Pular para o conteúdo principal

ReiNo TriVial?


 

Tenho algumas lembranças do tempo de Faculdade quando cursava Licenciatura em Letras e tinha como disciplinas Literatura Brasileira e Estrangeira. As aulas eram no recém criado Campus da UFRN, o Setor II ainda sem as edificações vizinhas, constituindo-se em um quase deserto.

Muitos dos professores eram recém chegados de Mestrados e Doutorados fora de Natal, alguns do exterior. O ensino era na base das aulas expositivas, seminários e ainda não era obrigatória a apresentação de trabalho final, TCC. Alguns deles marcaram minha trajetória acadêmica, embora não a profissional, pois esta só se firmou quando, pelas circunstâncias, precisei ingressar na função docente.

A professora Jacirema da Cunha Tahim ensinava Teoria Literária e impossível não lembrar os contos de Clarice Lispector estudados. Daí a minha paixão pela escrita da autora, a lembrança mais resistente sendo o conto Tentação, de cujo início nunca esqueci: “Ela estava com soluço. E como se não bastasse a claridade das duas horas, ela era ruiva.”. O conto narra com maestria o encontro de uma menina solitária à porta de casa com um cachorro que não lhe pertence. Nas frases concisas e sensíveis, a autora desvenda toda a infância solitária da menina e sua busca por companhia.

Outro conto inesquecível é Amor, a história de Ana, uma dona de casa com suas obrigações conjugais e maternais que no bonde de volta para casa reflete sobre sua vida, cuja  “precaução reduzia-se a tomar cuidado na hora perigosa da tarde, quando a casa estava vazia sem precisar mais dela, o sol alto, cada membro da família distribuído nas suas funções”. No trajeto, a partir da observação de um homem cego que masca chiclete, a vida que tem e a que poderia ter vivido lhe passam pela cabeça. As reflexões da personagem são registradas de forma poética por uma autora que conhecesse profundamente a natureza humana e o que habita no íntimo de uma mulher que se dedica à família, abrindo mão de seus desejos.  

Com a mesma professora, estudamos exaustivamente o poema O  Arranha-Céu de Vidro de Cassiano Ricardo. O poema é um primor de descrição sobre os  imponentes prédios que aos poucos tomam conta da cidade, tornando-a impessoal, objeto de olhares, embora ausente de humanidade: “Impossível descrever a tormenta/sobre a cidade, sobre o arranha-céu de vidro./A hora do pânico./Uma cintilação crua e os fios da iluminação pública e do/tráfego/síncope das palavras...”. O poeta, no entanto, faz surgir no poema a figura de um arco-íris, que se configura como “O arco de aliança, o sinal do armistício/Assinado entre Deus e as suas criaturas./Arco no céu, e íris em nossos olhos/pra nos lembrar que ainda somos náufragos” em um contraponto entre o moderno e o que realmente sensibiliza o humano.

Outra professora que discutia literatura brasileira era Zélia, de cujo sobrenome não lembro, que nos fez construir um debate sobre a possível traição de Capitu, estudar a personagem Rita Baiana do livro O Cortiço, analisar do ponto de vista social a obra Capitães de Areia, ler quase toda a obra de Érico Veríssimo, como Ana Terra, Um Certo Capitão Rodrigo, Incidente em Antares, ler Vidas Secas, São Bernardo, Caetés, Memórias do Cárcere de Graciliano Ramos, e na sequência, livros de Raquel de Queiroz, de José Lins do Rego, deixando de lado muitos poetas, concentrando-se em Drummond, João Cabral de Melo Neto, Thiago de Mello.

