sábado, novembro 21

I dreamed a dream

Hoy yo he tenido un sueño que yo era joven y non tenía miedo. Al igual que todos los sueños no era verdad. Hoy las cosas han cambiado. Hay dolor, las lágrimas y la nostalgia. Lo que he dicho no es el mismo. Tu presencia hoy es una nube que parte y no me llega.

There was a time when men were kind

When their voices were soft

And their words inviting.

There was a time when love was blind

And the world was a song

And the song was exciting.

There was a time ... then it all went wrong

I dreamed a dream in time gone by

When hopes were high and life worth living,

I dreamed that love would never die

I dreamed that God would be forgiving.

That I was young and unafraid,

When dreams were made and used and wasted.

There was no ransom to be payed,

No song unsung, no wine untasted.

But the tigers come at night,

With their voices soft as thunder,

As they tear your hope apart

As they turn your dreams to shame

He slept a summer by my side.

He filled my days with endless wonder,

He took my childhood in his stride,

But he was gone when autumn came.

And still I dreamed he'd come to me

And we would live the years together,

But there are dreams that cannot be

And there are storms we cannot weather.

I had a dream my life would be

So different from this hell I'm living

So different now from what it seemed

Now life has killed the dreamI dreamed.

There was a time when men were kind

When their voices were soft

And their words inviting.

There was a time when love was blind

And the world was a song

And the song was exciting.

There was a time ... then it all went wrong

I dreamed a dream in time gone by

When hopes were high and life worth living,

I dreamed that love would never die

I dreamed that God would be forgiving.

That I was young and unafraid,

When dreams were made and used and wasted.

There was no ransom to be payed,

No song unsung, no wine untasted.

But the tigers come at night,

With their voices soft as thunder,

As they tear your hope apart

As they turn your dreams to shame

He slept a summer by my side.

He filled my days with endless wonder,

He took my childhood in his stride,

But he was gone when autumn came.

And still I dreamed he'd come to me

And we would live the years together,

But there are dreams that cannot be

And there are storms we cannot weather.

I had a dream my life would be

So different from this hell I'm living

So different now from what it seemed

Now life has killed the dreamI dreamed.

sábado, outubro 24

For me to You

Uma amiga que demoro a ver e no meu coração mora. Uma moça magrinha que não engorda porque pensa que a vida vai lhe empurrar do trem se ela aumentar um grama, se ela der um passo maior do que suas pernas.
Ela é jovem e tem aquela ilusão própria dos jovens de que tudo é para sempre, que ela já viveu tudo que tinha a viver e mais nada. Ela é inteligente, professora competente, mas nisso ela não sabe é de nada. Ela não sabe, por exemplo, que a vida é um moinho, mas a velocidade da roda que faz a água girar depende muito de nós, da nossa vontade, do nosso querer. Ela precisa aprender que de teimoso também se vive.
Quando se vive por teimosia, é possível engolir um leão por dia, atravessar o chão pisando em brasas. É claro que se chora, que se sofre. Ninguém é completamente imune às coisas assim tão duras, tão quentes. E daí? Será que não podemos levantar a cabeça e olhar para àquele leão e desafiá-lo? Venha, venha me pegar, você pensa que sou fraca? Sou não, bicho, o que você tá vendo é só a casca, o couro é duro pra danado!
Minha amiga se pensa feita de açúcar. Ela ainda não parou para pensar que o vivido só poderia ser suportado por uma pessoa de aço. O açúcar já a teria feito sumir há tempos; o aço, pelo contrário, ficou forjado a cada dor, a cada decepção, impelindo-a à vida. O pensamento dela às vezes é tão troncho que a faz rodopiar, cegando-a para o que está bem ali na sua frente. Ela cansa de ficar parada no mesmo lugar olhando os próprios pés, querendo que eles tenham vida e levem-na. Se ela se permitir dar uns passos – como tem feito – os pés vão criar o hábito de andar. Aí, pernas pra que te quero!
Ela tem um nome que não posso dizer em vão. Deus a fez assim baixinha, magrinha, quieta no seu canto e muitos não sabem que o Deus que a habita é maior do que todos, porque é aquele Deus que quietinho vai operando milagres dentro dela. Às vezes, ela nem sente e acha o mundo paradinho, paradinho. Ela ainda nem percebeu que o terremoto passou e agora lhe resta catar as coisas, reconstruir a casa e nela habitar.
Não importa, minha amiga, com quem ou onde você estará. Basta que você esteja com você. E aquele camarada lá de cima lhe fará ver as cores do mundo, que a vida é muito mais do que os seus pés parados, a sua visão insegura da vida. A vida, querida, é para ser vivida.
Tome a vida em suas mãos e siga. Tá aí bem dentro de você o necessário para seguir. Abra as mãos e se solte, acredite em você. Tente.

