Pular para o conteúdo principal

Pé de jurema

É um homem vazio. Depois de um sono inquieto, esse é o primeiro pensamento que vem à cabeça de Paulo: sou um homem oco, perdido. Isso o faz rir, pois se lembra imediatamente do verso "eu sou aquele amante à moda antiga, do tipo que ainda manda flores" da música de Roberto Carlos, modelo que sonhava seguir. No meio do sorriso, uma tristeza lhe invade a alma. Uma saudade que insiste em invadir-lhe o coração turva os olhos, e deseja nessa tarde chuvosa ficar à deriva na cama, lembrando um passado, coisas que poderiam ter sido.
Levanta-se, e a água fria do chuveiro alivia um pouco a sensação de peso. Sabe que tem de ir. Os colegas o esperam para uma noite de sábado. Não pode escolher uma roupa qualquer, por isso quantas tire do armário, quantas coloca sobre a cama, desprezando a combinação de cores, tentando visualizar o melhor efeito.
Homem vazio. A idéia fica martelando em sua cabeça. O vazio se instalou desde aquele longínquo dia quando aos doze anos saiu de casa levando a pouca roupa num velho saco de papel de embrulho. A surra do pai fora o motivo e, ainda sem saber, o princípio do homem que se tornaria. Sob o abrigo dos olhos e carinhos da avó crescera, freqüentando a escola, onde comia aquela mistura sem sal, sem sabor, sem nome.
Lembra-se nitidamente do dia que o pai fora buscá-lo e do pé de jurema onde se escondera, teimando em não voltar. Não voltou. E o que era visto como teimosia se transformou em determinação em sair daquele lugar, ser alguém, mostrar que não nascera para vida de sítio submetido às lamboradas, às ordens do pai. Viera para a capital onde até hoje mora. E a cidade grande o esperava para mostrar-lhe as gentes, as ruas, as vilas, as garras.
Na vila conhecera uma espécie diferente. Aquela gente perto dos seus conhecidos lá do sítio formava uma fauna humana que causaria um olhar atravessado do pai, uma censura muda dos irmãos tão tradicionais, para quem todos os diferentes eram errados, pecadores sem salvação. Espremido numa pequena casa conjugada entre um viciado e um travesti, trabalhava, estudava, estudava, trabalhava e só comia bem até o décimo dia do mês, pois o aluguel lhe levava a metade do salário. O mês passava entre bolachas secas engolidas com água, pastéis na hora do almoço. À noite ao chegar do colégio encontrava a solidariedade do vizinho travesti que muitas vezes lhe deu um prato de macarrão, uma sopa.
Aquela amizade no início lhe assustara. As estórias interioranas ecoavam em sua cabeça, criando um medo em Paulo muito maior do que a curiosidade de saber como era a vida do novo colega. Poderia um desconhecido lhe ajudar sem querer-lhe o corpo? Tal era a fama do travesti no bairro.
Não demorou muito para deixar a escola, pois trabalhava ou morria de fome. Ficou trabalhando em dois lugares ao mesmo tempo, sendo pau-mandado, pau pra toda obra. À noite, chegava morto em casa, juntando-se a Xavier, nome de guerra do colega travesti, na cerveja, no macarrão de fim de noite, nos churrascos de fim de semana à custa dos clientes ricos que em bares privados faziam suas festas. O colega, ganhando muito mais do que ele, insistia para que ele deixasse de trabalhar e formassem uma dupla na noite. Dizia não ter perigo nem de tiros nem de vírus.
Mas ele não acreditava. A figura do velho padre naquela igreja lá do fim do mundo onde morara assombrava seus pensamentos com a imagem do inferno, queimando-se vivo em chamas em meio a risadas. Melhor não arriscar em vírus nem tiro muito menos a danação.
Os estudos ficaram para trás pela idade, pela falta de tempo e agora pela falta de vontade em mudar. De trabalho em trabalho, amealhara o suficiente para comprar um bar, que depois se transformara em outro e mais outro, até que vieram os estrangeiros querendo investir no que hoje é a boate mais badalada da cidade. Os bens materiais lhe enchem a garagem, o guarda-roupa, a cama e a mesa, até mesmo os hotéis luxuosos quando viaja. Esse mesmo apego lhe tirou o medo de vírus, de tiros e, principalmente, da danação. Não precisa mais disso, pois tem sua própria danação, sua própria arma e do vírus sabe que é apenas uma questão de tempo. A tudo dera adeus, mesmo que lá em algum recanto sinta saudade do menino que foi e do homem que sonhara ser.
Sabe-se vazio sem salvação. Sabe que onde está não há mais pé de jurema algum.

Comentários

Fantasma disse…
Clap, clap, clap, clap, clap, clap!
Anônimo disse…
Menina! Arrasou! Onde você arranja tanto lirismo sem ser piegas? Tanta poesia numa situação tão corriqueira como a descrita por você? Dez. Não. Mil pra você e para seu conto.
Fantasma disse…
Eu quero maaaaaaaaaissssss!

Postagens mais visitadas deste blog

Bugol

  Nos idos dos anos 60, os Estados Unidos implementaram um programa de assistência aos países do terceiro mundo denominado de Aliança para o Progresso. Através dele, a população carente recebia alimentos para suprir as necessidades nutricionais, além de recursos financeiros para o desenvolvimento do estado, como casas populares, escolas. Dessa leva, em Natal se construíram o conjunto habitacional Cidade da Esperança e o Instituto de Educação Pte Kennedy, enquanto o navio Hope, ancorado no Porto na Ribeira, distribuía leite em pó e realizava tratamentos médicos e cirurgias que até então eram inacessíveis aos potiguares. O símbolo do programa era um aperto de mãos entre indivíduos, simbolicamente estadunidenses e latinos americanos. Os americanos não estavam preocupados altruisticamente em salvar populações da fome. Estavam muito mais interessados em fazer com que o comunismo não aportasse e conquistasse terrenos por essas bandas. Era o tempo da guerra fria, o mundo polari...