Para a literatura estrangeira, disciplina ministrada pelo professor Wagner, o foco era para autores americanos, exceção para o francês Stendhal, a inglesa Jane Austen e seus dilemas. Dos americanos, lemos As Vinhas da Ira, John Steinbeck, como também A Leste do Éden; Som e Fúria de Falkner; Ernest Hemingway e o seu O Velho e o Mar; Moby Dick do Herman Melville e o insuperável O Sol é para Todos, que até hoje releio, de Harper Lee. Dos poetas, Emily Dickinson, Walt Whitman, T. S. Eliot e seu extraordinário poema Quarta Feira de Cinzas:

“Porque não mais espero retornar
Porque não espero
Porque não espero retornar
A este invejando-lhe o dom e àquele o seu projeto
Não mais me empenho no empenho de tais coisas
(Por que abriria a velha águia suas asas?)
Por que lamentaria eu, afinal,
O esvaído poder do reino trivial?...”

Além das literaturas, havia aulas de latim, gramáticas portuguesa e inglesa, didática, metodologias que não me deixaram muitas marcas, a exceção da companhia dos colegas, a escura parada de ônibus, as idas à Biblioteca, e a lembrança da morte de Elvis Presley em agosto de 1977 que eu soube em plena aula por um colega que levou revistas, fotos e vinis, pois era fã dedicado.

A formação atiçou meu amor pela leitura muito mais que me ensinou a dar aula, o que aprendi dando aula. De lá para cá, e lá se vão 4 décadas, li de um tudo, ampliando a leitura com livros de autores conhecidos, descobrindo novos, ampliei as temáticas. Descobri autores africanos, latinos, do leste europeu, pois, parece, à época, poucos mereciam atenção, em uma constante de que bom para o estudante brasileiro era a literatura clássica e a norte americana.

Leio como se me alimentasse constantemente de palavras para não enferrujar o cérebro. Até aqui tem dado certo.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Bugol

  Nos idos dos anos 60, os Estados Unidos implementaram um programa de assistência aos países do terceiro mundo denominado de Aliança para o Progresso. Através dele, a população carente recebia alimentos para suprir as necessidades nutricionais, além de recursos financeiros para o desenvolvimento do estado, como casas populares, escolas. Dessa leva, em Natal se construíram o conjunto habitacional Cidade da Esperança e o Instituto de Educação Pte Kennedy, enquanto o navio Hope, ancorado no Porto na Ribeira, distribuía leite em pó e realizava tratamentos médicos e cirurgias que até então eram inacessíveis aos potiguares. O símbolo do programa era um aperto de mãos entre indivíduos, simbolicamente estadunidenses e latinos americanos. Os americanos não estavam preocupados altruisticamente em salvar populações da fome. Estavam muito mais interessados em fazer com que o comunismo não aportasse e conquistasse terrenos por essas bandas. Era o tempo da guerra fria, o mundo polari...

Espirro cafeínado

O inusitado acontece a todos. Se houvesse uma câmera na hora, precisamente sexta-feira, na praça de alimentação do Midway, agora eu estaria pateticamente conhecida e uma amiga estaria com novo modelo de blusa para todo o Brasil (segundo ela mesma, num exemplo de bom humor, uma blusa com bordados de Caicó!). Avessas ao carnatal, éramos quatro em uma mesa na um pouco menos barulhenta praça de alimentação do shopping, em final de expediente, devido que a cidade inteira – ou quase – mobilizava-se em torno de o Chiclete com Banana, Trios & Cia – que Deus nos proteja de tamanha sandice! Depois de alguns Sushi e Sashimi, duas bebiam cerveja, uma comia torta de limão, e eu resolvi tomar um cappuccino. Conversa vai e vem, a conversar girou para as excentricidades de uma de nós que não viaja porque tem medo, podendo até desmaiar durante o percurso. A sugestão foi que não haveria problema em desmaiar, pois quando chegasse ao destino, já estaria lá mesmo, ou então, provocássemos um desmaio e l...