quarta-feira, julho 29

Fermento

Não parecia, mas era. Era bruxa. Não das antigas com vassoura e balde e corvos sobre os ombros. Das modernas, aliás bem modernas. Tinha uma namorada. É verdade que a namorada não valia nada, só queria o bem estar proporcionado pelo dinheiro, mas tava ali toda noite lhe dando uma costela quente. Nem sempre o algo mais.
Tinha 60 anos, aparência de 50 depois de algumas correções estéticas, aposentada por órgão federal depois de muito trabalho e algumas bruxarias. Viagem anual à Europa, banho de civilização e guarda-roupa renovado nas calles espanholas e piazzas italianas. Quando necessário, usava alguns truques sem que os outros percebessem. Era uma fera na arte da dissimulação.
A namorada era o alvo preferido. Freqüentava o mesmo bar há anos, embora de restaurante tivesse mais opções, porque era adepta da boa mesa. E era no bar onde as brigas sempre começavam. Bastava um olhar atravessado, um sorriso mais gentil para que os demônios lhe cutucassem disparando suspeitas em volta da pobre moça que nada fizera – nem sempre, é verdade!
Ciumenta, todo o conforto que conferia a Alzira – esse o nome da infeliz (embora não muito) - era cobrado em atenções eternas, mínimas e possessivas. Era o telefonema que não dava quando chegava na academia, quando saía – a moça fazia academia religiosamente todos os dias, paga, claro, pela bruxa; o chá que não deixara já feito na garrafa térmica quando saíra para a faculdade – paga pela bruxa; era o decote da blusa um pouco mais embaixo nas costas, um tanto da barriga saradíssima aparecendo sob a blusa, mostrando o piercing do umbigo – pago pela tal. Era um rol de atenções que deixava Alzira completamente antenada. Suas mentiras tinham que ser cuidadosamente planejadas.
E havia várias. Morrer de estudar era uma delas, a que tinha mais valor. Nessa, mal freqüentava às aulas, assistia apenas o essencial para não perder nenhuma disciplina, nem tanto pelo conhecimento não aprendido, mas porque a bruxa saberia e daria um belo sermão, do qual ela já andava cheia. Outra bem satisfatória era a da colega que passava por alguma dificuldade e precisava dos seus cuidados – o altruísmo sempre lhe dava pontos! – o que lhe permitia algumas escapadas, mesmo que à la cinderela estivesse em casa antes de meia-noite.
No final não tinha do que reclamar. Ficaria atônita se soubesse que a bruxa dissimulava a aceitação das mentiras. Sabia de todas as andanças de Alzira, mas ainda não chegara a hora. Chegaria, ah! chegaria, ela faria acontecer quando estivesse pronta. Quando todos os ingredientes estivessem misturados, os astros posicionados corretamente. Não tinha pressa.
Quando conhecera Alzira achara que enfim a felicidade batera à porta e entrara. Há 5 anos estão juntas, trinta e cinco anos de diferença entre elas, embora isso não fora problema no início, nem mesmo agora. Apesar da idade, sentia-se jovem, era saudável, tinha fôlego ainda para muita empolgação. Não era à toa que gastava uma verba considerável com cosméticos, alimentos orgânicos, hidropônicos, reposição hormonal e o escambau.
Enganara-se. O problema não era a diferença de idade, mas o caráter de Alzira. No início desculpara, achara que era deslumbramento de menina de periferia. Depois, não. Era mau caráter mesmo e tinha que encarar. Encarava, mas de ladinho, dando uma face, escondendo a outra. Não era bruxa por nada.
Alzira não suspeitava que a enganada era ela. Achava-se o máximo nas mentiras inventadas, atuações de verdadeira atriz. A dupla se completava, rancor de ambos os lados inundando a alma tal rio na vazão do açude. Um dia arrebentaria, ambas sabiam, mas cada uma a sua maneira confiava na própria vitória, vantajosa vitória arrasando a outra sem muito alarde, na surdina onde todo ódio fermenta.
Um domingo após o café, Alzira começou a passar mal. Dores terríveis acometiam-na no abdômen como se algo se partisse dentro de si. A dor não lhe era estranha, vez por outra vinha, principalmente se a comida era apimentada e tomava-lhe o fôlego, deixando-a a ponto de desmaiar. Sozinha, pois a bruxa saíra para a caminhada e ainda não voltara, foi penosamente à cozinha e tomou uma dose de um poderoso analgésico. De volta à sala, arriou no sofá esperando que o remédio fizesse efeito, adiando a necessidade de chamar por alguém que pudesse levá-la ao hospital.
Mas nada. A dor não diminuía e a bruxa não chegava. As chamadas para o celular só caíam na caixa postal. Lívida, o suor inundando-lhe o corpo, resolveu ligar para a emergência. Não entendia por que a bruxa não atendia tampouco por que ainda não voltara. Será que acontecera algo? Não dava tempo de pensar de tanto que era a dor. A ambulância chegou e foi transportada para o hospital, o enfemeiro de imediato verificando o quanto a pressão estava alta.
Entre a casa e o hospital, Alzira desmaiou. Assim, não viu que sobre a maca o corpo da bruxa encolhia-se todo machucado pelo assalto sofrido durante a caminhada. Um sujeito de capuz lhe assaltara no parque e ao ver que não estava com nada de valor, além de celular, batera-lhe, roubara a chave de casa encontrada no bolso do moleton. A bruxa por entre as dores, viu o camarada correr com a chave na mão e só pensou o que ele faria com Alzira. Mal sabia ela que Alzira tomara do analgésico cuidadosamente preparado para aumentar-lhe a pressão quando sentisse dor.
Chegara a hora. A bruxa não podia usufruir da vitória. Alzira sob os cuidados médicos, via sua vida subindo e descendo no ar, sem saber que o cara fizera o ataque encomendado sem deixar marcas de premeditação, arrombando-lhe agora a casa e roubando-lhe os dólares cuidadosamente escondidos.

