Pular para o conteúdo principal

De escritos e fogueiras

Não tenho lembrança de quando comecei a escrever, mas foi aí por volta dos 12 anos. Era um caderno tipo brochura, capa verde, pequeno e eu escrevia só de um lado da folha. Achava ruim escrever no verso. Usava caneta e achava o máximo, escrevendo com cuidado redobrado para não precisar apagar. Minha letra não era semelhante com a que tenho hoje; eu treinava arduamente para imitar a letra de uma professora da quarta série que tinha uma letra desenhada, não era feita à mão de tão perfeita. Claro que não conseguia fazer igual. Anos depois mudar a letra foi o primeiro sinal de identidade consciente: comecei a colocar letras maiúsculas no meio da palavra, coisa que faço até hoje e dando aula era a primeira lição aos meus alunos: não escrevam como eu; esta letra colocada aqui é um erro! Inútil! Nem eu deixei de escrever assim, tampouco livrei alguns de pegarem a mania da professora!
Eu escrevia de tudo. Passou na cabeça, pousou no papel. Não deixava ninguém ler, embora desconfiasse que minha mãe o fizesse quando eu não estava por perto. Depois tive certeza que ela lia, porque vinha com aquelas conversas arrodeadas, querendo saber o que eu nem falado tinha. Mãe é tudo igual, filha e privacidade são coisas que não combinam! Esse foi o primeiro AI-5 da minha vida. Após a confirmação das leituras desautorizadas, o que escrevia já tinha um certo encobrimento, metáforas sem saber que eram. Mas, continuei. De tanto escrever já não podia me dar ao luxo de fazê-lo só de um lado da folha, pois dinheiro para gastar com caderno era raro!
Da mesma forma que tenho as fases de escrever, tenho as fases de rasgar. Não tenho nada daquela época! Lá pelos 20 anos fiz a primeira fogueira do que tinha escrito, dos cartões, páginas de revistas, bilhetes que tinha guardado, enchendo gavetas. Não era mais aquela menina, não me reconheci naqueles escritos e não me doeu queimá-los. Embora não tivesse mais a preocupação de que alguém fosse ler, já casada, meu marido não mexia em nada que pertencesse só a mim, escrevia com um sensor interno, aloprada pela doença e morte do meu pai, pelas aulas no curso de Letras, o início na profissão, acreditando que autores, planos de aula, teorias literárias, freudianas iriam me dar a leitura necessária para a minha escrita. Depois, muito depois, compreendi que a leitura ajuda, mas a escrita é um ato solitário, tanto a que se faz no papel quanto a que se vai rabiscando pela vida!
O hábito de escrever me ancorava nas voltas do que eu pensava. A palavra escrita me dava a sensação de ter onde me segurar, caso eu me desequilibrasse (e quando eu desequilibrava!). Era o que eu refletia, extremamente subjetivo, mas era meu, era o meu rumo na tentativa de não errar, de não me deixar ser pega de surpresa. Paradoxalmente, as palavras me ensinaram a não temer o erro, a compreender que surpresas, além de inevitáveis, são necessárias! Escrever era uma catarse e dúvidas, tristezas, anseios jaziam no papel; vivas, as palavras denunciavam a vida de uma jovem senhora à beira de um ataque de nervos.
O ataque veio em 1985 em plena leitura de
A Insustentável Leveza do Ser, quando uma noite acordei e vi um tigre sentado à beira da cama, olhando-me, olhos de fogo na escuridão. O cão da estória do Kundera assumira duplamente o papel de uma cadela que eu tinha na época e dos medos a me arrodear. No dia seguinte, fui ao médico e pílulas goela abaixo dormi bem uns dias. Quando a primeira cartela terminou, joguei fora o resto e encarei o tigre. Entre outras coisas, fiz outra fogueira com os escritos e também não me doeu. Eu parecia cobra mudando de pele! (E o livro na minha estante conserva a sensação num poema escrito na última página!).
A cada mudança, uma fogueira queimava papéis e aquilo que andara me consumindo. Escrevia basicamente meu estado d'alma, um lado melancólico à moda Álvares de Azevedo. Não perdi o hábito de escrever, mudei a disposição, a forma, o meio. Quando bate a melancolia, hiberno e no máximo leio. Escrevo apenas dentro de mim, entrando e saindo de labirintos formados de palavras silenciosas. E quando me animo a escrever, vou nas palavras, nos personagens que construo, porque continuo cobra, mudando de pele e fazendo fogueiras. Hoje mostro o que escrevo, não sem alguma preocupação, pois esta se transformou nas metáforas conscientes que construo. Costurar os escritos em livro não me passa pela cabeça, embora dois livros digitados, encadernados com capa francesa existam: um de poemas com uma amiga; outro de crônicas memórias da minha infância dado ao meu sobrinho quando ele passou no vestibular para Jornalismo. Volumes únicos, eles (as pessoas e os livros) são donos dessas palavras, pois os originais não existem. O que escrevo no blog depois é impresso. Possivelmente material para a próxima fogueira.

