Pular para o conteúdo principal

AMARelinha

Desenhado a giz na calçada o jogo da amarelinha escancara a palavra céu. Suas pernas pulam casa por casa movimentando em harmonia o corpo no jogar/pegar a pedra. O sol se reflete no concreto secando o chão da chuva. Ao seu lado, as colegas esperam a vez de jogar.
A calçada é sua. Naquela rua de pedras e buracos com canteiros de lixo, sua casa é das poucas que tem calçada, trabalho do pai pedreiro. Sobre ela reúnem-se diariamente as amigas após o horário escolar. O giz amarelo, tirado da caixa da professora, amplia a mágica no desejo de ganhar o céu. Ali, pular leva ao céu; cair, ao inferno, palavra riscada com o giz vermelho tirado da mesma caixa.
Tem oito anos e o mundo é todo seu. Escuta todo dia em casa que a vida não é fácil. O significado só pode ser porque se tem pouco dinheiro, o pai nem sempre tem trabalho e a roupa que a mãe lava das donas lá do outro bairro cada dia fica menos, porque parece que as senhoras não têm mais dinheiro pra pagar e outras não confiam em lavadeiras e mandam para as lavanderias chiques, onde tem lavagem a seco. Para lavar não é preciso molhar?
Todo dia aproveita a merenda da escola para comer e repetir seja lá o que for servido, pois assim come menos em casa, deixando mais para os outros dois irmãos ainda sem idade escolar. Fora a merenda, a escola é uma agonia, não entende o que a professora fala, aqueles desenhos lá no quadro não compreende direito, mas faz tudo bem bonitinho no caderno para não levar grito. Na hora de ler, é um danado de aperreio, gaguejando as letras, às vezes não sabe nem o que disse. Mas, vai aprender, vai mostrar pra aquela sabichona da sala que vai ler de carreirinha.
Distraída, erra o quadrado. Encosta-se na parede da casa, dando vez à colega no ritmo de pegar/jogar a pedra. São quase seis horas. Dali a pouco todas as mães vão chamá-las para tomar café, e brincadeira só amanhã, pois ninguém fica na rua à noite. De uns tempos pra cá, quase toda noite zunido de bala vai e vem entre polícia e aqueles homens lá de cima da ladeira. Deles só sabe o que entreouve, porque isso não é conversa de criança. Dizem que são bandidos, vendem drogas, armas. Se são bandidos, por que não vivem na cadeia em vez de correr, apitar com os carrões para lá e pra cá na maior carreira?
Ao observar a amiga pular para alcançar o céu, um zunido alto corta o ar, tirando Magda das suas inocentes perguntas. De início pensa que Clarinha pisou forte demais e caiu, mas ao se aproximar vê um fio vermelho manchando a camiseta. Os gritos se misturam a barulho de carros passando como raios pela rua. Bandido na frente, polícia atrás. Inútil. Magda não compreende, mas sabe que a amiga não vai atender o chamado da mãe, nem caminhar com ela todos os dias para a escola. Não vai jogar amarelinha, tentando alcançar o céu, temendo o inferno. Aquele círculo tracejado em vermelho na calçada já a alcançou.
Desenhado a giz na calçada o jogo da vida escancara a palavra injustiça, o giz amarelo se dissolvendo, misturando-se ao vermelho inocente. Nunca mais amarelinha. Agora Magda sabe que a vida não é fácil tem outro sentido.

Comentários

Fantasma disse…
Você sabe o que é cara de ué? É a cara que fico quando acabo de ler seus escritos. Aff...
Fátima Mota disse…
Particularmente seus escritos me emocionam demais, esse então....Me deixou sem chão, sem palavras... sem comentárioss...
Bjs

Postagens mais visitadas deste blog

Bugol

  Nos idos dos anos 60, os Estados Unidos implementaram um programa de assistência aos países do terceiro mundo denominado de Aliança para o Progresso. Através dele, a população carente recebia alimentos para suprir as necessidades nutricionais, além de recursos financeiros para o desenvolvimento do estado, como casas populares, escolas. Dessa leva, em Natal se construíram o conjunto habitacional Cidade da Esperança e o Instituto de Educação Pte Kennedy, enquanto o navio Hope, ancorado no Porto na Ribeira, distribuía leite em pó e realizava tratamentos médicos e cirurgias que até então eram inacessíveis aos potiguares. O símbolo do programa era um aperto de mãos entre indivíduos, simbolicamente estadunidenses e latinos americanos. Os americanos não estavam preocupados altruisticamente em salvar populações da fome. Estavam muito mais interessados em fazer com que o comunismo não aportasse e conquistasse terrenos por essas bandas. Era o tempo da guerra fria, o mundo polari...

