sábado, dezembro 29

À sombra

Sempre diante de algo que não compreendo, penso em algum quadro de Salvador Dali. É o incompreensível belo, aquela coisa que se olha, olha na tentativa de entender. E não se entende. É bonito de se ver, sente-se que ali se desenha algo a ser entendido, mas a compreensão está muito além. É como algumas coisas da e na vida. Está bem ali, frente aos meus olhos, e olho, olho, dou voltas tal peru e não compreendo. Não que não compreenda totalmente; o que compreendo é ferro, é amargo. Melhor seria não compreender.
Na semana uma amiga me manda um bilhete e nele me avisa que é na sombra que melhor se produz. Ela poderia estar se referindo a uma produção composta de palavras ordenadas em laudas e laudas, embora desconfie que não, pois ela é dada a umas reflexões acertivas nas entrelinhas daquilo que escreve. No primeiro caso, ela errou. Há semanas uma estória ronda a minha cabeça e não consigo terminar. A idéia original tomou tantos rumos que parei e espero um insight. Tomou tantos rumos porque muito autobiográfica e a alma acha feio o que é espelho. No segundo caso, sem saber ela acertou, porque a produção se fez dentro de mim num torvelinho de sal, horas de silêncio, voltando páginas do livro nas mãos.
O porquê é antigo. Nossas dores maiores são as antigas, as que não criam limo, polidas incessantemente pela nossa falta de sabedoria em enterrá-las. Quando as pensamos enterradas, eis que de repente elas se agigantam, tais espectros saindo de covas rasas onde as pusemos fingindo resolvidas. Mesmo antigas, doem como vez primeira.
Na impossibilidade de resolvê-las - e hoje sei assim ser! - o bom senso me manda suportá-las, sublimá-las, na verdade. Encontrar aquele jeito de com elas conviver de modo que não fiquem atravancando meu caminho. Sublimar uma dor é criar outra, esvaziada apenas por meio de uma catarse feito imaginária cachoeira sobre terrenos áridos, pois se áridos, água não têm. Se já andaram em busca de espaço para o desenho da vida, ando à procura de água.
Tenho uma sede que não cala; uma fome que não cessa. Meus pés nem querem andar tantas estradas, mas a cabeça ainda pensa soltar-se, assim como patos selvagens puxados pelo pequeno príncipe. Nem chorar choro tanto, vulcão preso ao peito rebentando-se em músculos pesados, noites mal dormidas. Minhas mãos tentam e pelos dedos escorrem antigas vozes de recriminações. Pessoas há exímias fabricadoras de culpa sem que pecado algum tenha sido cometido. A conta nunca é saldada por que reside um ativo infinito de força que, embora sugado, multiplica-se.
Acerto ponteiros para solidões. Arrumo a casa e a mesa, cama posta. Livros serão incêndios; discos, fragmentos de plásticos. Cacos e restos. Nada mais.

2 comentários:

Fátima Mota disse...

São contas que a vida nos faz pagar, o bom é que entre altos preços ainda resta um lucro que nos faz seguir caminhando sempre. Não sei se você me entende. Como sempre você arrasou!

Anônimo disse...

A cabeça vai muito mais longe do que os pés. Pode ter certeza.

Belos escritos n'água. Sempre que estou com sede, passo por aqui.
Parabéns, Ednice.
Abraço.