Pular para o conteúdo principal

Jó, Joana

Depois de um tempo casada, incontáveis visitas a médicos e orações, Joana descobriu que não podia ter filhos. Passada a tristeza inicial, procurou na maternidade da pequena cidade uma criança que pudesse ser adotada. Alguns meses se passaram até encontrar Marta. Agora sim, a família estava completa. Tinha uma filha e não interessava se de sangue, de leite, de afinidade. Era dela a filha, deles.
Quarta filha de uma família com sete filhos, pais presbiterianos calvinistas convictos até os ossos, casara com Joaquim, pequeno comerciante ambulante, de fé igualmente inabalável. Foram morar numa cidade distante da capital, embora percorressem todas as feiras da região, armando banca, vendendo bibelôs, antigos enfeites de geladeira, panelas de alumínio, plásticos em todos os formatos, de todas as cores, de preços baixos. De feira em feira, domingos de igreja, criavam a filha.
Na idade escolar, descobriram que Marta não tinha a menor aptidão para os estudos. Não adiantava castigo, palmatórias, a mão emperrava e mal levantava do papel para se reconhecer no próprio nome. Gostava de costurar vestidos para as bonecas, andar solta com os meninos, subindo em árvores, fugindo para a fábrica de sabão na mesma rua onde via indiferente a gordura de cães misturada à água sanitária e tantos outros produtos. Nunca teve um animal de estimação. Religiosamente, freqüentava a igreja.
Desfeito o sonho de ver Marta pelo menos professora, a educação desviou-se para fazê-la uma boa dona de casa. Depois de comentários sobre os furtivos encontros a pretexto dos cultos de oração, não teve jeito a não ser casar a filha, pois dali a pouco seria visível demais o corpo com outra vida. Sem casa, sem eira, nem beira, o marido Jairo saía da casa dos sogros para o trabalho em construção onde e quando havia. Se não, fazia parede de açude, arrumava cama, porta, telhado dos outros na busca pelo menos do dinheiro da pinga que começara a beber.
Quando a neta nasceu, Joana renasceu. Agora os sonhos encontravam nova morada. Não importava se os pais não tivessem maturidade, juízo, responsabilidade. Ela e Quinho cuidariam de Rute, não cuidavam já de tudo? Uma boca a mais não faria diferença, ainda mais sendo uma neta tão querida. A menina engordava parecendo leitãozinho cevado, embora a mãe lhe desse apenas os cuidados básicos, tudo a cargo da avó que se desdobrava entre casa, feira, igreja, um lavar de fraldas sem fim, sopinhas, mamadeiras. Mas, não importava, grandioso era Deus em sua sabedoria.
Poucos meses depois de completado um ano, Rute apresenta forte febre, uma gripe renitente. Os chás não debelam aquela tosse, a criança mal respira. O jeito é levar ao hospital da cidade e se não melhorar, viajar até Natal em busca de outros meios. O médico tranqüiliza a família, aquilo é gripe de criança, nada que uma penicilina não cure. Da gripe, depois de alguns dias não há vestígios. Instala-se, no entanto, uma paralisia.
Diante de tamanha provação, Joana e o marido vendem o que podem, negociam o que têm e se mudam para a capital, principalmente em busca de tratamento mais especializado para Rute. Com as economias, compram uma casa confortável em um conjunto recém inaugurado em um bom bairro da cidade, participam da criação de uma congregação evangélica, a qual se dedicam, pois, aposentados ambos, dividem o tempo entre os cuidados com a neta, os afazeres de casa, visitas. A filha e o marido moram junto, pouco tempo nasce outro neto, o genro aumenta na bebida, nas mulheres, esfacelando a convivência familiar.
De nada adiantam os tratamentos para Rute. Membros inferiores paralisados, atroviam-se sem atividades; lado direito paralisado, restando apenas o lado esquerdo para se mover na vida. A avó ensina-lhe a ler; o avô nega-lhe a televisão, as leituras que não sejam bíblicas; a mãe sem rumo, mal lava a louça, arruma a casa, bom mesmo é viver de porta em porta, falação com as vizinhas; o pai, do trabalho para a cerveja. A cadeira de rodas doada não lhe leva a escola, pois para que aprender além de ler? Tudo é obra e graça de Deus, aceita-se e vive. A crença cega embota a razão e de nada servem os conselhos dos parentes.
Do interior para a capital, Joaquim desenvolve uma renite alérgica que se transforma em asma que se transforma em enfisema pulmonar levando-o vezes sem conta ao hospital. Não há mais dinheiro, pois, na conversa do genro, vendera a boa casa, comprando uma menor com maior terreno, embora longe dos parentes, em bairro mal afamado. Entrado na velhice, ele e Joana têm a vida regulada por Jairo e o neto, agora adolescente.
A vida aos poucos cria outro ritmo. Abandonada a antiga congregação, Joana e Joaquim freqüentam outra perto de casa. Marta, presa numa vida sem luz, engorda e come. Jairo trabalha, bebe, arranja mulheres, tem automóvel. O neto Miguel cresce, exímio mecânico, engravida a namorada. Rute se locomove pela casa num carrinho tipo rolimã feito pelo pai e nos poucos passeios leva-se no carro a cadeira de rodas. Pinta, borda, trabalha com papel reciclado fazendo cestas, porta-revistas, freqüenta um órgão estatal para deficientes, recebe cesta básica, aposentam-na.
Sem forças, o coração de Joaquim não agüenta nova crise de asma e pára. Ainda ecoa o hino preferido por ele cantado por Joana no cemitério: "com Cristo no barco tudo vai muito bem, vai muito bem". Jairo, senhor absoluto, dita ordens. Marta em seus cinqüenta anos sofre calada ao ver o marido com amante até na mesma rua onde mora. Rute em plena efervescência dos trinta anos é proibida de namorar, sem direito a nada, menos pelo medo de ter o que um simples anticoncepcional impediria, mais pelas marcas do cinturão do pai em suas pernas inertes sem dor. Miguel, hoje adulto, junta-se ao pai nos ditames de três mulheres, três gerações sem voz. Joana ainda canta seus hinos, lúcida e resignada na família que lhe coube ter.


