Pular para o conteúdo principal

A rua que foi minha


Madrugada. Um carro aberto, acompanhado por uma longa comitiva, passa veloz, frustrando os aluísistas que esperaram horas e horas pela passagem daquele carro. Cansados da espera, recolheram-se as suas camas, embora completamente vestidos, pois na hora que os foguetões anunciassem a passagem do carro, era só levantar e correr à rua. O que se pôde ver foram os cabelos ao vento do senador americano Robert Kennedy, em pé ao lado de Aluízio Alves. Os moradores da São Geraldo, nas Quintas, devem a essa veloz passagem, o calçamento em paralelepípedo da rua, onde antes só havia poeira e lama.
As noites na São Geraldo não eram só de episódios políticos. Havia o bandido Baracho trocando tiros com a polícia (em uma dessas vezes, uma bala se alojou em uma bica de alumínio acima da janela da casa da minha avó); havia os assustados ao som de Renato e Seus Blue Caps e a mini-saia escandalosa de minha vizinha, cabelos louros de Wanderléia; o rebuliço das noites de sábado com cheiro de sarapatel no ar, quando os feirantes armavam suas barracas para a feira no domingo; havia a amplificadora de Seu Erivan anunciando as músicas que um alguém como muito amor e carinho oferece.
Os dias na São Geraldo também eram movimentados pela passagem diária de um senhor gordo, sem camisa, facão na mão – temor das crianças! – que ao entardecer retornava de um sítio que tinha lá para as bandas da Bernardo Vieira – onde hoje se situa a Feira do Carrasco; havia os bate-bocas na vila de dona Pitota; o leite in natura vendido por Dona Jacinta; os gritos de Genallllll...ra, ecoados por Maria Galvão, lavadeira, cujos fregueses eram os marinheiros que serviam no CEAT; havia Chico Doido, puxando, rua acima, rua abaixo, seus carros feitos por várias latas de leite, cheias de areia e unidas por barbante.
Havia, ainda, naquela rua, os sons de Carlos Alberto (o chorão), Roberto Muller, Altemar Dutra vindos da vitrola de Walter, o solteirão mais cobiçado da rua, defendido bravamente por sua mãe; havia o jeep de Seu Sebastião – dono da mercearia, cuja geladeira de madeira fazia um barulho tremendo ao fechar as portas – que aos domingos levava os filhos e os colegas destes para a Praia do Forte; havia Alfeuzinho que, sendo do Exército, foi a Suez, ajudar na construção do Canal; havia o medo de passar depois do anoitecer no beco do Grupo, ligação entre a São Geraldo e a Bela Vista; havia Seu Miguel, misto de enfermeiro, dentista e protético, que de mim tirou um dente permanente bonzinho confundindo-o com outro, candidatando-me precocemente a uma prótese (que depois ele mesmo fez!).
Havia na minha casa daquela Natal – anos 60 e início dos 70 – o meu pai saindo de madrugada para pegar o trem na Ribeira, de onde viajava a semana inteira para Lages, São Rafael, em seu comércio ambulante; em minha mãe havia a preocupação com os acidentes de trem, comuns naquela época; havia eu – e depois meu irmão – trocando livros e revistas na banca em frente ao Cine São José nos domingos de feira – fato determinante para que tanto eu como ele nos tornasse leitores vorazes e escolhêssemos profissões ligadas a livros; assistíamos televisão preto e branco na televizinha, assistindo Francisco Cuoco, um médico na novela Redenção; havia meu pai nas noites que chegava de viagem escutando Jerônimo, o Herói do Sertão, pela Rádio Poti; havia minha tia gritando para os meninos descerem do pé de almenda (castanhola), plantado na calçada de casa; a minha avó que esperava ansiosa a visita semanal do meu tio Bino, trazendo-lhe guaraná champagne e biscoito cream cracker.
Hoje, uma saudade emocionada me invade ao relembrar a Natal da minha antiga rua e imagino que histórias e que tipos populares meu sobrinho, integrante da geração internet, terá para relembrar e contar daqui a 30 anos. Certamente que serão de outro tipo e talvez ele venha a sentir saudade da Natal que hoje ele vive.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Bugol

  Nos idos dos anos 60, os Estados Unidos implementaram um programa de assistência aos países do terceiro mundo denominado de Aliança para o Progresso. Através dele, a população carente recebia alimentos para suprir as necessidades nutricionais, além de recursos financeiros para o desenvolvimento do estado, como casas populares, escolas. Dessa leva, em Natal se construíram o conjunto habitacional Cidade da Esperança e o Instituto de Educação Pte Kennedy, enquanto o navio Hope, ancorado no Porto na Ribeira, distribuía leite em pó e realizava tratamentos médicos e cirurgias que até então eram inacessíveis aos potiguares. O símbolo do programa era um aperto de mãos entre indivíduos, simbolicamente estadunidenses e latinos americanos. Os americanos não estavam preocupados altruisticamente em salvar populações da fome. Estavam muito mais interessados em fazer com que o comunismo não aportasse e conquistasse terrenos por essas bandas. Era o tempo da guerra fria, o mundo polari...

