Pular para o conteúdo principal

Tchau, boy.

Uma criança é assim como essa música que toca ao abrir essa página: mansa, suave, gradativamente ativa, cheia de vida, transmitindo beleza que não sabemos definir. Nada é mais esperaçoso e belo do que ver uma criança crescer. A vida ali é só ruído, magia, presença de Deus em sua grande sabedoria. Sabedoria que não temos. Se a tivéssemos, entenderíamos por que Rodrigo se foi. Rodrigo que daqui a alguns anos seria o doutor Rodrigo César, mas no domingo passado tinha apenas dois anos e 6 meses.
O Rodrigo pra mim será sempre o boy, pois assim o tratavam as colegas de sua mãe. Não tive muito contato com ele, mas durante um tempo o via quase toda semana num belo pôster em frente de uma loja especializada em fotos no maior shopping da cidade. Na fotografia ele olhava embevecido, sorridente para quem o fotografava. Certamente sua mãe.
Era filho adotivo, mas podia declarar sem medo de errar uma só vírgula que era filho do amor de seus pais, que o desejaram tanto, tanto que após se saberem impossibilitados de serem pais biológicos, saíram de Natal e foram a outro Estado em busca de uma criança. E encontraram-no.
Foi uma odisséia para sua mãe tê-lo como filho. As tentativas de engravidar, os tratamentos que se frustraram não a demoveram do desejo de ser mãe. Não o simples desejo de ter um filho, mas de ser mãe por inteiro, entregar-se a uma criaturinha que no início mal a conhecia, que à noite lhe tirava parte do sono, que lhe deixou tomada de angústia quando teve de retornar ao trabalho, que lhe deixou insegura ao deixá-lo na porta do Centro Infantil pela primeira vez. Vai que acontecesse algo ao seu filho? Medo de toda mãe.
Drummond tem um poema no qual pergunta por que Deus permite que as mães vão-se embora, pois para elas o filho, mesmo velho, "será pequenino feito grão de milho". Se a isso não deveria ser permitido, por que Deus permite que os filhos vão-se embora, deixando suas mães com uma dor inefável estraçalhando o peito, dando-lhes não a impressão, mas a certeza que não mais há luz do sol?
Familiares e amigos, preocupados, tentam ajudar. De acordo com suas próprias crenças misturam palavras de destino, carma, fatalidade, vontade de Deus. Não há respostas. Rodrigo ser o doutor Rodrigo era o destino que sua mãe sonhava. Carma foi ele ter nascido tão longe e ser encontrado por quem verdadeiramente iria cuidá-lo e amá-lo. Fatalidade não existe, acaso não existe, este é o nome quando Deus não quer apor sua própria assinatura. O que existe é que as estrelas vivem no céu, é de lá que elas brilham. Um anjo vem temporariamente a terra e depois parte. Na passagem do nosso tempo, curta, Rodrigo viveu uma eternidade, pois jamais será esquecido.
Rodrigo tinha uma missão. Encontrar uma mulher e fazê-la mãe, por ela ser amado e amá-la naquela cumplicidade que só as almas compreendem. Hoje o luto não se apaga assim, ele é vivido e revivido no cheiro das roupas que ficaram, na impressão que há um barulho de um carrinho pela sala, no primeiro pensamento pela manhã de que precisa aprontá-lo para a escola.
Do que Rofrigo ensinou e deixou com sua mãe e seu pai ninguém sabe. A semente plantada por ele no tempo certo se transformará em árvore e eles verão que na vida há cores, formas, vida, felicidade. A felicidade não lhes foi roubada, pois, privilegiados, tiveram uma criança para cuidar e por ela ser amados. Agora, quando olham para o céu procuram uma estrela mais perto e forçando bem os olhos de lágrimas e de fé podem vê-lo rindo dando tchau.
Tchau, boy.

Comentários

É impressionante como o amor nasce verdadeiramente no coração das pessoas puras de coração. Ednice nem tinha tanto contato conosco, mas foi cativada pelo amor expressado por Rodrigo César.
Estou impressionada! Você expressou muito do que eu tenho no peito, mas ainda não consegui colocar pra fora... O que você escreveu me deixou muito lisonjeada. Você está de parabéns! Muito obrigada.
Unknown disse…
Tenho um filho de um ano e cinco meses, sou amiga dos pais de Rodrigo e acompanhava a alegria dos pais dele desde o momento que ela aguardava a chegada de Rodrigo César e o amor que os pais deram a ele e foi com muita tristeza que recebi a noticia da partida desse lindo anjo, até hoje não consigo conter as lágrimas, mas esse texto, quase uma oração, deixa muito mais em todos nós, estou certa que hoje algo em mim mudou. Parabens, vc é otima, uma maestra das palavras.

Postagens mais visitadas deste blog

Bugol

  Nos idos dos anos 60, os Estados Unidos implementaram um programa de assistência aos países do terceiro mundo denominado de Aliança para o Progresso. Através dele, a população carente recebia alimentos para suprir as necessidades nutricionais, além de recursos financeiros para o desenvolvimento do estado, como casas populares, escolas. Dessa leva, em Natal se construíram o conjunto habitacional Cidade da Esperança e o Instituto de Educação Pte Kennedy, enquanto o navio Hope, ancorado no Porto na Ribeira, distribuía leite em pó e realizava tratamentos médicos e cirurgias que até então eram inacessíveis aos potiguares. O símbolo do programa era um aperto de mãos entre indivíduos, simbolicamente estadunidenses e latinos americanos. Os americanos não estavam preocupados altruisticamente em salvar populações da fome. Estavam muito mais interessados em fazer com que o comunismo não aportasse e conquistasse terrenos por essas bandas. Era o tempo da guerra fria, o mundo polari...