domingo, julho 19

No interior do interior

Macabéia é um dos personagens mais singulares da Literatura Brasileira. A moça que vem do interior para a cidade grande na tentativa de realizar grandes sonhos. Grandes sonhos não significam a mesma coisa para todo mundo. Os de Macabéia são basicamente encontrar o grande amor e ser feliz para sempre, mesmo que essa felicidade seja com um cara simplório, que fala difícil sobre parafuso e sonha ser deputado.
O sonho de Macabéia acaba abruptamente sob as rodas de um carro, justo quando ela saía da casa de uma cartomante que lhe predissera um futuro brilhante. Não lembro detalhes do livro, não o tenho aqui, mas em linhas gerais a narrativa se concentra em uma moça simples com uma vida monótona, que ouve rádio à noite depois de um dia repetitivo de tarefas em um escritório.
Todos nós conhecemos alguma Macabéia, aquela pessoa que sai do interior, mas não consegue tirar o interior de dentro de si. O desafio da cidade grande não é suficiente para lhe encorajar a vencer limites, buscando um autoconhecimento. Pelo contrário, tudo lhe amedronta, parece-lhe estranho. A duras penas encontra um trabalho limitado, que lhe dá apenas o suficiente para não morrer de fome. Aprende aquela determinada tarefa, não toma iniciativa no trabalho, mas sabe seguir orientações à risca. Nos finais de semana, mal sai, no máximo uma praia depois de uma certa resistência inicial, que água salgada é ruim de engolir.
As oportunidades vêm e não são percebidas. O medo do novo paralisa a vida. Se a vida parece triste, parada, não se reclama; melhor isso, que nada. Geralmente, há duas vidas: a vivida e a sonhada, esta muito mais colorida e atraente que a real, embora proibida porque parece imprópria aos olhos de Deus. A fé em um Deus onipresente não permiti voos, tudo é visto sob o olho do castigo eterno. Felicidade não é coisa fácil, é um bem que não se alcança, não através de prazeres, coisas mundanas.
O casamento está quase sempre no final de um arco-íris. Não casar é atestar uma incapacidade contrária à mulher, destino natural de quem foi abençoada. A mulher infértil é tal qual uma árvore ressequida, nem mesmo tem sombra. Conviver com isso é muito mais difícil que viver um mau casamento. E algumas casam mal, vivem mal até que a morte os separe.
Sempre o mais difícil é tirar o argueiro do próprio olho. No mundo moderno, onde não há espaço para a ociosidade, o trabalho ocupa tanto tempo da nossa vida, acostumamo-nos a tirar o sustento literalmente do suor do próprio rosto, que nos é difícil entender as que fazem opção por um emprego sem expectativa de crescimento, quem enterra a cabeça no chão tal avestruz, quem conduz a fé para esperar que tudo caia do céu sem a necessidade de mover-se.
Não sei se herança do feminismo ou se conseqüência de prover a mim mesma, a vida de quem está parada me parece um desrespeito à própria vida. Independente de crenças religiosas – se não lembramos as passadas nem antevemos a futura – há uma vida por vez e esta é pra ser vivida. Os limites na maioria das vezes são impostos por nós mesmos, somos nós que nos deixamos dominar pelo medo. E há muitos medos hoje. Eu, particularmente, tenho vários. Entretanto, negá-los, não enfrentá-los não criam a mágica de fazê-los desaparecer. Às vezes faz até o monstro agigantar-se.
Não é fácil, é necessário levantar-se a cada manhã com espírito de lutador, porque há vários leões na selva que precisam ser no mínimo afugentados. Apesar de não concordar com o modo de vida de alguns – algumas (também alguns – muitos – não concordam com o meu!), aprendi a não dar conselhos, muito menos pavonear-me com elogios daquelas que paradas contemplam a minha rua, mas não ousam atravessar para o lado de cá.
O livre arbítrio – invenção do homem atribuída a Deus – é magnífico nesse sentido. Cada um que viva da forma que melhor lhe convier, desde que não cometa roubo, assassinato, calúnias. Se acho a vida de alguém uma vida macabéia, possivelmente esse alguém acha que a minha é uma vida Capitu (e aqui deixo a interpretação para vocês!).

