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Êh, vida de gado!

Não sei a quantos anos li A Face Oculta de Eva, livro da egípcia Nawal El Saadawi, que falava sobre a situação feminina na Índia, no Egito e em alguns países africanos, principalmente à operação para que das mulheres fosse negado o prazer sexual através da mutilação do clitóris. Prática ainda hoje em voga apesar de tanto conhecimento, tecnologia e da eficiente medicina do nosso tão exaltado século XXI.
O livro foi editado no início dos anos 70 e devo ter lido na mesma década. E já naqueles anos fiquei indignada por tal prática acontecer com a decantada liberação feminina em efervescência. No início desse ano li Uma Distância entre nós, da jornalista indiana
Thrity Umrigar e, por razões só um pouquinho diferentes, também fiquei indignada. Neste não há mulher sendo mutilada, mas o poder do macho é alarmantemente respeitado, esteja sua conduta certa ou errada. Para completar, li hoje (lá no salão, que é onde encontramos revistas vencidas e completamente dispensáveis) na revista Elle de agosto a matéria "A Índia perde suas meninas". Aí resolvi escrever.
Segundo a matéria, cerca de quinhentos fetos comprovadamente femininos são abortados por ano, porque as famílias pobres não podem se dar ao luxo de criar filhas, pois não há lucro nesse "investimento". Pelo contrário, para casar uma filha, a família tem que desembolsar ao noivo uma quantia que pode chegar até a 500 rúpias (equivalente a uns vinte mil reais!). O aborto não está sendo praticado apenas por mulheres pobres. As pobres é que estão aumentando o índice de morte por complicações decorrentes de abortos feitos em ambulâncias que percorrem o país realizando exames de ultra-som. Pós-exame, o veredicto: macho, vive; fêmea, morre! Muitas vans percorrem o país anunciando: Gaste cinco mil rúpias hoje para economizar cinqüenta mil amanhã! Quer dizer, é melhor pagar por um aborto do que pagar a exorbitância de um dote!
No país, o aborto é legalizado, mas diagnosticar o sexo do feto é uma prática ilegal desde 1994 e vários médicos que informam às mães sobre o sexo do bebê são processados. Pagar para casar é legalizado, altamente rendoso ao homem; tanto que alguns casam, matam a mulher e casam de novo, de novo recebendo nova bolada. Atualmente se calcula que anualmente cerca de sete mil mulheres são assassinadas por seus maridos no chamado "vítimas do dote". Mulher é mercadoria e as próprias estão acabando com isso, abortando quando sabem que vão ter filhas, deixando a Índia com uma população masculina em número bastante superior ao ponto de especialistas já opinarem que daqui a vinte anos, 10 milhões de meninas terão desaparecido. Com quem casarão os homens? O que será da mulher indiana que está perdendo tragicamente seu direito de ser uma pessoa?
A sociedade indiana é dividida em castas há mais de três mil anos. É ano pra burro! Lá, quem pode, pode; quem não pode, é intocável. Não que intocável lá seja o mesmo que aqui; pelo contrário, é a população das castas mais baixas, os que fazem os serviços mais humildes. O governo indiano não acha que isso seja segregação, racismo. É apenas a tradição do país, e, embora a discriminação por castas seja proibida, no dia-a-dia isso não vale. O governo, como todos los gobiernos del mundo, criou por lá uma espécie de bolsa-família para facilitar educação e empregos "aos menos favorecidos". Pode ser poético e exótico vê indianas belas carregando potes, pessoas banhando-se no rio Ganges, romanticamente se emocionar com a estória do
Taj Mahal, mas não é bonito saber que 25% da população vive abaixo da linha de pobreza, isso num país que tem mais de um bilhão de habitantes, que as mulheres são quase nada. Ponto final. Vírgula: Até que ponto uma tradição vale mais do que uma vida digna?
Os estudiosos das múltiplas culturas existentes pelo mundo dizem que não há uma cultura melhor do que a outra: apenas são diferentes em suas particularidades, pois não se pode dissociá-las da história do povo. Eles têm razão se considerarmos que não posso discriminar um negro por ser negro, um pobre por ser pobre, um HIV positivo por estar contaminado, um travesti, um homossexual, um umbandista, um muçulmano ou até mesmo um ateu confesso. Isso é discriminação pura e simples ignorância. Mas, não compreendo os fundamentalistas que morrem e matam em nome de Alá; não compreendo as índias yanomamis que matam suas filhas ao nascer; não compreendo os crimes de honra; não compreendo um país que protege uma vaca quando há milhares de pessoas morrendo de fome; não compreendo um governo que não vende, arrenda, seja lá o que for, terras produtivas e abandonadas a agricultores. Para essas facetas culturais sou obtusamente aculturada.
Tem muita coisa que não compreendo. E na minha santa ignorância não sei se quero compreender. Meu sogro, apesar de divorciada sou daquelas que só tenho ex-marido, todo o restante da família continua sendo, um dia me disse que não precisava saber de muita coisa. A ele bastava, como homem do campo que ainda é, saber se ia chover ou não. Lírico o que ele me dizia. Mas, a mim não me basta. Ele não sofre por questões sem respostas. E sem respostas eu ainda continuo perguntando. Eu não compreendo. E o que não compreendo me dói.

Comentários

maria olimpia disse…
Você demora a publicar mas quando publica é pra ser lido de um fôlego só. Muito bom o texto. Também li esse livro. Comprei um outro, uma capa linda, lombada dourada: India. Quis aprender mais, mas é mais triste do que aqui.
Fantasma disse…
Véia, quem não é lobotizada tem que agüentar, uai! Uma vez que se sabe, não tem jeito de dessaber. Faça sua parte como você consegue. E a recompensa virá. Pelo menos é o que espero. Não vou dizer "lindo o que vc escreveu", porque não há como encontrar beleza em nada do que vc disse, mas que bom que vc disse. Abraços
Anônimo disse…
Também não compreendo e me sinto
perplexa, revoltada com esse cruel tratamento dado às mulheres, não só
na Índia, África, mas também na China. Basta digitar no google
China meninas abandonadas, para vc ver imagens aterradoras.
http://www.picarelli.com.br/fotolegendas/fotolegenda012002h.htm
É de chorar.Os USA já adotaram mais de 30.000 meninas chinesas, mas seria essa a solução? Tirá-las de seu país, de suas mães ? A ONU anda "estudando" sanções para esses países...até lá,o infanticídio feminino continua.
Muito bom seu blog. Virei visitá-lo mais vezes.
Abs

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