sábado, maio 26

Panis et circenses

Velho, sobe as escadas com pés inchados de cansaço o segundo degrau depois do quinto. Arrasta-se ainda pelo corredor até a porta pintada de azul, extravagância da filha que queria um céu ao entrar. Dedos trêmulos mal conseguem colocar a chave. Ao abrir a porta, o assombro: toda a sala fora tomada por pombos que entraram pela janela.
Com cuidado fecha a porta atrás de si. Na cozinha, coloca as compras sobre a mesa. Abre o armário e de lá retira o saco há tempo guardado e com ele à mão, puxa a poltrona até o umbral da janela, senta-se e sobre si derrama todo o milho. Agora é esperar que os pombos ergam-no.

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O som da tv sai pela porta incomodando os outros que naquele corredor não ousam abrir as portas para reclamar. Dentro da sala, o som passa despercebido à mulher que de frente para a parede branca, vassoura à mão, bate freneticamente na teia que toma toda a parede agora já acinzentada pelos vários anos de umidade. Ela tem que limpar, arrancar aqueles fios que se entrelaçam ameaçando alcançar a porta do quarto.
Procura a aranha engenheira daquele emaranhado de fios, mas não encontra. Aborrecida, larga a vassoura, puxa uma cadeira e jogando mãos e pés ao mesmo tempo agarra-se à parede, subindo na teia em direção ao teto, onde se deixa ficar quente e quieta.
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No chão os livros espalhados refletem a monotonia de uma manhã de sábado passada na faxina semanal. O velho piso de tacos amarelados exaustivamente encerados apresenta pequenas partículas de pó deixadas pelas formigas e cupins que noite adentro fazem banquetes. Sentada no chão, um grande livro repousa nas mãos da mulher visto pelos grandes óculos de aros finos que escondem pequenos olhos.
Na gravura de um colorido surreal a figura mítica de um centauro parado sob um raio de sol que se infiltra pelas grandes árvores da floresta lhe observa. A cabeça erguida revela um selvagem criado nos montes atenienses. Seus olhos se prendem na figura e num súbito levantar, ergue as ancas e corre para a página ao encontro loucamente esperado.
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O copo na mesinha de cabeceira guarda ainda o líquido rosado do vinho bebido na noite anterior. O cheiro de cigarro impregna o quarto e imagina na boca seca a mesma sensação saariana pela falta de água, gosto de terra. Sabe-se acordada, mas não se atreve a abrir os olhos pelo medo da claridade diária que lhe invade, forçando-a a levantar-se e cumprir o dia. Melhor ficar em completa hibernação, dando somente os passos necessários para ir até a cozinha, abrir a geladeira, jogar água e gelo num copo, tomar e voltar.
Ao pegar o copo de alumínio sente-lhe a frieza ao som das pedras de gelo. A água desce causando-lhe de imediato um choque térmico nas têmporas. Ao deixar o copo sobre a pia, suas mãos apertam a cabeça, mas já era tarde. Com assombro vê seus pensamentos fugindo em direção a geladeira ainda aberta, ocupando formas vítreas, deixando-a nua de corpo e alma.
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A roupa sobre a cama lhe olha majestosa ansiosa pela festa que se anunciara desde a semana anterior. Todos os acessórios combinam entre si, nada destoante fará a noite não ser o que dela se espera. Daquilo, nada tinha sido já usado, tudo novo comprado no cartão que presenteara a si mesmo com um limite de gasto considerável. Até mesmo ao salão fora à tarde, retocando cabelo e barba caprichosamente, manicure e pedicure massageando-lhe mãos e pés.
Veste cada uma das peças antegozando o prazer dos amigos e da mulher ao vê-lo impecável na hora de receber o tão cobiçado prêmio. Sabe que mereceu, trabalhara muito para isso, a recompensa lhe parece natural caminho para novos e rentáveis negócios. Ao terminar de arrumar-se, sem sequer olhar-se no espelho, abre a gaveta da cômoda. A caneta de ouro brilha no estojo aveludado. Ao colocá-la no bolso externo do paletó, a caneta pula de sua mão de repente, derrubando-o sobre a cama sob o peso de várias palavras que se formam flourescentes sobre suas roupas, rosto, escrevendo magicamente todas as promessas não cumpridas a seus filhos.