Miolo de quartinha e carga d'água

Não adianta. Não adianta colocar os dedos sobre o teclado e fazer um download que me leve à inspiração quando os acontecimentos me travam para o escrever e preencher o espaço do blog esta semana. Já pensei numa série de coisas, fictícias ou reais, e nada. Já li alguns jornais em busca de uma notícia que merecesse um comentário e nada. E olha que encontrei um bocado de coisa: no Paraná, um cinegrafista morreu atropelado por um avião. O rapaz de apenas 26 anos, olhando pela angular da câmera, não percebeu que o avião estava verdadeiramente próximo e sofreu o impacto fatal. Um marinheiro russo, servindo em um submarino, foi preso porque plantou maconha em uns jarrinhos perto da escotilha e estava "abastecendo" os colegas (isso sim é que visão capitalista!); o estilista famoso da Luciana Giminez, Ronaldo não sei das quantas, foi preso no cemitério roubando dois vasos de flores. Ele se explicou cientificamente: disse que estava tomando um remédio antidepressivo que o fazia comete...

ReiNo TriVial?

  Tenho algumas lembranças do tempo de Faculdade quando cursava Licenciatura em Letras e tinha como disciplinas Literatura Brasileira e Estrangeira. As aulas eram no recém criado Campus da UFRN, o Setor II ainda sem as edificações vizinhas, constituindo-se em um quase deserto. Muitos dos professores eram recém chegados de Mestrados e Doutorados fora de Natal, alguns do exterior. O ensino era na base das aulas expositivas, seminários e ainda não era obrigatória a apresentação de trabalho final, TCC. Alguns deles marcaram minha trajetória acadêmica, embora não a profissional, pois esta só se firmou quando, pelas circunstâncias, precisei ingressar na função docente. A professora Jacirema da Cunha Tahim ensinava Teoria Literária e impossível não lembrar os contos de Clarice Lispector estudados. Daí a minha paixão pela escrita da autora, a lembrança mais resistente sendo o conto Tentação , de cujo início nunca esqueci: “Ela estava com soluço. E como se não bastasse a claridade das...

Ecce Homo

  Uma das passagens bíblicas mais conhecida, mesmo pelos que não professam a fé cristã, é a atitude de Pilatos em não assumir a liberdade de Jesus, preferindo entregar essa decisão ao povo, (difundido a expressão latina ecce homo – Eis o Homem) mesmo sabendo que Barrabás tinha crimes comprovados, enquanto Jesus, não. Não ter a coragem de decidir, pondo em risco sua posição diante dos superiores romanos, como também o medo da reação dos que apoiavam Jesus, preferindo demagogicamente levar o povo a acreditar que tinha o poder de decisão, o  fato é um exemplo poderoso do que a omissão, a fraqueza de uma pessoa pode provocar. Pilatos usou da tradição de se soltar um prisioneiro judeu no período que antecedia a páscoa, achou que o povo escolheria o criminoso confesso, ele ficando, portanto, bem com qualquer que fosse a decisão: cumpriria a lei condenando um criminoso, soltaria um inocente. Contrariando as expectativas de Pilatos, o povo decide por Barrabás, condenando Jesus. ...

SuSSuRRo

  A   mão corta a escuridão do quarto no afastar da cortina. A luz do poste lança sombras na parede. Sobre a cama uma indumentária de cigana a contempla. Não sabe como chegara ali.  Sonho.  Como sempre o relógio a acorda às 7 horas. E como de costume, pula da cama, termina de acordar sob o chuveiro, veste-se apressada, come alguma coisa, toma duas xícaras de café para acordar e sai. Não mais que 40 minutos se passara. Faz a maquiagem entre uma parada e outro nos sinais. Sons de buzina, freadas colaboram para o seu despertar. Depois de 40 minutos entre carros, 20 minutos dando voltas no quarteirão em busca de uma vaga, estaciona, desce do carro, bate a porta e caminha em direção ao prédio. Ao atravessar a rua, percebe que está sem bolsa. Assustada, pensa que foi assaltada, mas se dá conta que mal saíra do carro. Sem bolsa, o pensamento pula para a chave. Onde deixara? Dentro da bolsa, dentro do carro. Retorna. Porta destravada, pois a chave ficara na bolsa. No banco...

Êh, vida de gado!

Não sei a quantos anos li A Face Oculta de Eva, livro da egípcia Nawal El Saadawi , que falava sobre a situação feminina na Índia, no Egito e em alguns países africanos, principalmente à operação para que das mulheres fosse negado o prazer sexual através da mutilação do clitóris. Prática ainda hoje em voga apesar de tanto conhecimento, tecnologia e da eficiente medicina do nosso tão exaltado século XXI . O livro foi editado no início dos anos 70 e devo ter lido na mesma década. E já naqueles anos fiquei indignada por tal prática acontecer com a decantada liberação feminina em efervescência. No início desse ano li Uma Distância entre nós, da jornalista indiana Thrity Umrigar e, por razões só um pouquinho diferentes, também fiquei indignada. Neste não há mulher sendo mutilada, mas o poder do macho é alarmantemente respeitado, esteja sua conduta certa ou errada. Para completar, li hoje (lá no salão, que é onde encontramos revistas vencidas e completamente dispensáveis) na revista Elle ...