Fermento

Não parecia, mas era. Era bruxa. Não das antigas com vassoura e balde e corvos sobre os ombros. Das modernas, aliás bem modernas. Tinha uma namorada. É verdade que a namorada não valia nada, só queria o bem estar proporcionado pelo dinheiro, mas tava ali toda noite lhe dando uma costela quente. Nem sempre o algo mais. Tinha 60 anos, aparência de 50 depois de algumas correções estéticas, aposentada por órgão federal depois de muito trabalho e algumas bruxarias. Viagem anual à Europa, banho de civilização e guarda-roupa renovado nas calles espanholas e piazzas italianas. Quando necessário, usava alguns truques sem que os outros percebessem. Era uma fera na arte da dissimulação. A namorada era o alvo preferido. Freqüentava o mesmo bar há anos, embora de restaurante tivesse mais opções, porque era adepta da boa mesa. E era no bar onde as brigas sempre começavam. Bastava um olhar atravessado, um sorriso mais gentil para que os demônios lhe cutucassem disparando suspeitas em volta da pobre m...

Amor de feira

Não chega notícia nenhuma. Uma leve saudade a faz esperar, embora saiba que nada virá. Não pode culpar o carteiro, não se entrega carta que não é postada. A carta pedindo notícias foi inútil. Sabe que foi entregue, pois fulano recebeu resposta a que mandara. Para ela nada. O silêncio é o adeus não pronunciado. Paga pelo erro de gostar de frutas próprias de cada estação. O último encontro fora de muita conversa e nada. Não podia simplesmente sair de casa, deixar tudo assim como quem vai à esquina para logo voltar. Não cedera às exigências pedidas em nome do amor. Que amor? O amor viera de caminhão com as frutas descarregadas no pátio da feira. Melões, graviolas, abacaxis, bananas, cajás da região que há muito não vê. Do avental tirara o dinheiro pagando a entrega e justando prazo para novo descarrego. Olhara bem aquele homem e o corpo de imediato estremecera. Mal disse obrigada e voltara para trás da banca. Ele dera as costas indiferente a sua presença, interessado no dinheiro, na carga...

DOIDera

Tem alma reclusa, dessas que se basta ao sentar e ler um livro em vez de sair, tomar cerveja no calorão da cidade. Os amigos não entendem e por não compreenderem pararam os convites para as noitadas. Só de ano em ano, aniversário, confraternização de natal é que se lembram de convidar-lhe. Cinema no mais das vezes vai sozinha que a companhia não é companhia para as horas que ela pode e também porque não é mais riso pra ninguém. A turma, a outra, é bem mais animada. Há dias em que pensa que é melhor usar uma capa de invisível e passar pela vida sem ser vista. Mas, é teimosa e insiste em viver. Viver de teimosia é seu lema há um tempão, desde aquele dia longínquo quando se deu conta de que era só, mesmo que vivesse arrodeada de gente. Já tentou, bem que tentou se livrar dessa sensação, mas não conseguiu. Festa de casamento, nascimento de filho, enterros, formatura, tudo que junta gente só lhe faz aumentar a dor de se saber só. Quando adoece, adoece por inteiro, começando na cabeça...

Sem tempo

Quem passa sempre por aqui talvez estranhe o espaço entre uma postagem e outra. Ando ligada demais no trabalho, pois dez meses depois de férias, licenças, retornei. Não digo que ao batente, pois tantos anos depois não sei se trabalho pra mim é pegar no batente. De tanto subir escadas e descer ladeiras, a gente fica assim um tanto anestesiado com tudo que nos acontece na vida profissional. Em alguns momentos até parece que saímos de nós e flutuamos além da cena, contemplando-a com uma certa descrença. O danado é que quando nos fazemos de um jeito não há jeito de mudar. Trabalhar na área de educação é uma mão dupla sempre, há inevitavelmente um prazer misturado à frustração de não se conseguir todo o sonhado, há sempre o esforço para manter a chama acesa, dizendo-se a si mesmo que daqui a uns anos aquelas lições darão frutos. Há uma mania generalizada de na educação se criar uma metáfora com árvore, com frutos como se nós, educadores, fossemos os únicos responsáveis pelo futuro de crianç...