Essa é uma estória a qual não gostaria de ter contado. Trocados os nomes, hoje aos 82 anos minha tia ainda tem uma fé inabalável. Quando a chamo para ficar na casa da minha mãe, sua irmã três anos mais nova, ela diz que não pode deixar a família e me diz para não me preocupar porque "Deus proverá". É, eu sei, mas isso não impede a minha tristeza e a certeza que a cada um é destinada uma vida, apenas um tipo de vida e que nos seus mistérios deve haver algum propósito.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Bugol

  Nos idos dos anos 60, os Estados Unidos implementaram um programa de assistência aos países do terceiro mundo denominado de Aliança para o Progresso. Através dele, a população carente recebia alimentos para suprir as necessidades nutricionais, além de recursos financeiros para o desenvolvimento do estado, como casas populares, escolas. Dessa leva, em Natal se construíram o conjunto habitacional Cidade da Esperança e o Instituto de Educação Pte Kennedy, enquanto o navio Hope, ancorado no Porto na Ribeira, distribuía leite em pó e realizava tratamentos médicos e cirurgias que até então eram inacessíveis aos potiguares. O símbolo do programa era um aperto de mãos entre indivíduos, simbolicamente estadunidenses e latinos americanos. Os americanos não estavam preocupados altruisticamente em salvar populações da fome. Estavam muito mais interessados em fazer com que o comunismo não aportasse e conquistasse terrenos por essas bandas. Era o tempo da guerra fria, o mundo polari...

