segunda-feira, abril 30

Por falta de aSSunTo



Quem se atreve a ler o que aqui escrevo muitas vezes se admira e me diz que tenho algum dom. Alguns acham que a inspiração mora ao lado e basta um estalar de dedos e SHAZAM!!!!!!. Quem dera! Essas letras contêm muito mais expiração do que inspiração.
Desde o início da semana que fiquei pensando sobre o que escreveria. Qual estória contaria hoje. Na cabeça comecei várias e no meio dos ônibus atravessando a cidade elas se perderam, misturaram-se aos diversos papéis que pelas minhas mãos passaram - até mesmo a leitura de um livro me atrasou, ainda que tenha ficado tentada a escrever sobre ele!

Uma das estórias poderia ter sido sobre alguns personagens de revistas em quadrinhos, pois eu e uma amiga conversávamos sobre a turma do Zé Colméia e ela me contava que tinha pena do Catatau, pois ele sempre pagava todos os micos, sendo apontando como responsável pelas espertezas do chefe em sua ânsia de levar vantagem em tudo. E olha que o Zé Colméia não foi uma criação baseada no brasileiro, mesmo porque isso da vantagem hoje é um sintoma egocêntrico sem etnia e há muito extrapolou o selvagem mundo capitalista (Paz e Amor, bicho!). E minha amiga ainda me falou da trabalheira que o Homem-Aranha têm no novo filme ao enfrentar três adversários. Três! Já pensou? (Coitado, o que ele apanhou no segundo filme vai parecer fichinha!).
Outra estória, essa de uma delicadeza inefável (adoro essa palavra graças ao poema do Manuel Bandeira!), poderia ter sido a de Paulo que no sábado de manhã à mesa do café em um self service, sem que nunca tivéssemos nos encontrado, soltou o verbo e parte da alma, contando-me trechos de sua vida interiorana e seus motivos de vir morar na capital. Enquanto dividíamos um café, sonolentos ambos, nesses lugares onde mal as pessoas se olham, brotava a partir de um comentário banal uma lágrima ao lembrar saudoso da mãe que partira e que nele deixara tantas marcas; sua trajetória rumo a uma profissionalização, sua volta aos estudos depois de tanto tempo e, sobretudo, seu lado meigo, preocupado com os amigos que transitam entre erros e acertos nos relacionamentos. Foi uma estória que ainda aparecerá aqui, uma dádiva para mim que às vezes fico tão descrente das pessoas e ali estava, aquele homem, trazendo/levando dentro de si uma fortaleza, uma coragem para os desafios, uma garra pela vida que às vezes pensa não ter!
Talvez eu devesse ter concluído um conto que fala de mandrágoras, portas, impulsos, mas me perdi tentando me lembrar dos detalhes do livro original que anda lá pra bandas do sul brasileiro (atrevidamente o livro faz o que eu deveria estar fazendo: visitando outras terras, outras gentes, aproveitando férias!).
No final ficou tudo inconcluso. Foi uma semana atípica, entremeada de risos, choros, emoções, conhecidos e desconhecidos me olhando emocionados. Foi a semana em que comecei a organizar as gavetas e birôs, espalhar e juntar papéis, abrindo espaço para que outros ocupem lugares e funções. Foi a semana em que não tive tempo para poesia, para lirismo de papel, porque a vida se apresentou bela e lírica em sua plenitude, e minha ânsia de aprisionar os momentos nos dedos, nas retinas dos meus olhos – para depois escrever calmamente sobre eles - foi em vão, porque tudo ficou gravado na minha mente e no meu coração.
Foi a semana que maior o amor se fez. A semana em que descobri mais uma vez que não existem acasos, cimentando a certeza de
"que tudo que existe, existe com uma precisão absoluta. O que for do tamanho de uma cabeça de alfinete não transborda nem uma fração de milímetro além do tamanho de uma cabeça de alfinete. Tudo o que existe é de uma grande exatidão. Pena que a maior parte do que existe com essa exatidão nos é tecnicamente invisível. Apesar da verdade ser exata e clara em si própria, quando chega até nós se torna vaga pois é tecnicamente invisível. O bom é que a verdade chega a nós como um sentido secreto das coisas. Nós terminamos adivinhando, confusos, a perfeição." (Clarice Lispector)
Dias melhores virão, porque a sensibilidade está em Paulo; o senso de justiça está na minha amiga que defende os fracos; o amor pelo que faz está naquela que me abraça chorando; a esperança está na amiga que disciplinarmente toma seu remédio para ficar boa; a alegria está na colega que terminou um curso e foi parabenizada pelo trabalho apresentado; a bondade está naquela pessoa que todos os dias faz suas preces. A vida está em todos nós. Nos conhecidos e nos desconhecidos com quem cruzamos todos os dias! Está em mim que mesmo a uma hora dessas, cansada, encontrei tempo para escrever inventando o assunto que durante toda a semana andou fugindo de mim!