Miolo de quartinha e carga d'água

Não adianta. Não adianta colocar os dedos sobre o teclado e fazer um download que me leve à inspiração quando os acontecimentos me travam para o escrever e preencher o espaço do blog esta semana. Já pensei numa série de coisas, fictícias ou reais, e nada. Já li alguns jornais em busca de uma notícia que merecesse um comentário e nada. E olha que encontrei um bocado de coisa: no Paraná, um cinegrafista morreu atropelado por um avião. O rapaz de apenas 26 anos, olhando pela angular da câmera, não percebeu que o avião estava verdadeiramente próximo e sofreu o impacto fatal. Um marinheiro russo, servindo em um submarino, foi preso porque plantou maconha em uns jarrinhos perto da escotilha e estava "abastecendo" os colegas (isso sim é que visão capitalista!); o estilista famoso da Luciana Giminez, Ronaldo não sei das quantas, foi preso no cemitério roubando dois vasos de flores. Ele se explicou cientificamente: disse que estava tomando um remédio antidepressivo que o fazia comete...

ReiNo TriVial?

  Tenho algumas lembranças do tempo de Faculdade quando cursava Licenciatura em Letras e tinha como disciplinas Literatura Brasileira e Estrangeira. As aulas eram no recém criado Campus da UFRN, o Setor II ainda sem as edificações vizinhas, constituindo-se em um quase deserto. Muitos dos professores eram recém chegados de Mestrados e Doutorados fora de Natal, alguns do exterior. O ensino era na base das aulas expositivas, seminários e ainda não era obrigatória a apresentação de trabalho final, TCC. Alguns deles marcaram minha trajetória acadêmica, embora não a profissional, pois esta só se firmou quando, pelas circunstâncias, precisei ingressar na função docente. A professora Jacirema da Cunha Tahim ensinava Teoria Literária e impossível não lembrar os contos de Clarice Lispector estudados. Daí a minha paixão pela escrita da autora, a lembrança mais resistente sendo o conto Tentação , de cujo início nunca esqueci: “Ela estava com soluço. E como se não bastasse a claridade das...

Ecce Homo

  Uma das passagens bíblicas mais conhecida, mesmo pelos que não professam a fé cristã, é a atitude de Pilatos em não assumir a liberdade de Jesus, preferindo entregar essa decisão ao povo, (difundido a expressão latina ecce homo – Eis o Homem) mesmo sabendo que Barrabás tinha crimes comprovados, enquanto Jesus, não. Não ter a coragem de decidir, pondo em risco sua posição diante dos superiores romanos, como também o medo da reação dos que apoiavam Jesus, preferindo demagogicamente levar o povo a acreditar que tinha o poder de decisão, o  fato é um exemplo poderoso do que a omissão, a fraqueza de uma pessoa pode provocar. Pilatos usou da tradição de se soltar um prisioneiro judeu no período que antecedia a páscoa, achou que o povo escolheria o criminoso confesso, ele ficando, portanto, bem com qualquer que fosse a decisão: cumpriria a lei condenando um criminoso, soltaria um inocente. Contrariando as expectativas de Pilatos, o povo decide por Barrabás, condenando Jesus. ...

SuSSuRRo

  A   mão corta a escuridão do quarto no afastar da cortina. A luz do poste lança sombras na parede. Sobre a cama uma indumentária de cigana a contempla. Não sabe como chegara ali.  Sonho.  Como sempre o relógio a acorda às 7 horas. E como de costume, pula da cama, termina de acordar sob o chuveiro, veste-se apressada, come alguma coisa, toma duas xícaras de café para acordar e sai. Não mais que 40 minutos se passara. Faz a maquiagem entre uma parada e outro nos sinais. Sons de buzina, freadas colaboram para o seu despertar. Depois de 40 minutos entre carros, 20 minutos dando voltas no quarteirão em busca de uma vaga, estaciona, desce do carro, bate a porta e caminha em direção ao prédio. Ao atravessar a rua, percebe que está sem bolsa. Assustada, pensa que foi assaltada, mas se dá conta que mal saíra do carro. Sem bolsa, o pensamento pula para a chave. Onde deixara? Dentro da bolsa, dentro do carro. Retorna. Porta destravada, pois a chave ficara na bolsa. No banco...

Êh, vida de gado!

Não sei a quantos anos li A Face Oculta de Eva, livro da egípcia Nawal El Saadawi , que falava sobre a situação feminina na Índia, no Egito e em alguns países africanos, principalmente à operação para que das mulheres fosse negado o prazer sexual através da mutilação do clitóris. Prática ainda hoje em voga apesar de tanto conhecimento, tecnologia e da eficiente medicina do nosso tão exaltado século XXI . O livro foi editado no início dos anos 70 e devo ter lido na mesma década. E já naqueles anos fiquei indignada por tal prática acontecer com a decantada liberação feminina em efervescência. No início desse ano li Uma Distância entre nós, da jornalista indiana Thrity Umrigar e, por razões só um pouquinho diferentes, também fiquei indignada. Neste não há mulher sendo mutilada, mas o poder do macho é alarmantemente respeitado, esteja sua conduta certa ou errada. Para completar, li hoje (lá no salão, que é onde encontramos revistas vencidas e completamente dispensáveis) na revista Elle ...