Pular para o conteúdo principal

Ave, Clarice!

"O que me descontrai, por incrível que pareça, é pintar. Sem ser pintora de forma alguma, e sem aprender nenhuma técnica. Pinto tão mal que dá gosto e não mostro meus, entre aspas, quadros, a ninguém. É relaxante e ao mesmo tempo excitante mexer com cores e formas sem compromisso com coisa alguma. É a coisa mais pura que faço (...) Acho que o processo criador de um pintor e do escritor são da mesma fonte. O texto deve se exprimir através de imagens e as imagens são feitas de luz, cores, figuras, perspectivas, volumes, sensações." CLARICE LISPECTOR.


Abaixo, quadro denominado LUTA SANGRENTA PELA PAZ, pintado pela escritora em 1975.







Fui apresentada ao mundo de Clarice Lispector por uma professora ainda quando estava na faculdade. E nunca me esqueci do conto "Tentação", cujo primeiro parágrafo diz: "Ela estava com soluço. E como se não bastasse a claridade das duas horas, ela era ruiva". O conto narra a solidão de uma garota sentada desolada num degrau e vê em um cachorro que se aproxima a "sua outra metade". Comprometidos ambos, separam-se e ela "debruçada sobre a bolsa e os joelhos" o vê partir. Ali estava toda a solidão, a angústia de uma separação inevitável! E o que me impressionou no conto me maravilha até hoje na escritora: a capacidade de clara e concisamente traduzir a alma humana, transformar em puro lirismo fatos corriqueiros muitas vezes impercebíveis!
Somente depois é que o dinheiro deu para comprar alguns de seus livros que ainda estão comigo. Um deles, "Um Sopro de Vida", exaustivamente grifado, anotado, indignada às vezes; na maioria, maravilhada.
Eis que agora, uma amiga virtual mais do que real, proporciona-me novo encontro com Clarice e lá vou eu feito louca apaixonando-me novamente, eu que jurara don't fall in love again!

Clarice, ao lado de Cecília Meireles, é uma das escritoras que me pega naquilo que tenho de mais íntimo e freudiano. As duas escreveram com alma, consideraram o ato de escrever uma pulsão incontrolável, embora a própria Clarice tenha afirmado que só escrevia quando queria, pois se considerava uma amadora e fazia "questão de continuar a ser, (pois) profissional é aquele que tem uma obrigação consigo mesmo de escrever, ou então em relação ao outro. Agora, eu faço questão de não ser profissional, para manter minha liberdade." Possivelmente, as duas faziam do não escrever um escrever tão pleno, desnudando-se tanto, conhecedoras de todas as aflições, solidões, certezas e incertezas da vida, daquele cerne que a todos nós é imutável, mesmo que vistamos máscaras e roupagens diferentes, sabiam que "por mais que se ande, é certo:/-não se encontra o bem perfeito./Vai nascendo só deserto/pelo peito./E entre o desejado e o aceito/dorme um horizonte encoberto." (Cecília Meireles).
No livro enviado pela paulimineibaiana Lucila (que me perdoe o neologismo) estão as crônicas publicadas no Jornal do Brasil. Algumas bem conhecidas, como a que fala da colega que "possuía o que qualquer criança gostaria de ter: um pai dono de livraria" e todo o tormento sofrido para ler emprestado o livro As reinações de Narizinho; a que conta sua paixão em roubar rosas; o que era sair de madrugada para tomar banho de mar em Olinda, como também a tristeza que mascarou o carnaval, quando toda fantasiada teve que ir à farmácia comprar remédio para a mãe doente, perdendo dentro de si o sabor da festa. É terno – embora quase hilário - vê-la contar seu desencanto na eternidade perdida num chiclete!
Penetrar no universo lispecteano para alguns é adentrar num mundo repleto de linguagem inacessível, colhendo seres e objetos que parecem irreais. Estes não conseguem ir além, porque a consideram não uma escritora, mas uma invencionista, uma hábil jogadora de palavras. E aqui cabe refletir que ficcionista Clarice pode ter sido, se seus personagens somos todos nós? Se nosso âmago, se dele quisermos saber, está todo nas linhas dos seus livros?
Para outros, no entanto, é mergulhar em si mesmo, ir além daquilo que os sentidos percebem, rompendo o convencional, acreditando, como ela disse, que "se houvesse um céu, uma pessoa que se sacrificou por covardia ia ser punida e iria para um inferno qualquer. Se é que uma vida morna não é ser punida por essa mesma mornidão. Pegue para você o que lhe pertence, e o que lhe pertence é tudo o que sua vida exige. Parece uma vida amoral. Mas o que é verdadeiramente imoral é ter desistido de si mesma."