sábado, abril 21

Vida de Algodão

Entardece. Pelas frestas das pequenas ripas que formam a barricada do alpendre, o sol escorre sua luz, escondendo-se por entre nuvens. Sentada no chão batido, as costas cansadas apoiadas à parede, a mulher olha o espetáculo e não lhe percebe a magia. Seus dedos maquinalmente tecem os fios de algodão que desde a manhã transpassam por seus dedos. É o seu dia-a-dia desde que a colheita se fizera. O sol não lhe causa admiração, mas uma dor ofuscante nos olhos, agora já cansados de tudo quanto já vira e vivera. Olhar ao redor sem ver tem sido o seu hábito nesses últimos meses. Como máquina acorda, prepara e toma um ralo café, colhe o algodão, percorre o caminho com passos duros e firmes – como as pedras que pisa – a comida é preparada e engolida pelo costume de comer, insípido prato, insípida vida.
Tece. O algodão se desmembra nas mãos da mulher, tomando outra forma, moldado com maestria adquirida após tantos anos, tantos fios. Vez em quando os olhos se erguem e vagam pelo terreiro, vendo o que ali não está. Por detrás de qual árvore se esconde aquela jovem de outrora, cujo sonho era correr mundo, ver o mar – inimagináveis de tão grandiosos e misteriosos que lhe pareciam – ser alguém diferente das pessoas do lugar? Em que pedras se esconderam os risos, as promessas feitas a si mesma, a vontade de voar feito ave de arribaçã, não voltar? Não mais se pergunta. Apenas deixa o pensamento vagar, dono de si mesmo indo a qualquer parte sem que a sua dona saia do lugar. Aquele terreiro, aquele chão, um sol que não descansa, assim é o seu lugar.
Tece e destece. A cada fio que pelos dedos se forma, vê a vida se desenrolando como imagens coloridas de filmes nunca vistos. O sol faz o seu percurso indiferente. Indiferente, a mulher não sente o amenizar do calor dando vez a um frio tão destoante da quentura de então. Seu corpo queima, sua alma se enregela de tanta amargura pelo que poderia ter sido e não foi. E não mais será. Acende a velha lamparina sobre o fogão de barro e a luz reflete um pequeno ponto em sua pupila negra. É o único brilho percebido naquele lugar.
Anoitece. A pequena claridade é mais do que suficiente para ela que conhece todos os caminhos daqueles cômodos agora vazios. O ritual do café se repete, mas em seu mundo tal palavra não existe. Prepara uma massa de fubá, usa da pouca água que dispõe, uma pitada de sal, acomoda na velha tampa de lata, cobre-a com um pano e na boca da chaleira deixa-a para cozinhar. Sua comida será minguada: café e cuscuz. A noite lhe aliviará as dores das costas, livrará os pés das pedras do caminho que todo dia percorre. A noite lhe trará em sonho uma moça com um vestido todo branco, um broche em formato de coração no lado esquerdo do peito, sapatos igualmente brancos que lhe apertam os pés a caminho da igreja, um moço em roupa adomingada na praça e que a pretexto da missa lhe espera. Doces palavras de promessas.
Tecera. E a tais palavras e ao dono se dera, dando-se a um destino que sonhava encantado, bem maior que aquelas casas, ruas empoeiradas, maior mesmo que a sua família, os pais resignados à vida, o irmão embrutecido pela bebida, a irmã tomada por uma renca de filhos, largada pelo marido em busca de um destino melhor em outras terras.
Destecera. As promessas formaram os vários fios de sua vida até perceber que o novelo ia se desfazendo, mas a vida não mudava. O futuro prometido permanecia em palavras, o moço já não a esperava todos os domingos e sumira de vez ao saber que daí a pouco aquele vestido branco já não poderia ser usado, pois ela abrigava em si outras formas, outra vida.
A vida tecera por ela a sua própria teia e nela abrigava agora um novo ser. A linha mais áspera tinha que ser conduzida através do tecido mais cruel e solitário. Envergonhada, a cabeça sob a vida, escolhia a agulha mais fina e tecia e tecia vários pontos na tentativa de desfazer o nó em que se transformara a costura daqueles sonhos. Os olhos sempre duros para esconder a angústia não lhe deixavam perceber que pontos dava e às cegas tecia e tecia até o esgotamento.
Destecera. Em uma só noite, de um gole só, sozinha na beira do açude, trincando os dentes e os dedos agarrando-se às raízes por perto, vira a vida dela se desfazer numa poça vermelha, arrancando-lhe a alma, condenando-a aos infernos para sempre. Na mancha que ficara na terra, ficaram sua vergonha, seus sonhos, sua danação.
E no tear da vida, o irmão encontrara a morte no fio amolado da faca de um companheiro de farra, a irmã sumira com um homem que lhe ocupara com mais um filho, os pais sucumbiram um após outro às agruras da vida, da miséria, da resignação. A ela restara a casa vazia, uma plantação para cuidar, minguados animais, algum dinheiro que não a deixa de inanição morrer. Tecera e destecera. Tece e destece. O algodão amanhã passará por entre os dedos como a vida lhe passara por entre sonhos, promessas, o amor que nunca viu, o sol que lhe queima e não mais é percebido.
PS: Atendendo a pedido de alguns amigos que já conheciam este conto, coloco-o aqui.