De amOR e de temPO

    Ainda quando estudava o antigo ginasial, uma professora de Português, interessada em que os alunos gostassem de ler e apreciassem os clássicos, passou como tarefa de avaliação uma redação sobre o texto  AMOR MENINO par te II do Sermão do Mandato – mas isso só soube muito depois já na faculdade - do Pe. Antonio Vieira. Agora, imaginem a dificuldade de adolescentes nos idos final dos anos 60 em cumprir essa tarefa. O que sabíamos do amor? Nada. Do tempo muito menos. O amor era em preto e branco nas fotonovelas que eu comprava no sebo na banca da feira livre, hábito também o das minhas amigas com quem trocava livros e revistas, caso contrário não leríamos nada. Apesar dessas imagens de amor, não lembro se as conversas já rondavam assuntos de namoro, casamento. Acho que não, pois éramos àquela época imaturas para tais assuntos. O universo ainda girava em volta de livros, estudar para provas, sorvetes, ouvir música e meninos não faziam parte do grupo. Aliás, eram olhados...

CONjugaSÓS

Eu te conheço tu me conheces nós nos desconhecemos. Eu te amo tu me amas nós nos sufocamos. Eu te confio tu me confias nós nos duvidamos. Eu te prometo tu me prometes nós nos esquecemos. (Imagem: Eros e Psiquê - Edward Munch. Galeria Mun. de Arte - Oslo)

E por falar em saudade...

Há exatamente 28 anos entrava numa sala de aula pela primeira vez. As aulas do estágio não contam; contam esses anos que vivi rodeada de alunos a quem pude realmente chamar de meus alunos. Como tudo que é novo, naquele dia tive medo. Não sabia o que encontraria e sentia que o aprendido na Universidade não seria bastante. Saber dá aula é completamente diferente do saber o que ensinar. Saber o que ensinar é indispensável, mas saber o como é uma aprendizagem que transcorre no decorrer do tempo, através dos acertos e dos erros cometidos. Na época eu sabia o que ensinar, não como deveria ensinar. As teorias aprendidas eram palavras e palavras que não se aplicavam ali à frente daquele mundo de alunos, que, independente das idades, têm como passatempo predileto tirar o juízo do professor. E se vai tentanto: o bonzinho não dá certo, porque eles levam na bagunça; o tirano não dá certo porque eles fazem de tudo para sair da sala e tirar, no dizer deles, !a moral" do professor. A medida cer...

SuSSuRRo

  A   mão corta a escuridão do quarto no afastar da cortina. A luz do poste lança sombras na parede. Sobre a cama uma indumentária de cigana a contempla. Não sabe como chegara ali.  Sonho.  Como sempre o relógio a acorda às 7 horas. E como de costume, pula da cama, termina de acordar sob o chuveiro, veste-se apressada, come alguma coisa, toma duas xícaras de café para acordar e sai. Não mais que 40 minutos se passara. Faz a maquiagem entre uma parada e outro nos sinais. Sons de buzina, freadas colaboram para o seu despertar. Depois de 40 minutos entre carros, 20 minutos dando voltas no quarteirão em busca de uma vaga, estaciona, desce do carro, bate a porta e caminha em direção ao prédio. Ao atravessar a rua, percebe que está sem bolsa. Assustada, pensa que foi assaltada, mas se dá conta que mal saíra do carro. Sem bolsa, o pensamento pula para a chave. Onde deixara? Dentro da bolsa, dentro do carro. Retorna. Porta destravada, pois a chave ficara na bolsa. No banco...

Miolo de quartinha e carga d'água

Não adianta. Não adianta colocar os dedos sobre o teclado e fazer um download que me leve à inspiração quando os acontecimentos me travam para o escrever e preencher o espaço do blog esta semana. Já pensei numa série de coisas, fictícias ou reais, e nada. Já li alguns jornais em busca de uma notícia que merecesse um comentário e nada. E olha que encontrei um bocado de coisa: no Paraná, um cinegrafista morreu atropelado por um avião. O rapaz de apenas 26 anos, olhando pela angular da câmera, não percebeu que o avião estava verdadeiramente próximo e sofreu o impacto fatal. Um marinheiro russo, servindo em um submarino, foi preso porque plantou maconha em uns jarrinhos perto da escotilha e estava "abastecendo" os colegas (isso sim é que visão capitalista!); o estilista famoso da Luciana Giminez, Ronaldo não sei das quantas, foi preso no cemitério roubando dois vasos de flores. Ele se explicou cientificamente: disse que estava tomando um remédio antidepressivo que o fazia comete...