quinta-feira, maio 24

METAmorfose

Passaram as bonecas. Passara o tempo das brincadeiras de roda, das estórias contadas à noite para dormir, aconchegando o sono, afugentando os medos disfarçados nos caçadores que salvam vovozinhas, a ilusão em príncipes que cavalgam cavalos em busca de princesas.
Passara o medo de ir à escola, sentindo-se uma a mais em meio àqueles rostos às vezes amigos, às vezes ameaçadores na borracha e no lápis que tomam de vez, no beliscão escondido da professora aplicado selvagemente no braço.
Chegara o tempo de descobrir nas pontas dos dedos a sensação de um prazer nunca falado, nem mesmo murmurado entre colegas, apenas adivinhado no barulho à noite quando acordada pensava que algum monstro assaltara os sonhos da mãe, pois a cama fazia aquele mesmo som quando nela pulava nas brincadeiras de pular e correr pela casa.
Chegara o cheiro de um colega na escola, menino pouco maior que ela mesma, de cabelos pretos bem cortados. E aquele arrepio a que não sabia explicar se de frio ou de medo. Não podia ser frio, pois não havia chuva; medo, tampouco porque fazia de tudo para roçar seu braço no de Paulinho – o primeiro de uma série que na adolescente vida quase se perdera.
Chegara o tempo de em uma igual experimentar o calafrio de um leve roçar, um olho que vagueia à procura sempre daquele proibido ser. Não sabia o nome, nem de qual sensação queria escapar. Sabia apenas que havia no escuro da alma um clarão quando a via passar, aspirando um cheiro de perigo quando lábios tímidos se laçavam.
Crescera. Agora já sabe de quantas encruzilhadas a vida se faz, preparando-lhe armadilhas nos lugares mais vulgares, nas sensações mais fugazes. A febre do crescer acrescentara-lhe a ânsia do querer, querer tudo que lhe negavam, o que julgava ter direito, num ritmo tão atroz que sentia medo, logo desprezado pelo medo de sentir medo.
Cresce. E a cada tempo de todos os jogos, simplesmente corre pelo campo. Pára em jogadas estratégias, dribla os pés que se jogam a sua frente na tentativa de impedi-la, cabecea, ambidestra, não escolhe para onde a bola jogar, desde que continue em movimento, dando-se vida, sangue a pulsar.
No início da idade adulta, dita por todos como a do juízo, começa a ver os passos, a sentir que a chuva não é tão temerosa, a falar menos, mesmo que ainda muito bravo, gritandos seus direitos e liberdades, esperando, aprendendo a esperar, entregando-se ao amor que acredita ser eterno.

domingo, maio 20

Comida caseira

Não dá para escrever por obrigação. Esse povo por aí que tem coluna em jornal, que tem que escrever um número X de laudas semanalmente, deve viver numa agonia danada ou tem um repertório inesgotável, tirando letras da cachola como mágico tira coelho da cartola! Pelas caridades!
Possivelmente aí resida a diferença entre o amador – amante de letras – e o profissional. Como amadora, se as coisas não estão bem, a minha tendência é escrever letras garrafais de sangue e dor. Se estão, chega assim um tanto de inspiração e pode sair uma estória razoável, geralmente de um otimismo piegas. Se as coisas não estão bem nem mal, mas naquele patamar pasmaceiro, a preguiça manda copiar um texto de alguém, fazer uma produção caprichada e teclar OK.
Não estou bem nem mal. Não estou com preguiça, embora dois textos pudessem ser colocados aqui (outra hora eles aparecerão, porque merecem ser lidos). Estou naquele limiar reflexivo que faz o sol ficar nublado e a chuva ficar quente.
Nenhum dos dois estados mata, tampouco me faz tomar um sorvete de tapioca ou comer sashimi que adoro. Nesse estado, uso computador por obrigação, tomo injeção para uma epicondilite no cotovelo direito – o que me deixa desmunhecando quando termino de digitar! – e a injeção me deixa o braço esquerdo mais dolorido do que o outro; armo a rede e tento ler um livro só por vez, mas é impossível, pois quero saber da estória do homem que entende a linguagem dos cavalos, quero continuar acompanhando o Gabo em seu "Viver para Contar", quero saber onde essa garota chamada Ayla vai parar,...
À noite eu não rondo a cidade. Janelas fechadas me sufocam no calor. Uma cidadela me ronda a noite inteira e me traz o som romântico do love theme of Titanic tocado em flautas por adolescentes escolares em homenagem às mães lá no pátio da escola; assombram-me os vários papéis nos quais devo colocar carimbos e assinar; despertam-me as providências a serem tomadas na manhã seguinte. O remédio – se o tomasse – não me aliviaria o sono, pois o esbranquiçado da luz permanece claro e forte. Ao amanhecer, quando o sono chega, já é hora do relógio. Então, levanto para viver.

