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Lady Lu

Tenho uma amiga que não conheço, com quem tenho, contra todas as previsões contrárias possíveis, algumas afinidades, por assim dizer, "mediúnicas" (quem me perdoem os kardecistas). Seu nome é luz, a origem latina significando luminosa, por que luz ela é. A poucos metros da sua casa baiana, ela alcança o mar, onde lava os pés, às vezes mergulha, e rotineiramente o contempla como se contemplam as coisas grandiosas da vida: maravilhada e inquisitivamente. Naquele espelho d'água, ela espera vê Deus e se pergunta vezes sem conta o porquê da crueldade, dos desatinos humanos; também agradece as surpresas boas, as dádivas que a vida lhe oferece e ali, naquela contemplação, sente-se pequenina, pequenina diante do poder divino.
Minha amiga tem o dom da diplomacia. Não pode ver fogo, seja verbal, "escritural", cara a cara, que sai logo apartando os contendores armada de uma mangueira imensa carregada de palavra afáveis, conciliadoras. Nunca a "li" com raiva, tampouco a vi. Imagino que sejam episódios raros, mas daqueles em que se roda a baiana (no caso dela, literalmente!). Além da diplomacia, ao sentir que alguém tá tristinho, assim meio down, ela se arma de todo amor e solidariedade e enche a pessoa de palavras otimistas, citações, poemas, receitas de chazinhos e a boa e apimentada comida baiana, porque saco vazio não se põe em pé, uai (isso do seu lado mineiro)!
Essa amiga diz que às vezes tem crises de depressão, que sente o chão fugir-lhe por sob os pés, tomando um soco que a desnorteia tão fortemente que as estrelinhas da vida se apagam e o que ela vê é uma estrada sombria. Na verdade, o que ela chama de depressão é uma sensação comum a todos que se reconhecem grãos de areia nesse "mundo mundo vasto mundo", a quem sabe que "a vida é louca/ a vida é uma sarabanda/ é um corrupio..."
(
Mário Quintana). A minha amiga sabe que "os ombros suportam o mundo/ e ele não pesa mais que a mão de uma criança", mas isso não lhe salva completamente, não a sossega de todo, porque não há consolo nessa metáfora drummondiana, não há angústia que passe com meias palavras para quem tem uma consciência aguçada de si e do mundo. Não que ela tenha aprendido tudo isso nos tantos livros que sofregamente leu e lê, ou apenas nas dores, alegrias que a vida lhe deu e dá – ela aprendeu isso porque é da natureza dela esse gosto acre da vida.
Mas, se vocês pensam que minha amiga é do tipo de pessoa que se deixa abater, acabrunhando-se, estão enganados! Ao sentir a tristeza se aproximando, ela diz igual a música: "Oh tristeza, me desculpe,/ Tô de malas prontas/ Hoje a poesia veio ao meu encontro/ Já raiou o dia, vamos viajar" (
Paulo César Pinheiro), porque ela é igualzinho a um jatobá: verga, mas não cai; sua determinação alcança uma altura de quase 20 metros e o diâmetro do seu abraço é mais ou menos um metro. Com todas essas dimensões, ela não passa despercebida em fila de Banco, dos Correios (lugares onde vai frequentemente), nas conversas em sala de médicos, clínicas de fisioterapia (isso se não tiver um livro para ler, porque se tiver lendo, o aconselhável é deixá-la quieta, entregue à alguma estória, brigando ou maravilhando-se com algum personagem), em supermercados e no Clube que freqüenta. Onde quer que ela esteja, lá estarão os seus famosos pitacos!
Minha amiga é ímpar, pois aprendeu que "no amor felizmente a riqueza está na doação mútua. O que não significa que não haja luta: é preciso se doar o direito de receber amor. Mas lutar é bom. Há dificuldades que só por serem dificuldades já esquentam o nosso sangue, que este felizmente pode ser doado" (
Clarice Lispector).

Comentários

Fantasma disse…
Cumadi, faz isso comigo não. Eu desmonto. E o que eu faço com os caquinhos? Beijos do coração.
ReFerraz disse…
Coisa linda essa!
maria olimpia disse…
Gostei muito do texto, não só pelo objeto (nossa Lu) como pela forma como foi escrito. Parabéns!!!!!
Anônimo disse…
Adorei!

Parabéns, Ednice, pelo seu jeito de escrever, tão gostoso de ler, e pela escolha da Homenageada.

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