar fantasmagórico em meio à água que cai. Na calçada, a moça se desvia do banho irresponsável do...

ESPaciAl

Espacial - Composição de Belchior na voz de Vanusa. Lá para os idos dos anos 70. Talvez você lembre da música. Talvez nem seja do seu tempo. Perca só três minutos para ver. Depois se pergunte como vivem hoje o oriente e o ocidente. Estrela nenhuma consegue unir; céu e terra já têm donos.

Pingo do meio-dia

Ai, meu Deus, como estou cansada!, e esse ônibus que não chega, esse calor, a parada cheia e esse homem ainda fica aí falando de política, quem quer saber disso, de que adianta... pelo amor de Deus, essa moça de bota num calor desse, só pode tá doida, tem gente que não tem senso, acho que vou comprar uma água de coco, pelo menos engana a sede até chegar no shopping, ainda mais essa... vou ver se tenho uma moeda, tem água de coco? Um copo, por favor, obrigada, lá vem o ônibus, vou beber logo se não na subida o povo derruba, tomara que dê preu sentar, do jeito que estou cansada, ainda ficar em pé até o shopping, ninguém merece, ainda bem que tinha lugar, vou abrir essa janela pra ver se fica menos quente, tomara que Josias não se atrase, do jeito que ele é, vai me atrasar, podia muito bem deixar para comprar esse tênis amanhã, esse menino ainda me mata, tenho que cortar um pouco as asas dele, inda mais agora que o dinheiro da gratificação diminuiu, não vai dá pra ficar comprando coisa e ...

Amor de feira

Não chega notícia nenhuma. Uma leve saudade a faz esperar, embora saiba que nada virá. Não pode culpar o carteiro, não se entrega carta que não é postada. A carta pedindo notícias foi inútil. Sabe que foi entregue, pois fulano recebeu resposta a que mandara. Para ela nada. O silêncio é o adeus não pronunciado. Paga pelo erro de gostar de frutas próprias de cada estação. O último encontro fora de muita conversa e nada. Não podia simplesmente sair de casa, deixar tudo assim como quem vai à esquina para logo voltar. Não cedera às exigências pedidas em nome do amor. Que amor? O amor viera de caminhão com as frutas descarregadas no pátio da feira. Melões, graviolas, abacaxis, bananas, cajás da região que há muito não vê. Do avental tirara o dinheiro pagando a entrega e justando prazo para novo descarrego. Olhara bem aquele homem e o corpo de imediato estremecera. Mal disse obrigada e voltara para trás da banca. Ele dera as costas indiferente a sua presença, interessado no dinheiro, na carga...

GoSto de maçã

Às vezes estico a memória num exercício para saber até onde ela vai. E tal como tartaruga, lentamente me vejo em vários lugares, takes se sobrepondo trazendo-me fases distintas da vida. Nem sempre consigo situá-las no tempo, embora as cores e até mesmo alguns sabores se materializem de repente. Meu avô materno era carpinteiro e vejo-o com serragem pelos braços no movimento do serrote, advertindo-nos, a mim e aos meus primos, do perigo de chegar muito perto. A bancada onde trabalhava ficava no alpendre nos fundos da casa. Era exímio com as mãos e nunca lhe faltava encomendas tanto para lhe fazer sobreviver como para abastecer a família de mesas, armários, cadeiras, na verdade tamboretes, visto que não tinham espaldar. Raramente fez alguma coisa para os netos, mas meu irmão foi o felizardo de ganhar um tamborete bem pequeno que durante anos andou na nossa casa, perdido em uma das mudanças, ele já adolescente e meu avô já morto. Vizinha a casa dos meus avós era a casa de minha tia com um ...

PARalelas

O cão está parado no meio fio. Todas as vezes que avança, recua, pois sente a vibração de um carro vindo. Olha para um lado e outro, mas não se atreve. A saliva denuncia seu cansaço e ansiedade. Sentado na parada de ônibus o homem observa os movimentos do cão. Espera a hora do atropelamento e nada faz. A marca na perna lhe dá todos os motivos para não gostar de cachorro. Raça desgraçada! Por ele, todos os cães viravam sabão. O negro do pêlo reluz ao sol. O focinho pouco saliente, orelhas curtas apontadas para cima, uma grande mancha branca sobressaindo-se na pata direita não indicam a raça do cão. Pelo ir e vir na calçada, incerto sobre a hora de atravessar, denuncia-se sua pouca experiência de rua. Não está gordo, mas não tem uma ossatura que indique fome de cão. Se tem dono, ninguém por perto lhe pertence. Uma acentuada calvície brilha ao sol no calor da manhã. Retira um lenço do bolso da camisa e enxuga o suor da testa. As pernas magras à mostra pela bermuda indicam uma idade mais d...

Jó, Joana

Depois de um tempo casada, incontáveis visitas a médicos e orações, Joana descobriu que não podia ter filhos. Passada a tristeza inicial, procurou na maternidade da pequena cidade uma criança que pudesse ser adotada. Alguns meses se passaram até encontrar Marta. Agora sim, a família estava completa. Tinha uma filha e não interessava se de sangue, de leite, de afinidade. Era dela a filha, deles. Quarta filha de uma família com sete filhos, pais presbiterianos calvinistas convictos até os ossos, casara com Joaquim, pequeno comerciante ambulante, de fé igualmente inabalável. Foram morar numa cidade distante da capital, embora percorressem todas as feiras da região, armando banca, vendendo bibelôs, antigos enfeites de geladeira, panelas de alumínio, plásticos em todos os formatos, de todas as cores, de preços baixos. De feira em feira, domingos de igreja, criavam a filha. Na idade escolar, descobriram que Marta não tinha a menor aptidão para os estudos. Não adiantava castigo, palmatórias, ...