Comentários

Fátima Mota disse…
Ainda bem que entre uma fogueira e outra apareceu esse blog para compartilharmos os seus belíssimos escritos.
Andas sumida. Hibernando e lendo... agora entendo porquê.
rsrsrs
Anônimo disse…
Interessante: fiz minha primeira fogueira um dia desses. Guardei, todavia, os escritos de Eva para...Eva mesmo. Só consegui queimar os cadernos do Ensino Fundamental e Médio (separando as folhas com poemas, crônicas, declarações), as provas, em suma, nada que eu tivesse criado. Não sei quando terei coragem de queimar as minhas palavras só minhas. Quem sabe um dia.

ô_Ô

Belas palavras, Ednice. Pode ser que dêem uma boa fogueira, mas até lá, arderão unicamente em nossas mentes(!).

Um abraço. Até sábado!
maria olimpia disse…
Quando você escreve e eu leio, as vezes até penso que sou eu escrevendo. Não pela qualidade, que a sua, sinto superior, mas pela igualdade das coisas que vivemos. é um prazer ler seus textos. fico feliz lendo. Beleza mesmo.
Anônimo disse…
O melhor da fogueira é a força que a chama nos dá, a vida que o fogo irradia...

São dois opostos: fogo e água, mas pra mim depois de uma fogueira, nada melhor que uma boa enxurrada pra levar as cinzas e me deixar nova.

Sorte nossa o caderninho capa verde está aqui aberto, disponível pra gente.

Parabéns pela escrita!
Fantasma disse…
Ed, fiquei olhando o teclado à minha frente, querendo escrever algo lindo para dizer o tanto que suas palavras me tocam. Foi só isso que consegui arrancar de mim: uau! Mas isso eu vivo dizendo. Estou sendo tão repetitiva!

Postagens mais visitadas deste blog

Bugol

  Nos idos dos anos 60, os Estados Unidos implementaram um programa de assistência aos países do terceiro mundo denominado de Aliança para o Progresso. Através dele, a população carente recebia alimentos para suprir as necessidades nutricionais, além de recursos financeiros para o desenvolvimento do estado, como casas populares, escolas. Dessa leva, em Natal se construíram o conjunto habitacional Cidade da Esperança e o Instituto de Educação Pte Kennedy, enquanto o navio Hope, ancorado no Porto na Ribeira, distribuía leite em pó e realizava tratamentos médicos e cirurgias que até então eram inacessíveis aos potiguares. O símbolo do programa era um aperto de mãos entre indivíduos, simbolicamente estadunidenses e latinos americanos. Os americanos não estavam preocupados altruisticamente em salvar populações da fome. Estavam muito mais interessados em fazer com que o comunismo não aportasse e conquistasse terrenos por essas bandas. Era o tempo da guerra fria, o mundo polari...

Espirro cafeínado

O inusitado acontece a todos. Se houvesse uma câmera na hora, precisamente sexta-feira, na praça de alimentação do Midway, agora eu estaria pateticamente conhecida e uma amiga estaria com novo modelo de blusa para todo o Brasil (segundo ela mesma, num exemplo de bom humor, uma blusa com bordados de Caicó!). Avessas ao carnatal, éramos quatro em uma mesa na um pouco menos barulhenta praça de alimentação do shopping, em final de expediente, devido que a cidade inteira – ou quase – mobilizava-se em torno de o Chiclete com Banana, Trios & Cia – que Deus nos proteja de tamanha sandice! Depois de alguns Sushi e Sashimi, duas bebiam cerveja, uma comia torta de limão, e eu resolvi tomar um cappuccino. Conversa vai e vem, a conversar girou para as excentricidades de uma de nós que não viaja porque tem medo, podendo até desmaiar durante o percurso. A sugestão foi que não haveria problema em desmaiar, pois quando chegasse ao destino, já estaria lá mesmo, ou então, provocássemos um desmaio e l...