sexta-feira, junho 5

Palavras, ó palavras

Esta é uma máxima contida no livro Ilusões de Richard Bach que li há 31 anos atrás. Pode? Tenho um tempo enorme de palavras a me perseguir!
O livro é uma espécie de Pequeno Príncipe, uma estória contada por um camarada que gosta de voar e um dia encontra um outro camarada que lhe dá alguns ensinamentos a conta gota para melhor encarar a vida. Pode-se dizer que o livro foi o precursor de tantos da linha auto-ajuda, os Paulo Coelhos & Cia ilimitada.
Gostei do livro à época e não posso negar que me ajudou bastante e às vezes ainda me pego repetindo alguns dos seus conselhos, mesmo que a vida vá nos mostrando que determinados aforismos não são tão certos, quer dizer, nem sempre servem quando chega a hora de a onça beber água. Como metáfora, é um exemplo ímpar de escrever para a multidão sedenta de palavras bonitas a serem gastas em conversa de bar.
O livro é semelhante aos inúmeros otimismos em gotas que tanto sucesso ainda fazem. O diferencial é que há uma preocupação em incutir no leitor uma fé, é necessário se ter uma fé para se viver, para os enfrentamentos diários de todos nós. E nisso ele não errou, mesmo que as palavras com açúcar sejam questionáveis.
Por exemplo: “Não existe um problema que não ofereça uma dádiva para você. Você procura os problemas porque precisa das dádivas por eles oferecidas.” Freud já dizia bem antes dele, mas sem a poesia. Outro: “Nunca lhe dão um desejo sem também lhe darem o poder de realizá-lo. Você pode ter de trabalhar por ele, porém.” Esse é ótimo para as pessoas que ficam sentadas vendo a banda passar, esperando que apareça alguém que lhe ofereça um emprego, uma solução para algum problema, que ficam de olhos postos no céu esperando a graça de Deus, quando do céu só cai chuva. Se tiverem coragem, movem-se e possivelmente aconteça uma mudança.
Mudar nunca é do dia pra noite (mas até que pode ser da noite pro dia, pois a noite sempre traz mistérios e revelações). É necessário saber compreender o tempo (ingrato), saber arregaçar as mangas (no calor, melhor camiseta regata), correr atrás do que se quer e não ficar ao Deus dará. Deus dará, se também nos dermos a determinação.
Ao ler o livro não se precisa ler mais nenhum dos tais que fazem sucesso por aí, pois se descobre que com algumas alterações de palavras, a idéia é a mesma. Na verdade, não sei bem porque livros de auto-ajuda fazem tanto sucesso, vendem tanto. Parece que as pessoas querem encontrar nas palavras dos outros o que deveriam encontrar em si mesmas, no silêncio que acompanha a reflexão. Ou, são jovens e querem experiência através dos feitos alheios; ou, são vividos (né cumadi?) e querem descobrir o algo mais para continuar.
Afinal, tudo está dentro de nós. Entretanto, palavras nunca são demais. Algumas hão de ficar e plantar-se, embora Cecília Meireles já pontificasse: "Não nascem lírios de lua pelos corações de pedra”!

sexta-feira, maio 15

Uma ROSA é uma rosa

Quando a conheci, tinha o cabelo penteado de modo casual para parecer despenteado, não muito longo, de uma cor que hoje não sei mais precisar. Possivelmente louro, mas não o convencional para se associar à famigerada fama de loura burra. De burra não tinha nada; aliás, não tem.
Era abril de 1991 e sua chegada provocou um verdadeiro terremoto em um lugar acostumado à mesmice, onde quem tinha muitos anos de trabalho se vangloriava do tempo, do amor pelo lugar, mas preferia que nada fosse alterado. Alterar era questionar, inquietar-se, possivelmente trabalhar mais. Incisiva, não demorou a anunciar a que tinha ido. Não estava ali pelos seus belos olhos claros, mas para colocar em prática suas idéias sobre o que seria uma educação de qualidade.
Tinha em si uma força e uma coragem ímpares, embora em alguns momentos parecesse desiludida com a natureza humana, com os discursos distanciados da prática. Contudo, não perdia os rumos. Cautelosa, observou o espaço, as pessoas, dando-lhes tempo para a poeira do terremoto se esvair no vento. Passado o tempo que a si mesma se deu para as acomodações, impulsiva pôs mãos na massa furando o bloqueio da indiferença, da raiva fermentada que em alguns atravancava o fazer.
Passamos a partilhar os desafios que o trabalho nos impôs. A ela, tacharam de autoritária por querer o cumprimento de horários e funções, por não aceitar uma prática que não alcançava os alunos; a mim, de traidora por não compactuar com os desmandos, pretensamente me desviando do grupo a quem cabia uma oposição, quaisquer que fossem os direcionamentos. O lema cubano virou moeda corrente: si hay gobierno, soy contra. Por um tempo, ainda foi possível no perder la ternura. Depois, não.
De tanto vê-la na ânsia de acertar, mudar o que parecia pedra e fogo, preguei-lhe na sala um cartaz com os dizeres de Drummond: “Lutar com palavras é a luta mais vã. No entanto, luto mal rompe as manhãs.” Era um lembrete para a perseverança da esperança necessária a todo educador, que ela se lembrasse que educação é um fazer complexo, demorado e árduo por que complexas são as pessoas e o domar a mesmice não é tarefa que se faz em dedos contados.
Na convivência, descobrimos o gosto por Chico Buarque e um bom vinho. Perdíamos a noção do tempo entre papéis e conversas à noite, atualizando documentos, idéias de trabalho e o encantamento singular que toda amizade tem. Via nela uma fome de vida, uma pressa em viver tudo a que tinha direito de uma vez só, uma inquietação que não a deixaria ali por muito tempo. Nem ali nem na vida que à época vivia. Imaginava-se em longas travessias, sorvendo de uma única vez o que a vida lhe reservaria, mãos e braços abertos para o que viesse. E a vida não lhe seria aquelas salas, aquela gente.
Muitas vezes me falava que não deveríamos estar na profissão de professora, que éramos inteligentes demais para aquela mesmice (modéstia dela e minha), para uma profissão que dez anos depois ainda teria quase que os mesmos resultados. Sonhava montar uma empresa, um restaurante, um negócio que lhe desse prazer e dinheiro. O mundo era muito vasto.
Quando as palavras já não surtiam efeito, ela se foi. Eu fiquei e lá permaneci para também sair quatro anos depois. Ela realizou os sonhos dos negócios e do prazer de ter restaurante. Aumentou a família, divorciou-se. A exuberância continua e acredito que não passe indiferente pela vida de ninguém. Eu continuei educadora, não aumentei a família, divorciei-me.
De caminhos paralelos temos feito a nossa vida. Há anos não nos encontramos, não tomamos o vinho, não ouvimos as velhas músicas de Chico. No entanto, a qualquer dia recomeçaremos a conversa de onde paramos, pois de longe há muito perto a identidade que nos fez colegas de trabalho ao mesmo tempo amigas onde estejamos.
PS.: Parabéns, Rosa Macedo.

