sábado, outubro 6

Bugol


Nos idos dos anos 60, os Estados Unidos implementaram um programa de assistência aos países do terceiro mundo denominado de Aliança para o Progresso. Através dele, a população carente recebia alimentos para suprir as necessidades nutricionais, além de recursos financeiros para o desenvolvimento do estado, como casas populares, escolas. Dessa leva, em Natal se construíram o conjunto habitacional Cidade da Esperança e o Instituto de Educação Pte Kennedy, enquanto o navio Hope, ancorado no Porto na Ribeira, distribuía leite em pó e realizava tratamentos médicos e cirurgias que até então eram inacessíveis aos potiguares.
O símbolo do programa era um aperto de mãos entre indivíduos, simbolicamente estadunidenses e latinos americanos. Os americanos não estavam preocupados altruisticamente em salvar populações da fome. Estavam muito mais interessados em fazer com que o comunismo não aportasse e conquistasse terrenos por essas bandas. Era o tempo da guerra fria, o mundo polarizado entre americanos e soviéticos, o inimigo vermelho.
À minha família não interessava muito quais os propósitos por trás da ajuda, embora minha mãe, como boa protestante, visse nos comunistas o diabo em pessoa. Recebiam-se leite e um tipo de grão que o povo chamava de bugol. Era um grão semelhante ao arroz integral, com o qual se fazia uma espécie de papa de gosto horrível. O tal bugol era servido nas escolas como merenda e não tinha negociação que me fizesse comê-lo.
Anos passados, sempre tive curiosidade de saber que comida era aquela e como era preparada no país de origem, porque nunca mais comera algo como aquilo – ou melhor, com aquilo. Ao comer kibe pela primeira vez, veio à mente o bugol de antes, embora não tenha feito conexão, porque no kibe, ainda que um tipo de trigo, só me vinha à mente o trigo refinado, farinha. Continuei com a dúvida e a quem perguntava também não sabia – pessoas daquele tempo lembravam-se da comida, mas não sabiam a origem.
Este ano lendo Dias de Mel, livro da americana Annia Ciedzadlo, que conta sua estadia em Beirute, acompanhando o marido libanês, entre fatos dos eternos conflitos da cidade, o livro registra algumas receitas árabes e em uma delas aparece o bugol. Na verdade, bulgar-wheat (ou Bulgur).
Explica-se por que o nome bugol. Era uma corruptela de bulgar, um cereal feito a partir de variadas espécies de trigo, utilizado em muitas receitas de comida de origem árabe.
Estava desvendado um mistério da minha infância/adolescência. Além dessa descoberta, de quebra ainda ganhei mais um exemplo de como o povo vai adaptando os sons de uma língua estrangeira à sua própria, criando novos vocábulos. Da época, ainda lembro grandes sacos de leite, das latas do querosene jacaré, necessário àquele à fome, este quando faltava luz elétrica, vinda de forma tão deficiente de Paulo Afonso.
Lembro dos cabelos ao vento do senador americano Robert Kennedy, passando na rua onde eu morava, acompanhado de Aluízio Alves. Contudo, isso é outra história.

2 comentários:

Unknown disse...

Tomei muita sopa de bugol, no Grupo Escolar Raimundo Soares, localizado na Cidade da Esperança e sinceramente eu até que gostava.

jose napoleao angelo disse...

Eu vivi. Eu comi esse cereal. Ao contrário de muitos, inclusive você, eu comia sem maiores problemas. A memória não preservou o sabor, mas lembro-me perfeitamente do grão servido como sopa no recreio das escolas públicas, no meu grupo escolar no Sertão de Piancó, na Paraíba. Além dele havia leite em pó, muito bom, óleo (acho que de caroço de algodão), queijo cheddar delicioso, farinha de trigo e de milho.
Seu escrito relatado sobre merece aplausos. Muito bom. Parabéns
josenapoleaoangelo@gmail.com