Fermento

Não parecia, mas era. Era bruxa. Não das antigas com vassoura e balde e corvos sobre os ombros. Das modernas, aliás bem modernas. Tinha uma namorada. É verdade que a namorada não valia nada, só queria o bem estar proporcionado pelo dinheiro, mas tava ali toda noite lhe dando uma costela quente. Nem sempre o algo mais. Tinha 60 anos, aparência de 50 depois de algumas correções estéticas, aposentada por órgão federal depois de muito trabalho e algumas bruxarias. Viagem anual à Europa, banho de civilização e guarda-roupa renovado nas calles espanholas e piazzas italianas. Quando necessário, usava alguns truques sem que os outros percebessem. Era uma fera na arte da dissimulação. A namorada era o alvo preferido. Freqüentava o mesmo bar há anos, embora de restaurante tivesse mais opções, porque era adepta da boa mesa. E era no bar onde as brigas sempre começavam. Bastava um olhar atravessado, um sorriso mais gentil para que os demônios lhe cutucassem disparando suspeitas em volta da pobre m...

Amor de feira

Não chega notícia nenhuma. Uma leve saudade a faz esperar, embora saiba que nada virá. Não pode culpar o carteiro, não se entrega carta que não é postada. A carta pedindo notícias foi inútil. Sabe que foi entregue, pois fulano recebeu resposta a que mandara. Para ela nada. O silêncio é o adeus não pronunciado. Paga pelo erro de gostar de frutas próprias de cada estação. O último encontro fora de muita conversa e nada. Não podia simplesmente sair de casa, deixar tudo assim como quem vai à esquina para logo voltar. Não cedera às exigências pedidas em nome do amor. Que amor? O amor viera de caminhão com as frutas descarregadas no pátio da feira. Melões, graviolas, abacaxis, bananas, cajás da região que há muito não vê. Do avental tirara o dinheiro pagando a entrega e justando prazo para novo descarrego. Olhara bem aquele homem e o corpo de imediato estremecera. Mal disse obrigada e voltara para trás da banca. Ele dera as costas indiferente a sua presença, interessado no dinheiro, na carga...

DOIDera

Tem alma reclusa, dessas que se basta ao sentar e ler um livro em vez de sair, tomar cerveja no calorão da cidade. Os amigos não entendem e por não compreenderem pararam os convites para as noitadas. Só de ano em ano, aniversário, confraternização de natal é que se lembram de convidar-lhe. Cinema no mais das vezes vai sozinha que a companhia não é companhia para as horas que ela pode e também porque não é mais riso pra ninguém. A turma, a outra, é bem mais animada. Há dias em que pensa que é melhor usar uma capa de invisível e passar pela vida sem ser vista. Mas, é teimosa e insiste em viver. Viver de teimosia é seu lema há um tempão, desde aquele dia longínquo quando se deu conta de que era só, mesmo que vivesse arrodeada de gente. Já tentou, bem que tentou se livrar dessa sensação, mas não conseguiu. Festa de casamento, nascimento de filho, enterros, formatura, tudo que junta gente só lhe faz aumentar a dor de se saber só. Quando adoece, adoece por inteiro, começando na cabeça...

Sem tempo

Quem passa sempre por aqui talvez estranhe o espaço entre uma postagem e outra. Ando ligada demais no trabalho, pois dez meses depois de férias, licenças, retornei. Não digo que ao batente, pois tantos anos depois não sei se trabalho pra mim é pegar no batente. De tanto subir escadas e descer ladeiras, a gente fica assim um tanto anestesiado com tudo que nos acontece na vida profissional. Em alguns momentos até parece que saímos de nós e flutuamos além da cena, contemplando-a com uma certa descrença. O danado é que quando nos fazemos de um jeito não há jeito de mudar. Trabalhar na área de educação é uma mão dupla sempre, há inevitavelmente um prazer misturado à frustração de não se conseguir todo o sonhado, há sempre o esforço para manter a chama acesa, dizendo-se a si mesmo que daqui a uns anos aquelas lições darão frutos. Há uma mania generalizada de na educação se criar uma metáfora com árvore, com frutos como se nós, educadores, fossemos os únicos responsáveis pelo futuro de crianç...