O viver me leva para o outro lado da cidade e para o outro lado de mim. Observo crianças cuja brincadeira preferida é correr, jogar bola. Imagino-as daqui a uns anos sem saber o que a vida lhes reserva, que palavras ainda ecoarão em suas mentes, que formação estamos lhe dando e se isso vai lhes ser de alguma valia. Às vezes me sinto como Dom Quixote perseguindo moinhos de vento diante do imutável, mesmo que este seja muito mais produto da inércia de alguns que se acreditam em movimento adelante quando na verdade estão indo na direção contrária, cavando fossos para si mesmos.
O viver também me leva para dentro de mim e lá encontro depositário de lágrimas prestes a rolar; encontro uma paixão que em mim renasce e me leva aonde sonho ir, levantando-me vezes sem conta sem deixar que meus joelhos sangrem, pois mãos sempre me erguem. Por dentro rezo em silêncio em busca de paciência, embora uma colega me diga para pedir sabedoria, pois quem pede paciência está pedindo problema!
Neste estado reflexivo em que confundo chuva e sol, não escrevo nada que possa suscitar um ah!, não concluo um texto sobre paixão, um outro sobre mãe, restando-me bater teclas sem seguir o que Rubem Alves disse (e que uma amiga me lembrou dias atrás), sem aplicar-me inteiramente à citação, pois escritora não sou: "O escritor é um cozinheiro que a cada semana tem de inventar um prato novo. Cada semana que começa é uma angústia, representada pelo vazio de uma folha de papel em branco que o olha e diz: "Escreva aqui uma coisa nova que dê prazer".Todo texto prazeroso conta uma mentira. Ele esconde as dores da gestação e do parto. De vez em quanto alguém diz ao escritor "Como você escreve fácil". Alguém lhe confessa o seu prazer no seu texto. Mas o escritor sabe que essa facilidade só existe para quem lê. O fogo que lhe queimou ficou na cozinha. Mas para o escritor vale a pena ficar queimado pela alegria no rosto de quem come a comida que se fez".
Quisera eu poder proporcionar uma alegria desse tipo a quem ler este canto, pois se repararem bem o que tenho feito é devanear, combinar palavras para ver o que sai, descobrindo-me muito mais do que elas a mim.
Em todo caso, bon appétit!