terça-feira, maio 12

Lição de casa

Vinte e cinco anos passei trabalhando em um mesmo lugar, na mesma escola. Para ser exata, foram 9.484 dias de serviço, segundo está escrito na placa que a mim foi dada pela atual direção da Escola, quando de lá saí. Passei metade da minha vida na Escola Mun. Iapissara Aguiar. Saí da escola há dois anos e a escola ainda não saiu de mim.
Não sei se algum dia sairá. Acho que não. Acho que ela sairá de mim quando em mim não restar memórias e ainda assim temo que ela será uma das lembranças que se misturarão ao turbilhão de imagens provocado pela velhice. Eu espero envelhecer.
Escrevo isso hoje, porque fui na página do Orkut de uma aluna que hoje aniversaria e em uma das fotos em seu álbum ela está com uns colegas sentada sobre a mesa do refeitório, os pés sobre o banco, um colega sentado adequadamente no banco. E lágrimas me vieram quando li a legenda posta na foto: saudades. Ela sente saudades dos colegas e do tempo que passou lá naquela escola. Eu também.
Não sei se o que me faz sentir saudades e chorar é o espaço físico da escola que vi crescer, a falta da balbúrdia que toda escola tem e não é mais do que vida, se é a falta do convívio com os amigos que fiz por lá. Desses, alguns ainda me acompanham onde for, onde estou, cimentam a amizade que lá nasceu. Possivelmente, choro sentindo falta de mim, da professora idealista que um dia chegou acreditando mudar o mundo. O mundo eu não mudei, mas tenho consciência que mudei alguns alunos e mais consciência ainda de que eles me fizeram mudar.
Aprendi com eles, e nunca deixarei de reconhecer isso, muito mais do que fui capaz de ensinar-lhes. Alguns quando me encontram me agradecem até mesmo pelas reprimendas, pelos "castigos" (castigo maior era chamar a mãe e dizer do comportamento, até que eles me ensinaram que o melhor seria conversar e com eles mesmos negociar uma mudança, fazendo-os reconhecer o erro, "pagar" pelo mal feito).
Não me perguntem se tinha uma linha construtivista, piagetiana, ou de algum outro teórico. Tinha apenas a clara noção que se deve ensinar responsabilidade, que a vida não é fácil, que pagamos um preço por tudo, sejam nossos acertos e/ou erros, mas nem por isso a vida precisa ser só dever de casa, brincadeira, tirar dez. Pode-se sim, tirar somente a média para passar, pode-se brincar, "ficar" com alguém nos bancos da escola sem necessidade do escurinho do muro. Pode-se achar a escola um lugar bom onde também se estuda. Também, porque alguns alunos acham que escola é lugar pra tudo, menos pra estudar!
Vez em quando vou lá. Sou recebida muito bem, festejam-me e é bom. Mas, paro e contemplo as árvores que plantei, (das que encontrei lá há vinte e sete anos atrás, não resta nenhuma) e vejo, sinto que não é a mesma coisa. Poucas vezes voltei ao turno vespertino, que foi sempre o meu xodó, pois nele fui professora, coordenadora antes de ser diretora. As minhas maiores lembranças estão naquele horário das 13 às 17:30, antes até 17, 18 horas, começando mais cedo, mais tarde. Não tenho coragem de enfrentar o entardecer sentada em dos bancos olhando a quadra se encher de alunos para mais um treino, alunos sentados nos bancos fazendo hora pra ir embora, correndo, fazendo "arte".
Também me aborreci lá. Muitas vezes. Dores menores, maiores, de todas as cores e faces. Fui desrespeitada, ignorada, agredida na minha integridade, pessoas me decepcionaram, feriram-me profundamente. Tão profundamente que ainda lembro da dor, embora os detalhes já apareçam nublados. Muitas vezes chorei, quis sair e não voltar e voltava. Até que saí de vez.
Saí acreditando no que fazia, saí pelo esgotamento físico e emocional de lidar com coisas e pessoas que andavam e davam voltas, a impressão que nada mais valia ser feito. Era a hora de deixar para outros a tarefa, deixar a alguns, especialmente, a brecha que tanto reclamavam para respirar sem ter uma "autoridade". O tempo, senhor de todos os males e bens, dirá a resposta. A mim, ele já me disse e diz que o poeta tinha razão: "Quem quer passar além da dor, tem que passar além do Bojador. Valeu a pena? Tudo vale a pena quando a alma não é pequena".