sexta-feira, abril 13

Ave, Clarice!

"O que me descontrai, por incrível que pareça, é pintar. Sem ser pintora de forma alguma, e sem aprender nenhuma técnica. Pinto tão mal que dá gosto e não mostro meus, entre aspas, quadros, a ninguém. É relaxante e ao mesmo tempo excitante mexer com cores e formas sem compromisso com coisa alguma. É a coisa mais pura que faço (...) Acho que o processo criador de um pintor e do escritor são da mesma fonte. O texto deve se exprimir através de imagens e as imagens são feitas de luz, cores, figuras, perspectivas, volumes, sensações." CLARICE LISPECTOR.


Abaixo, quadro denominado LUTA SANGRENTA PELA PAZ, pintado pela escritora em 1975.







Fui apresentada ao mundo de Clarice Lispector por uma professora ainda quando estava na faculdade. E nunca me esqueci do conto "Tentação", cujo primeiro parágrafo diz: "Ela estava com soluço. E como se não bastasse a claridade das duas horas, ela era ruiva". O conto narra a solidão de uma garota sentada desolada num degrau e vê em um cachorro que se aproxima a "sua outra metade". Comprometidos ambos, separam-se e ela "debruçada sobre a bolsa e os joelhos" o vê partir. Ali estava toda a solidão, a angústia de uma separação inevitável! E o que me impressionou no conto me maravilha até hoje na escritora: a capacidade de clara e concisamente traduzir a alma humana, transformar em puro lirismo fatos corriqueiros muitas vezes impercebíveis!
Somente depois é que o dinheiro deu para comprar alguns de seus livros que ainda estão comigo. Um deles, "Um Sopro de Vida", exaustivamente grifado, anotado, indignada às vezes; na maioria, maravilhada.
Eis que agora, uma amiga virtual mais do que real, proporciona-me novo encontro com Clarice e lá vou eu feito louca apaixonando-me novamente, eu que jurara don't fall in love again!

Clarice, ao lado de Cecília Meireles, é uma das escritoras que me pega naquilo que tenho de mais íntimo e freudiano. As duas escreveram com alma, consideraram o ato de escrever uma pulsão incontrolável, embora a própria Clarice tenha afirmado que só escrevia quando queria, pois se considerava uma amadora e fazia "questão de continuar a ser, (pois) profissional é aquele que tem uma obrigação consigo mesmo de escrever, ou então em relação ao outro. Agora, eu faço questão de não ser profissional, para manter minha liberdade." Possivelmente, as duas faziam do não escrever um escrever tão pleno, desnudando-se tanto, conhecedoras de todas as aflições, solidões, certezas e incertezas da vida, daquele cerne que a todos nós é imutável, mesmo que vistamos máscaras e roupagens diferentes, sabiam que "por mais que se ande, é certo:/-não se encontra o bem perfeito./Vai nascendo só deserto/pelo peito./E entre o desejado e o aceito/dorme um horizonte encoberto." (Cecília Meireles).
No livro enviado pela paulimineibaiana Lucila (que me perdoe o neologismo) estão as crônicas publicadas no Jornal do Brasil. Algumas bem conhecidas, como a que fala da colega que "possuía o que qualquer criança gostaria de ter: um pai dono de livraria" e todo o tormento sofrido para ler emprestado o livro As reinações de Narizinho; a que conta sua paixão em roubar rosas; o que era sair de madrugada para tomar banho de mar em Olinda, como também a tristeza que mascarou o carnaval, quando toda fantasiada teve que ir à farmácia comprar remédio para a mãe doente, perdendo dentro de si o sabor da festa. É terno – embora quase hilário - vê-la contar seu desencanto na eternidade perdida num chiclete!
Penetrar no universo lispecteano para alguns é adentrar num mundo repleto de linguagem inacessível, colhendo seres e objetos que parecem irreais. Estes não conseguem ir além, porque a consideram não uma escritora, mas uma invencionista, uma hábil jogadora de palavras. E aqui cabe refletir que ficcionista Clarice pode ter sido, se seus personagens somos todos nós? Se nosso âmago, se dele quisermos saber, está todo nas linhas dos seus livros?
Para outros, no entanto, é mergulhar em si mesmo, ir além daquilo que os sentidos percebem, rompendo o convencional, acreditando, como ela disse, que "se houvesse um céu, uma pessoa que se sacrificou por covardia ia ser punida e iria para um inferno qualquer. Se é que uma vida morna não é ser punida por essa mesma mornidão. Pegue para você o que lhe pertence, e o que lhe pertence é tudo o que sua vida exige. Parece uma vida amoral. Mas o que é verdadeiramente imoral é ter desistido de si mesma."