Para estes, não há solução. E vezes sem conta, anos após anos, leituras pós leituras, sucumbimos ao fascínio das palavras que não envelhecem, pois, tal qual a vida, renovam-se todos os dias; vivemos a metáfora da esperança, não o inseto, mas "a clássica, que tantas vezes verifica-se ser ilusória, embora mesmo assim nos sustente sempre."



PS.: Essa é minha reverência especial a Lucila Casseb e aos ERRANTES que aportaram e vão aportar no porto da Clarice.

Comentários

Fantasma disse…
Cumadi,
se seu intento era me matar, conseguiu!
Estou aqui mortinha da silva xavier de emoção e pasma de espanto, com a habilidade e sensibilidade com que você desenha as palavras.
Anônimo disse…
Duas coisas não se discutem: 1ª Clarice é apaixonante e 2ª descrita por tuas palavras é cativante. Passa a ser amor "pra casar".

Parabéns!

Postagens mais visitadas deste blog

Bugol

  Nos idos dos anos 60, os Estados Unidos implementaram um programa de assistência aos países do terceiro mundo denominado de Aliança para o Progresso. Através dele, a população carente recebia alimentos para suprir as necessidades nutricionais, além de recursos financeiros para o desenvolvimento do estado, como casas populares, escolas. Dessa leva, em Natal se construíram o conjunto habitacional Cidade da Esperança e o Instituto de Educação Pte Kennedy, enquanto o navio Hope, ancorado no Porto na Ribeira, distribuía leite em pó e realizava tratamentos médicos e cirurgias que até então eram inacessíveis aos potiguares. O símbolo do programa era um aperto de mãos entre indivíduos, simbolicamente estadunidenses e latinos americanos. Os americanos não estavam preocupados altruisticamente em salvar populações da fome. Estavam muito mais interessados em fazer com que o comunismo não aportasse e conquistasse terrenos por essas bandas. Era o tempo da guerra fria, o mundo polari...

Miolo de quartinha e carga d'água

Não adianta. Não adianta colocar os dedos sobre o teclado e fazer um download que me leve à inspiração quando os acontecimentos me travam para o escrever e preencher o espaço do blog esta semana. Já pensei numa série de coisas, fictícias ou reais, e nada. Já li alguns jornais em busca de uma notícia que merecesse um comentário e nada. E olha que encontrei um bocado de coisa: no Paraná, um cinegrafista morreu atropelado por um avião. O rapaz de apenas 26 anos, olhando pela angular da câmera, não percebeu que o avião estava verdadeiramente próximo e sofreu o impacto fatal. Um marinheiro russo, servindo em um submarino, foi preso porque plantou maconha em uns jarrinhos perto da escotilha e estava "abastecendo" os colegas (isso sim é que visão capitalista!); o estilista famoso da Luciana Giminez, Ronaldo não sei das quantas, foi preso no cemitério roubando dois vasos de flores. Ele se explicou cientificamente: disse que estava tomando um remédio antidepressivo que o fazia comete...