terça-feira, abril 21

Gira mundo

Ao acessar hoje a página da UOL, deparo-me com as fotos dando conta que os israelenses pararam durante dois minutos em respeito aos seis milhões de judeus mortos durante a Segunda Guerra. É o dia da Shoah.
Então, lembrei-me de dois livros lidos há pouco tempo, os dois transformados em filmes, embora só tenha assistido a um deles até agora. Vi O leitor e espero ver O Menino do Pijama Listrado. Ambos abordam o lado germânico da questão sob prismas diferentes. O primeiro no contacto que um adolescente alemão tem com uma mulher mais velha que ele, de quem se torna amante, e que anos depois a vê sentada no banco dos réus como ex-guarda da SS, acusada de participar da morte de várias mulheres judias, presas durante um incêndio em uma igreja. No segundo, um relato emocionante, ingênuo de um garoto, cujo pai leva toda a família para um campo de concentração, analogia a Auschwitz, pelo som do nome, onde será o comandante. Pela janela do quarto, o garoto vê os prisioneiros com seus uniformes listrados e cinzentos e explorando o lugar por entre a cerca encontra um garoto judeu com quem trava amizade.
Israel não esconde suas dores, suas feridas abertas, a morte de judeus durante qualquer período na história mundial. Pelo contrário, faz disso o seu libelo, anunciando para que não volte a acontecer, enquanto sitia, ataca e mata palestinos ou qualquer outros que sejam ameaças ao país e seu povo. Longe de mim, discutir a questão palestina X israelenses porque nisso vai muito mais do que é capaz minha pouca compreensão da política. Eu só ainda não sei se tanta dor e perseguição dão direito ao povo israelense de ir tanto à briga, embora seja difícil não ter empatia por um povo que ao longo da história sofreu tantas perseguições.
Se Israel é o povo escolhido – o próprio nome Israel significa em hebraico aquele que luta com Deus – há muito o que pensar se essa escolha lhe dá direito a lutar até a morte para ter seus direitos respeitados, desrespeitando, por sua vez, os direitos dos outros. No seu blog, numa postagem do mês de fevereiro,
Saramago tece uma crítica veroz a Israel – em que não está sozinho, pois grande parte do mundo condena essa atitude de Israel para com os palestinos.
Voltando aos livros - tema mais bem seguro que a política.

O Leitor é um livro de fácil leitura pelas poucas páginas que tem - apenas 238 - mas que nos leva a pensar como a doutrina hitleriana foi forte ao ponto de não deixar em seus seguidores - notadamente nos que praticaram atos violentos - quase nada de culpa. Havia uma tarefa a ser feita, alguém precisava fazer. Pronto. Ponto. Não havia o quê questionar. Fora do trabalho, havia pessoas normais, que amavam, choravam, sofriam. E é nisso que reside a força do livro, deixada à mostra fabulosamente na interpretação de Ralph Fiennes e Kate Winslet no filme, por mostrar que para os alemães a guerra em sua perseguição aos judeus ainda é um fato dolorido, de difícil superação, mesmo quando há amor entre as pessoas.
O Menino do Pijama Listrado tem um final sensivelmente triste e deixa a marca da inquietação: o que se faz a outrem pode num segundo suceder a nós mesmos. Uma lição que esquecemos com frequência, seja como indivíduos ou como governos. Se crescéssemos com a atitude franca de amizade que as crianças têm, seríamos mais tolerantes com as diferenças, não teríamos tanta ânsia de poder. Mas, isso é uma utopia. Desde que o mundo é mundo que os povos brigam e pela vontade de serem mais fortes encontram qualquer motivo para disputas.

sábado, abril 11

Inefável

"Não te doas do meu silêncio.
Estou cansado de todas as palavras:
- Não sabes que te amo?
Pousa a mão na minha testa.
Captarás numa palpitação inefável
O sentido da única palavra essencial
- Amor."
Esse é um dos poucos poemas que sei de cor, pois há muitos anos dele me utilizei para dar uma aula. E lia nele pela primeira vez a palavra inefável, tão desconhecida que fui em busca do dicionário para decifrá-la. Desde então, o poema de Manuel Bandeira sintetiza pra mim muitas coisas que há na vida, entre elas o amor sentido e tão difícil de ser expresso por palavras.
Ser inefável bastaria para designar o amor, mas teimamos em desvendá-lo, como se palavras postas no papel ou ditas – às vezes até mal ditas! – a alguém pudessem ser mais precisas do que o sentimento em si. Da mesma forma que erramos quando muito falamos, podemos errar ao ficar calados. Para o amor não deveriam existir palavras, nem mal entendidos, silêncios carregados, choros desesperados ou arrependidos.
Ao amor deveria se bastar nossa verdade sem palavras, “tão contrário a si é o mesmo amor”.
Foto da postagem by José Marafona.

sábado, março 28

ATéIA

A cada batida do coração
o homem pensa que ama
(se o amor não existisse
o que seria do homem?).
A cada lágrima que do rosto cai
o homem diz que sofre
(se o sofrimento não existisse
o que se daria ao homem?).
A cada abraço apertado
imagina o homem a amizade
(se não se fizessem amigos
o que se faria do homem?).
A cada palavra pronunciada
finge o homem revelar-se
(se não houvesse palavras
que significado teria o homem?).
E formou-se uma teia
ao redor de todo o homem
tornando-o ao mesmo tempo
viajante e fugitivo no mundo.