Para estes, não há solução. E vezes sem conta, anos após anos, leituras pós leituras, sucumbimos ao fascínio das palavras que não envelhecem, pois, tal qual a vida, renovam-se todos os dias; vivemos a metáfora da esperança, não o inseto, mas "a clássica, que tantas vezes verifica-se ser ilusória, embora mesmo assim nos sustente sempre."



PS.: Essa é minha reverência especial a Lucila Casseb e aos ERRANTES que aportaram e vão aportar no porto da Clarice.

domingo, abril 1

Filosofia a granel

Essa semana conversei com um colega sobre o livro "A Caverna", escrito por José Saramago, pois nele há um lugar chamado de Centro, onde as pessoas vivem isoladas do mundo, tendo ao seu dispor alguns entretenimentos, sendo, no entanto, monitoradas por câmeras.
Também comentamos o enredo do filme A Vila, dirigido por Night Shyamalan em 2004 e que mostra uma comunidade totalmente isolada do resto da civilização, vivendo no ano de 1897. Em determinado ponto, os mais jovens questionam por que não podem atravessar o bosque e ver o que tem além. Em meio a ataques de estranhas criaturas (ao final, apenas um êngodo ameaçador para que ninguém se atreva a sair), cabe a uma jovem cega a tarefa de ir em busca de ajuda naquilo que seria uma cidade além dos limites da floresta. E eis que a garota encontra uma rodovia no Estado da Pensilvânia totalmente urbanizada, civilizada, numa demonstração que o povo da vila parara no tempo com medo do progresso, do conhecimento. E, cega, nada pode ver do progresso que está a sua frente
!
Como uma coisa leva a outra, falamos sobre O Mito da Caverna, ou mais precisamente a alegoria criada por Platão para quem a humanidade vive condenada a ver sombras considerando-as verdadeiras. (Isso escrito há quase 2500 atrás!).
No livro VII de "A República", Platão imagina um grupo de pessoas vivendo em uma caverna, acorrentadas e de costas para a entrada, vendo apenas fugazes sombras que se movimentam, consideradas deuses pelos que de lá de dentro só isso percebem. Se uma daquelas pessoas saísse, de início seria ofuscada pelo sol, mas aos poucos ficaria fascinada pela exuberância de um novo conhecimento, saindo das sombras para o real.
Não sou expert em Platão, mas pelo que depreendi, a idéia central é que o conhecimento real é tão forte, comparado ao sol que ofusca, que pode cegar o indivíduo acostumado a viver na escuridão, embora o espetáculo depois do impacto inicial seja deslumbrante.
Nisso tudo, ainda me lembro de uma amiga que me contou uma estória acontecida quando ela tinha 12 anos, há 14 anos atrás. Ao se confessar, ela falou ao padre que não tinha o que dizer porque não entendia a idéia de pecado. E o padre lhe disse que o pecado era o conhecimento. Ao que ela perguntou como podia se o conhecimento vinha de Deus. O padre respondeu-lhe que o conhecimento vinha do homem que o adquiria querendo ser Deus e nisso residia o pecado!
Infelizmente, para alguns o conhecimento ainda é algo perigoso. Arriscar-se a saber é na concepção de alguns um caminho que leva à perdição. Para que saber se tudo é feito conforme a vontade de Deus? Mesmo que seja a vontade de Deus, que haja um destino traçado, imutável apesar do que façamos na vida, não nos cabe viver em cavernas, cegos guiando cegos. Riscos há sempre. Pensar que a vida é fácil é iludir-se num romantismo piegas que não leva a nada. Melhor é lembrar-se de Guimarães Rosa e de sua advertência de que "viver é muito perigoso", é cantar Raul Seixas, pois temos "dois pés para cruzar a ponte".
Então, "tente/ levante sua mão sedenta e recomece a andar/não pense que a cabeça agüenta se você parar/há uma voz que canta, uma voz que dança/uma voz que gira/bailando no ar."