Espirro cafeínado

O inusitado acontece a todos. Se houvesse uma câmera na hora, precisamente sexta-feira, na praça de alimentação do Midway, agora eu estaria pateticamente conhecida e uma amiga estaria com novo modelo de blusa para todo o Brasil (segundo ela mesma, num exemplo de bom humor, uma blusa com bordados de Caicó!). Avessas ao carnatal, éramos quatro em uma mesa na um pouco menos barulhenta praça de alimentação do shopping, em final de expediente, devido que a cidade inteira – ou quase – mobilizava-se em torno de o Chiclete com Banana, Trios & Cia – que Deus nos proteja de tamanha sandice! Depois de alguns Sushi e Sashimi, duas bebiam cerveja, uma comia torta de limão, e eu resolvi tomar um cappuccino. Conversa vai e vem, a conversar girou para as excentricidades de uma de nós que não viaja porque tem medo, podendo até desmaiar durante o percurso. A sugestão foi que não haveria problema em desmaiar, pois quando chegasse ao destino, já estaria lá mesmo, ou então, provocássemos um desmaio e l...

Fermento

Não parecia, mas era. Era bruxa. Não das antigas com vassoura e balde e corvos sobre os ombros. Das modernas, aliás bem modernas. Tinha uma namorada. É verdade que a namorada não valia nada, só queria o bem estar proporcionado pelo dinheiro, mas tava ali toda noite lhe dando uma costela quente. Nem sempre o algo mais. Tinha 60 anos, aparência de 50 depois de algumas correções estéticas, aposentada por órgão federal depois de muito trabalho e algumas bruxarias. Viagem anual à Europa, banho de civilização e guarda-roupa renovado nas calles espanholas e piazzas italianas. Quando necessário, usava alguns truques sem que os outros percebessem. Era uma fera na arte da dissimulação. A namorada era o alvo preferido. Freqüentava o mesmo bar há anos, embora de restaurante tivesse mais opções, porque era adepta da boa mesa. E era no bar onde as brigas sempre começavam. Bastava um olhar atravessado, um sorriso mais gentil para que os demônios lhe cutucassem disparando suspeitas em volta da pobre m...

Amor de feira

Não chega notícia nenhuma. Uma leve saudade a faz esperar, embora saiba que nada virá. Não pode culpar o carteiro, não se entrega carta que não é postada. A carta pedindo notícias foi inútil. Sabe que foi entregue, pois fulano recebeu resposta a que mandara. Para ela nada. O silêncio é o adeus não pronunciado. Paga pelo erro de gostar de frutas próprias de cada estação. O último encontro fora de muita conversa e nada. Não podia simplesmente sair de casa, deixar tudo assim como quem vai à esquina para logo voltar. Não cedera às exigências pedidas em nome do amor. Que amor? O amor viera de caminhão com as frutas descarregadas no pátio da feira. Melões, graviolas, abacaxis, bananas, cajás da região que há muito não vê. Do avental tirara o dinheiro pagando a entrega e justando prazo para novo descarrego. Olhara bem aquele homem e o corpo de imediato estremecera. Mal disse obrigada e voltara para trás da banca. Ele dera as costas indiferente a sua presença, interessado no dinheiro, na carga...

DOIDera

Tem alma reclusa, dessas que se basta ao sentar e ler um livro em vez de sair, tomar cerveja no calorão da cidade. Os amigos não entendem e por não compreenderem pararam os convites para as noitadas. Só de ano em ano, aniversário, confraternização de natal é que se lembram de convidar-lhe. Cinema no mais das vezes vai sozinha que a companhia não é companhia para as horas que ela pode e também porque não é mais riso pra ninguém. A turma, a outra, é bem mais animada. Há dias em que pensa que é melhor usar uma capa de invisível e passar pela vida sem ser vista. Mas, é teimosa e insiste em viver. Viver de teimosia é seu lema há um tempão, desde aquele dia longínquo quando se deu conta de que era só, mesmo que vivesse arrodeada de gente. Já tentou, bem que tentou se livrar dessa sensação, mas não conseguiu. Festa de casamento, nascimento de filho, enterros, formatura, tudo que junta gente só lhe faz aumentar a dor de se saber só. Quando adoece, adoece por inteiro, começando na cabeça...