terça-feira, maio 8

Entre Ser e o SeR

Todos os dias ao acordar, a angústia amenizada pelos dois lexotans tomados à noite volta com carga renovada assaltando-o de supetão. Parece uma mão empurrando-lhe peito adentro uma desesperança que no decorrer do dia quase não o deixa realizar as tarefas normais do trabalho, as conversas banais com os colegas.
Sabe-se um homem antigo. Não de idade. Antigo por dentro como se nele vivessem todas as dores do mundo, além de suas próprias. Herança possível de um tempo adolescente quando vivia entre monges naquele casarão antigo e úmido, onde o pai lhe enfiara, tentando encaminhá-lo para viver sonhos que não eram os dele. Não teve voz. E até hoje duvida se tem alguma!
A rotina entre preces e meditações fizera-lhe um jovem taciturno, não temeroso a Deus, mas verdadeiramente acovardado diante de uma figura barbuda, velha, sentada com um cajado à mão esquerda, julgando, julgando. (Muitos anos depois, ao ver em um livro o deus mitológico, viu que a figura correspondia exatamente à idéia que fazia de Deus!). Achava-se o maior e pior pecador do mundo, indigno de qualquer perdão, mesmo que não tivesse consciência por quais pecados era responsável (o que lhe parecia maior era a vontade enorme de sair dali, negar tudo que aprendia!).
Às vésperas de ordenar-se, numa visita ocasional à família, tomou diferente ônibus enveredando-se por outro caminho. O dinheiro levado no bolso deu-lhe uma pensão barata, sanduíche como a melhor comida durante uns dias. Nesse tempo, foi à cidade vizinha, escreveu para casa e pediu para o esquecerem, pois não queria aquela vida destinada pelo pai. A resposta foi um capanga batendo na porta do seu quarto, levando-o para casa. Foi todo o caminho calado da mesma forma que calado ouviu os gritos do pai e as chicotadas nas costas, lanhando-o todo. Sua mãe a um canto chorava.
Não voltou ao casarão. Empurraram-lhe um cavalo, uma perneira e um chicote de couro, soltando-o no pasto a tanger gado. Era apenas uma cabeça a mais no grande curral pertencente ao pai. Na verdade, era menos que uma rês. Era a vergonha da família. Calado, pensavam-no até mudo, deixou o tempo passar, maquinando um plano de liberdade, deixando que o rancor crescesse dentro de si. O temor de Deus tinha desaparecido. Agora pouco lhe importava se era pecador, se tinha pecado ou não. Que o mundo explodisse, mesmo que o levasse, não tinha a menor importância.
O contacto com a natureza, observando a vida dos animais e a precária situação dos moradores da fazenda aos poucos lhe afastou da órbita dos próprios problemas, despertando-lhe um humanismo que não sabia nele existir, concretizado nos pequenos auxílios prestados aos moradores, vítimas do autoritarismo do pai. Um tio ensinou-lhe o árduo trabalho, tirava-lhe de casa para ir à cidade ver gente, interessado em fazer-lhe namorar. Em algumas noites de sábado, ia com o tio aos bares, aos cabarés, embora o divertimento só o atingisse por fora. Por dentro, continuava o gosto amargo pela vida! Esse gosto ficou mais acentuado quando o tio começou a reclamar das atitudes que o irmão tomava, falando abertamente que seu pai não devia isso, não devia aquilo. O tio encontrara nele o depositário ideal para o seu próprio veneno!
Aos poucos percebeu quais eram as intenções do tio. Usá-lo descaradamente contra o pai, pois sabia de suas antigas mágoas, do silêncio que se estabelecera entre ambos desde aquele dia longe no tempo. A memória não apagara o fato, o rancor que ainda se abrigava no seu coração, mas não se deixaria usar, não tomaria para si as dores de ninguém, tampouco faria mal a alguém devido à raiva. No dia que fizesse algo, seria por ele. Nem mesmo pela omissão da mãe tomaria uma atitude, pois nela vivia a resignação sob o jugo de um marido prepotente, autoritário, um velho que não admitia nada além de suas próprias ordens.
Do pouco dinheiro que o pai lhe dava, e a mãe às escondidas, juntou o suficiente para escapar dali e tentar outra cidade. Agora o avião seria suas asas. Não era ignorante, para alguma coisa aquelas aulas no mosteiro serviriam, ainda mais que em muitos sábados em vez de ir aos bares, pagava aulas a um professor, fazendo ao final de cada ano exames supletivos que o governo oferecia na cidade. Ninguém sabia, mas ele estudara. Agora era sua vez de voar!
Num sábado foi sozinho à feira, pegou o ônibus para a capital e da rodoviária seguiu direto para o aeroporto. Pensava comprar a passagem lá mesmo. Sabendo que não vendiam, voltou à cidade, dormiu numa pensão e cedinho foi a uma agência onde comprou uma passagem para o primeiro vôo da tarde. Não interessava para onde ia nem o medo que sentia em viajar de avião, que só conhecia lá em cima quando passava assustando o gado. Viajou. Não escreveu, não deu notícia. Há vinte anos não sabe nada de casa.

Todos os dias a água fria do chuveiro lhe dói na carne, despertando-lhe para o barulho das ruas da grande cidade. Não mais tange gado, tem seus próprios empregados, dá suas próprias ordens e às vezes amaldiçoa o pai, pois percebe em seu tom de voz o mesmo autoritarismo paterno usado para os vaqueiros. Ameniza, mas por dentro sabe que não conseguiu tirar tudo de dentro de si. Soube lutar e para todos é um vencedor. Para si, é apenas um corpo envernizado de doutor, uma criança em busca do pai presente nas cicatrizes que lhe desenham as costas, um adolescente à procura de uma mãe que não teve coragem para defendê-lo. Sabe-se numa procura inútil. Sabe que todas as noites serão regadas a remédio, todos os dias serão encobertos pela máscara que há tempos usa.