Imagem by Arlindo Fernandez.

sábado, março 14

Any word

Quando penso em escrever nunca sei sobre o que será. Sento-me e deixo que as palavras apareçam sob as pontas dos meus dedos passeando no teclado. O pensamento anda tão mais rápido que as mãos, que troco letras, deleto e assim vai se formando um texto.
Já perdi muitos devido a problemas com o computador. Outros apaguei na primeira leitura por achá-los bestas, idiotas, eruditos, incompreensíveis, evasivos ou até mesmo invasivos, mostrando o que não quero revelar. Muitos rasguei depois de anos por não combinarem mais com quem sou.
Acho que escrever é um espírito que se põe bem aqui ao meu lado e me faz dedilhar um piano sem som – que tipo de espírito não sei, não sei nem mesmo se todas as vezes – ou se alguma vez! – sou eu mesma.
Como professora de Português, há uma preocupação de construir o período certo, a concordância limpa, as palavras claras e objetivas. Pecado mortal para quem escreve querer ser claro e objetivo, porque quanto mais as mãos dedilham, mas a cabeça acende trazendo palavras não sei de onde.
Enquanto escrevo, não paro para ler, muito mesmo para corrigir. Quando acho que está bom, paro, leio, apago, releio, vou modelando na tentativa de algo que pelo menos eu não sinta vergonha de dizer que escrevi. Não sei se alguns se arrependem por lê-las – é provável – mas, não me dou ao luxo de auto me denominar escritora. No máximo uma escrevinhadora que exorciza os demônios através das letras. O luxo a que me dou é o de pensar que quem me lê pode me conhecer e me reconhecer nas palavras.

Cliquem aqui e leiam o poeta português Mário Cesariny.

domingo, março 8

Vivir Morir

Atear fogo às palavras, mentir
atear fogo ao sentimentos, anestesiar-se
atear fogo à vida, fugir
sumir por entre fumaças
saudades
atear fogo ao fogo, consumir-se
deixar brasas pelos cantos
atear fogo à voz, negar-se
atear fogo à angústia, gritar
sem bombeiro sem água
adiar os incêndios
atear fogo à alma, morrer
atear fogo à lembrança, chorar
atear fogo a si mesmo, anular-se
rastros de chamas pela vida
entre o atear e o apagar, viver.

terça-feira, fevereiro 24

Perhaps

Pode ser meio assim
meio assado
mal passado
um simples acaso
ocaso
incêndio ocasional
água enchente
percalço acidente
via sem acesso
acesso de loucura.
Pode ser assim meio
sem jeito
disfarçado de lado
campo minado
meia circunferência
linha meridiana
tangente diagonal
descalço terra quente
fogo feito cinza
verão outonal.
E assim pode ser
meio assim
volta e meia
volto já.

quinta-feira, fevereiro 19

Ângulos

Olhar de frente
o furo
que se fez na alma
olhar de costas
a mancha
que ficou da mágoa
olhar de lado
a incerteza
que desviou os passos
olhar de cima
o rastro
que se perdeu no tempo
olhar de baixo
a fé
que sobreviveu a tudo
e recomeçar.

sábado, fevereiro 14

Adiamento de vida

Era uma vez uma menina e o seu maior sonho era aos dezoito anos sair de casa, ter sua própria casa, seu carro, tudo isso à custa de um belo e grandioso emprego. Não pensava em casar e isso torturava sua mãe, para quem filha minha só sai de casa casada.
Na festa dos seus quinze anos, entre tantos presentes, ganhou um relógio que usou por pouco tempo. Ser controlada pelo tempo não era seu forte. Até hoje é extremamente impontual, odeia rotina e o antigo relógio repousa na caixa original como uma lembrança de uma festa que tinha tudo pra dá errado. E deu.
O vestido rosa apertava-lhe o busto, a saia rodada não era nada do que tinha imaginado. A maquilagem que lhe foi feita serviu muito bem para esconder as lágrimas que durante todo o dia brigaram com a mãe na tentativa de convencer-lhe que a festa era dela, ela tinha o direito de resolver como fazer. Não teve.
Passado o trauma, quando conseguiu o primeiro emprego comprou uma televisão e a transportou de ônibus para casa. Era um troféu carregado sobre os ombros. Ela agora era gente. Ao ver aquele bem, a mãe não teve dúvida: requisitou o objeto novo para a cozinha, trocando-o pelo televisor velho de imagens trêmulas. Calada estava, calada ficou. Tem nada não, quando eu completar 25 anos eu saio de casa.
O segundo emprego a obrigou a estudar à noite. O comércio no shopping arrancava-lhe todas as forças, dormia na aula, mas foi aprovada nos três anos de ensino médio. Não comprou mais nada pra casa, o dinheiro repousava numa bela conta poupança. Não temia pela conta, Collor já tinha feito sua raspagem.
Perto dos 25 anos, a loja faliu e ela foi despedida. Adeus emprego, adeus cursinho para fazer vestibular. O seguro desemprego a sustentou durante três meses. Passado o tempo, nada de novo trabalho e a cada mês a conta minguava. Se não olhava pra relógio, passou a olhar para o calendário na parede da cozinha já repleto de X dos dias sem emprego. Sair de casa ficou adiado.
Depois de quase um ano assim, encontrou emprego, sustenta-se com ele e é uma das melhores profissionais no ramo. Já passou dos trinta anos, comprou carro, concluiu faculdade, e transformou o quarto na casa da mãe num apart-hotel e acha que só vai sair de casa quando casar. Isto é, quando arranjar um namorado, porque os homens de hoje são todos uns safados que não querem compromisso.
Como disse Marcelo, anda à procura da lincatura do sartejo!

