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Bem-me-quer, mal-me-quer

Ao perceber que o sonho cuidadosamente planejado era só seu; ao sentir no corpo o afastamento da paixão de Pedro; ao contar noites mal dormidas dominadas pela saudade, Alzira soube que nada mais lhe restava daquilo que era a sua vida. A vida que em casas separadas vivia com Pedro há quatro anos.
Passara o tempo “de tudo ao meu amor serei atento”. Agora, tempo de brumas, de mãos espalmadas segurando o espanto, espumas de repente, “não mais que de repente”. Bem que não fora assim tão de repente; mas, surda e cega, pensara que aqueles sinais eram apenas isto: sinais, crise passageira. Enganara-se, redondamente se enganara. E o resultado é este que se posta bem aí a sua frente, remediado está.
Da caixa escondida no fundo do guarda-roupa retira o que sobrara, papéis amarelados com o amor escrito em mau português, letra miúda, recortes de poemas entre corações desenhados. Até mesmo uma peça íntima vermelha no meio do papel manteiga recorda-lhe os tempos. Num ímpeto, rasga; não, estraçalha a seda. Que seus pedaços descansem no lixo onde também deveria colocar Pedro. Deveria, mas não o fará. Não, por enquanto.
Com um pequeno baú sobre o braço senta-se no corredor em posição que o espelho lhe reflete o perfil. Ela se vê, mas o espelho não a enxerga. Pedaços de tecidos começam a sair da caixa e se espalham sobre suas pernas estendidas. Agulha e linha dançam rapidamente na feitura de um boneco nu, sem face, descalço. Pontuada toda linha, o lápis preto tece o rosto de Pedro. Pelo espelho vê o resultado do trabalho sem que o pequeno Pedro lhe retribua o olhar. Recolhe tudo, levanta-se e no quarto sobre a cômoda repousa o boneco de frente para o espelho. Não tardará.
Alzira em sua auto-estima machucada pela rejeição não percebe que Pedro seguira o curso da vida, injusto possivelmente, mas irremediável aos que se apaixonam pela paixão, esquecendo de ninar o amor dia após dia. Para ela, nada sem Pedro. Para Pedro, a justiça de suas mãos por deixá-la sonhar pensando-se amigada.
Entre volta e meia pelo corredor, os pés levam-na ao quarto, o quarto guiando suas mãos ao boneco pinicado de alfinetes, furos invisíveis no peito que no corpo real de Pedro começaram por uma coceira seguida de uma rosácea cheia de pústulas. O peito parecia-lhe fogo auto se consumindo no esfregar de suas unhas, no remédio que ardia sem apaziguar. Não compreende a doença de tão sadio que era.
De tão pequeno, já não suporta mais o Pedrito alfinetes pelo peito, oferecendo inerte as costas, pernas e braços. O rosto não. Frente a frente, Alzira percebe que o rosto do boneco demonstra dor e espanto, uma agonia nunca vista em Pedro. Cuidadosamente, aninha o ferido Pedro nos braços e senta-se no corredor em posição que o espelho lhe reflete o perfil. O pequeno alfinete desliza pelo rosto de Pedro, provocando-lhe pontadas, uma sutil coceira que aos poucos vai se avermelhando.
Subitamente uma dor aguda lhe atravessa a orelha, um vácuo se formando no labirinto. O alfinete atravessa o tímpano e na volta traz na ponta um filete de sangue, que escorre quente pelo pescoço, causando em Pedro o medo súbito de uma praga. Como explicar esse mal repentino que lhe tira a vida aos poucos senão como obra do maligno?
Trocada pelo alfinete, a longa agulha de tricô atravessa o maxilar de Pedro, perfura-lhe os olhos e encrava-se certeira no lobo temporal direito apagando-lhe a memória. Sentada, Alzira movimenta o espelho, vendo-se inteira com o boneco nas mãos cravejado de alfinetes, agulhas e furos. Não tardará.
Negando-se a pensar em castigo, não por deixar Alzira, mas por amar Daniel, Pedro desmaia. Negando-se a pensar no amor de antanho, não por ter sido traída, mas por ainda amar, Alzira tomba sobre Pedro, a longa agulha de tricô encravando-se inteira no coração.

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