De amOR e de temPO

    Ainda quando estudava o antigo ginasial, uma professora de Português, interessada em que os alunos gostassem de ler e apreciassem os clássicos, passou como tarefa de avaliação uma redação sobre o texto  AMOR MENINO par te II do Sermão do Mandato – mas isso só soube muito depois já na faculdade - do Pe. Antonio Vieira. Agora, imaginem a dificuldade de adolescentes nos idos final dos anos 60 em cumprir essa tarefa. O que sabíamos do amor? Nada. Do tempo muito menos. O amor era em preto e branco nas fotonovelas que eu comprava no sebo na banca da feira livre, hábito também o das minhas amigas com quem trocava livros e revistas, caso contrário não leríamos nada. Apesar dessas imagens de amor, não lembro se as conversas já rondavam assuntos de namoro, casamento. Acho que não, pois éramos àquela época imaturas para tais assuntos. O universo ainda girava em volta de livros, estudar para provas, sorvetes, ouvir música e meninos não faziam parte do grupo. Aliás, eram olhados...

Ecce Homo

  Uma das passagens bíblicas mais conhecida, mesmo pelos que não professam a fé cristã, é a atitude de Pilatos em não assumir a liberdade de Jesus, preferindo entregar essa decisão ao povo, (difundido a expressão latina ecce homo – Eis o Homem) mesmo sabendo que Barrabás tinha crimes comprovados, enquanto Jesus, não. Não ter a coragem de decidir, pondo em risco sua posição diante dos superiores romanos, como também o medo da reação dos que apoiavam Jesus, preferindo demagogicamente levar o povo a acreditar que tinha o poder de decisão, o  fato é um exemplo poderoso do que a omissão, a fraqueza de uma pessoa pode provocar. Pilatos usou da tradição de se soltar um prisioneiro judeu no período que antecedia a páscoa, achou que o povo escolheria o criminoso confesso, ele ficando, portanto, bem com qualquer que fosse a decisão: cumpriria a lei condenando um criminoso, soltaria um inocente. Contrariando as expectativas de Pilatos, o povo decide por Barrabás, condenando Jesus. ...

ReiNo TriVial?

  Tenho algumas lembranças do tempo de Faculdade quando cursava Licenciatura em Letras e tinha como disciplinas Literatura Brasileira e Estrangeira. As aulas eram no recém criado Campus da UFRN, o Setor II ainda sem as edificações vizinhas, constituindo-se em um quase deserto. Muitos dos professores eram recém chegados de Mestrados e Doutorados fora de Natal, alguns do exterior. O ensino era na base das aulas expositivas, seminários e ainda não era obrigatória a apresentação de trabalho final, TCC. Alguns deles marcaram minha trajetória acadêmica, embora não a profissional, pois esta só se firmou quando, pelas circunstâncias, precisei ingressar na função docente. A professora Jacirema da Cunha Tahim ensinava Teoria Literária e impossível não lembrar os contos de Clarice Lispector estudados. Daí a minha paixão pela escrita da autora, a lembrança mais resistente sendo o conto Tentação , de cujo início nunca esqueci: “Ela estava com soluço. E como se não bastasse a claridade das...

SuSSuRRo

  A   mão corta a escuridão do quarto no afastar da cortina. A luz do poste lança sombras na parede. Sobre a cama uma indumentária de cigana a contempla. Não sabe como chegara ali.  Sonho.  Como sempre o relógio a acorda às 7 horas. E como de costume, pula da cama, termina de acordar sob o chuveiro, veste-se apressada, come alguma coisa, toma duas xícaras de café para acordar e sai. Não mais que 40 minutos se passara. Faz a maquiagem entre uma parada e outro nos sinais. Sons de buzina, freadas colaboram para o seu despertar. Depois de 40 minutos entre carros, 20 minutos dando voltas no quarteirão em busca de uma vaga, estaciona, desce do carro, bate a porta e caminha em direção ao prédio. Ao atravessar a rua, percebe que está sem bolsa. Assustada, pensa que foi assaltada, mas se dá conta que mal saíra do carro. Sem bolsa, o pensamento pula para a chave. Onde deixara? Dentro da bolsa, dentro do carro. Retorna. Porta destravada, pois a chave ficara na bolsa. No banco...

Vai de RetRO

Tem gente demais atrapalhando a vida de outros. Na hora de fazer o trabalho, não faz. Não sugere, não oferece críticas para melhorar.Trabalho realizado, concluído, fala. Reclama disso, desse, daquele e daquilo. O mar está todos os dias no mesmo lugar. As ondas vão e vêm. As fases da lua influem no movimento das ondas. Mas, as ondas não deixam de ir e vir. Seguem. Esperam que o mar continue favorecendo o movimento. Esperam que as areias se acomodem e se agitem no fundo do mar. Ou na praia. Esperar pelo outro é bobagem. O outro é o outro, sempre. Não se muda o mau caráter. O normal para ele é o de agitar a praia onde o outro se deita e se banha. Para ele é melhor enlamear a água, jogar areia e esperar a onda levar. De preferência para longe, para nunca mais. Não pensa que ele também é mar, é onda, é areia. Não pensa que um dia a maré não estará para tubarão, que ele pensa ser. Não se vê peixe em um grande cardume. O movimento do mar é inexorável. Nada para. Pode chover, pode fazer sol. M...