_______
* Marcelo, é um gaúcho arretado, amigo virtual que escreveu um belíssimo conto chamado A Lincatura do Sartejo – as palavras não existem; são atribuídas às desculpas que usamos para não realizar determinada coisa.

sexta-feira, fevereiro 6

CansAÇO


Joga o sapato e se perde. O cansaço impregna até o ar que respira. A toalha molhada enxuga-lhe o corpo aquecendo as lágrimas que durante todo o dia conteve. Nua e descalça estira a alma na cama. Fecha os olhos, abrindo-se para um mar calmo, nuvens ao longe, gaivotas pousando sobre um passadiço de navio que somente sua imaginação vê. Besteira. De repente, sobressaltada, pula da cama.
Abre a bolsa, tira a chave. Abre a vida e se joga.

***************************************************

É obrigado a parar no sinal. Impacienta-se porque não vê carro nenhum no cruzamento, apenas a presença da câmara o impede de continuar. Um carro prateado para ao seu lado. Percebe uma mulher na direção e tem a impressão de ver asas. O sinal não abre, escuta o bater de uma porta e estranha. Olhando em direção ao carro de antes, não encontra mulher alguma. Tenta olhar em todas as direções, mas o cinto de segurança impede-lhe os movimentos.
Vira-se e destrava o cinto no mesmo instante em que o sinal abre. No pára-brisa do carro, a mulher ergue a mão, estilhaça o vidro e o leva em direção ao céu.

sábado, janeiro 17

Tchau, boy.

Uma criança é assim como essa música que toca ao abrir essa página: mansa, suave, gradativamente ativa, cheia de vida, transmitindo beleza que não sabemos definir. Nada é mais esperaçoso e belo do que ver uma criança crescer. A vida ali é só ruído, magia, presença de Deus em sua grande sabedoria. Sabedoria que não temos. Se a tivéssemos, entenderíamos por que Rodrigo se foi. Rodrigo que daqui a alguns anos seria o doutor Rodrigo César, mas no domingo passado tinha apenas dois anos e 6 meses.
O Rodrigo pra mim será sempre o boy, pois assim o tratavam as colegas de sua mãe. Não tive muito contato com ele, mas durante um tempo o via quase toda semana num belo pôster em frente de uma loja especializada em fotos no maior shopping da cidade. Na fotografia ele olhava embevecido, sorridente para quem o fotografava. Certamente sua mãe.
Era filho adotivo, mas podia declarar sem medo de errar uma só vírgula que era filho do amor de seus pais, que o desejaram tanto, tanto que após se saberem impossibilitados de serem pais biológicos, saíram de Natal e foram a outro Estado em busca de uma criança. E encontraram-no.
Foi uma odisséia para sua mãe tê-lo como filho. As tentativas de engravidar, os tratamentos que se frustraram não a demoveram do desejo de ser mãe. Não o simples desejo de ter um filho, mas de ser mãe por inteiro, entregar-se a uma criaturinha que no início mal a conhecia, que à noite lhe tirava parte do sono, que lhe deixou tomada de angústia quando teve de retornar ao trabalho, que lhe deixou insegura ao deixá-lo na porta do Centro Infantil pela primeira vez. Vai que acontecesse algo ao seu filho? Medo de toda mãe.
Drummond tem um poema no qual pergunta por que Deus permite que as mães vão-se embora, pois para elas o filho, mesmo velho, "será pequenino feito grão de milho". Se a isso não deveria ser permitido, por que Deus permite que os filhos vão-se embora, deixando suas mães com uma dor inefável estraçalhando o peito, dando-lhes não a impressão, mas a certeza que não mais há luz do sol?
Familiares e amigos, preocupados, tentam ajudar. De acordo com suas próprias crenças misturam palavras de destino, carma, fatalidade, vontade de Deus. Não há respostas. Rodrigo ser o doutor Rodrigo era o destino que sua mãe sonhava. Carma foi ele ter nascido tão longe e ser encontrado por quem verdadeiramente iria cuidá-lo e amá-lo. Fatalidade não existe, acaso não existe, este é o nome quando Deus não quer apor sua própria assinatura. O que existe é que as estrelas vivem no céu, é de lá que elas brilham. Um anjo vem temporariamente a terra e depois parte. Na passagem do nosso tempo, curta, Rodrigo viveu uma eternidade, pois jamais será esquecido.
Rodrigo tinha uma missão. Encontrar uma mulher e fazê-la mãe, por ela ser amado e amá-la naquela cumplicidade que só as almas compreendem. Hoje o luto não se apaga assim, ele é vivido e revivido no cheiro das roupas que ficaram, na impressão que há um barulho de um carrinho pela sala, no primeiro pensamento pela manhã de que precisa aprontá-lo para a escola.
Do que Rofrigo ensinou e deixou com sua mãe e seu pai ninguém sabe. A semente plantada por ele no tempo certo se transformará em árvore e eles verão que na vida há cores, formas, vida, felicidade. A felicidade não lhes foi roubada, pois, privilegiados, tiveram uma criança para cuidar e por ela ser amados. Agora, quando olham para o céu procuram uma estrela mais perto e forçando bem os olhos de lágrimas e de fé podem vê-lo rindo dando tchau.
Tchau, boy.