De amOR e de temPO

    Ainda quando estudava o antigo ginasial, uma professora de Português, interessada em que os alunos gostassem de ler e apreciassem os clássicos, passou como tarefa de avaliação uma redação sobre o texto  AMOR MENINO par te II do Sermão do Mandato – mas isso só soube muito depois já na faculdade - do Pe. Antonio Vieira. Agora, imaginem a dificuldade de adolescentes nos idos final dos anos 60 em cumprir essa tarefa. O que sabíamos do amor? Nada. Do tempo muito menos. O amor era em preto e branco nas fotonovelas que eu comprava no sebo na banca da feira livre, hábito também o das minhas amigas com quem trocava livros e revistas, caso contrário não leríamos nada. Apesar dessas imagens de amor, não lembro se as conversas já rondavam assuntos de namoro, casamento. Acho que não, pois éramos àquela época imaturas para tais assuntos. O universo ainda girava em volta de livros, estudar para provas, sorvetes, ouvir música e meninos não faziam parte do grupo. Aliás, eram olhados...

Ecce Homo

  Uma das passagens bíblicas mais conhecida, mesmo pelos que não professam a fé cristã, é a atitude de Pilatos em não assumir a liberdade de Jesus, preferindo entregar essa decisão ao povo, (difundido a expressão latina ecce homo – Eis o Homem) mesmo sabendo que Barrabás tinha crimes comprovados, enquanto Jesus, não. Não ter a coragem de decidir, pondo em risco sua posição diante dos superiores romanos, como também o medo da reação dos que apoiavam Jesus, preferindo demagogicamente levar o povo a acreditar que tinha o poder de decisão, o  fato é um exemplo poderoso do que a omissão, a fraqueza de uma pessoa pode provocar. Pilatos usou da tradição de se soltar um prisioneiro judeu no período que antecedia a páscoa, achou que o povo escolheria o criminoso confesso, ele ficando, portanto, bem com qualquer que fosse a decisão: cumpriria a lei condenando um criminoso, soltaria um inocente. Contrariando as expectativas de Pilatos, o povo decide por Barrabás, condenando Jesus. ...

ReiNo TriVial?

  Tenho algumas lembranças do tempo de Faculdade quando cursava Licenciatura em Letras e tinha como disciplinas Literatura Brasileira e Estrangeira. As aulas eram no recém criado Campus da UFRN, o Setor II ainda sem as edificações vizinhas, constituindo-se em um quase deserto. Muitos dos professores eram recém chegados de Mestrados e Doutorados fora de Natal, alguns do exterior. O ensino era na base das aulas expositivas, seminários e ainda não era obrigatória a apresentação de trabalho final, TCC. Alguns deles marcaram minha trajetória acadêmica, embora não a profissional, pois esta só se firmou quando, pelas circunstâncias, precisei ingressar na função docente. A professora Jacirema da Cunha Tahim ensinava Teoria Literária e impossível não lembrar os contos de Clarice Lispector estudados. Daí a minha paixão pela escrita da autora, a lembrança mais resistente sendo o conto Tentação , de cujo início nunca esqueci: “Ela estava com soluço. E como se não bastasse a claridade das...

PhOBos

Tenho medo dos que se afirmam muito religiosos. Daqueles quase santos que esperam apenas a ascensão direta aos céus, tal qual Cristo. Tenho medo dos que citam a Bíblia a torto e a direito. Nunca estão errados, os erros são creditados na conta de Deus e eles, somente eles, têm o privilégio de verem suas orações serem atendidas por que possuidores e distribuidores do bem. Tenho medo dos que guardam Deus na prateleira. E retiram-no a pretexto de tudo, inclusive para evocar os poderes na execução de suas pequenas vinganças pessoais. Deus está a posto para servi-los, como se empregado fosse, ou se a eles tenha sido atribuído o privilégio de serem guardiões do trabalho divino, Deus fosse um gênio fugido da garrafa disposto a satisfazer muito mais que três desejos. Tenho medo dos que retiram Deus da carteira e distribuem caridade à paga de remissão dos próprios pecados, garantindo entrada no reino celestial mediante quitação de carnê. E que fazem questão de que a mão esquerda divulgue o que a...

Bell

Ontem na padaria uma mulher dizia a um rapaz que o que tinha acontecido seria bom porque assim fulana teria um crescimento espiritual. Uns meses atrás uma amiga me emprestou o livro Quem me roubou de mim do Pe. Fábio de Melo. E tá lá, grifado pela minha amiga: "Não é justo que o ser humano passe pelas experiências de calvário sem que delas nasçam experiências de ressurreições". Aprendo a não esperar nada de ninguém. Aprendo a conviver com a mentira, ou como querem, a omissão - um nome menos ruim para a mesma mentira. Há mentira e mentira, todos sabemos. Mentira desnecessária para mim é aquela mentira contada com a desculpa que é para me proteger, me poupar. Quer ferida maior que a mentira? Não sou de porcelana e escolho a mais dura verdade à mais suave mentira. Mentira para me poupar é a mentira que me tira a dignidade, que não respeita o que sou nem o que construo nas relações. É jogar na minha cara o quão me acham idiota. A mentira é sempre uma agressão ao outro, desprezo ...