sexta-feira, julho 25

Fingimento

Quando Tonha resolveu namorar Quincas às escondidas, resolveu também que teria de encontrar uma forma de se comunicar com o namorado sem que as pessoas de casa, principalmente o pai, descobrissem. Não adiantava falar com Quincas sobre qual maneira seria a melhor, porque pra ele o melhor era fugir e acabar logo com essa estória. O pai dela pensava o quê, que ele era um cabra safado querendo a riqueza dele? Ele ia mostrar muito bem do que era capaz.
A melhor maneira de passar uma rasteira nos de casa era fingir-se de triste por ter sido obrigada a acabar o namoro, deixar até de comer. Nem mesmo em Lucinda, a irmã mais velha, poderia confiar. Diabo que só vivia pra xeretar a vida dos outros em vez de arranjar uma costela para casar logo, deixando o caminho livre. Mas quem, quem iria aturar aquele demônio feito cobra? Os de casa só agüentavam por obrigação, imagine um homem pra casar! Encalhada, Tonha sabe que não tinha jeito e o melhor seria se concentrar no próprio problema.
O códg precisv ser siples porq Quincas mal sab le com tods as ltras, com algma troc aí q iria se atrpalhr. Pesou em fzer u cdig utilzando só as consoates, ms viu q fcav mt difcl, precisav ter mt cabç. Desitiu ds consoates e fico imagnado q só de vogas tmbm não dara cert. Mistra letras e númros seria trbalho em dobo, já q precsari atrbur a cad letr um númro. Diacho! Precisava encontrar uma solução.
Enquanto o código não ficava certo, continuava com os encontros às escondidas. Depois da aula sempre dizia à mãe que ia à biblioteca da Prefeitura e lá entre as estantes conversava menos e beijava mais, os corações aos pulos não tanto pela paixão, mas sim pelo medo de serem surpreendidos. A insistência de Quincas em falar com o doutor Severo fazia Tonha tremer. Bem sabia do que o pai era capaz. O nome de doutor era só enfeite daquele povo temeroso do seu dinheiro e de suas posses de terras.
Continuava se fingindo de triste. O corpo de magro não precisava fingir, já fino de tanta tristeza fingida e fome com mesa farta. A mãe aumentou a reclamação, agora porque tinha que consertar pano, o corpo dançando nas roupas de tanta magreza. Até Quincas reclamou que ela tava exagerando. Será que não dava pra comer um tanto mais e ser triste só por fora? Não, não dava. Tonha queria convencer que tinha acabado o namoro com Quincas e todos deveriam acreditar que a triste magreza era real.
Os passeios à biblioteca ao encontro de Quincas começaram a rarear, pois Tonha acordava cansada e mal assistia às aulas, pensando naquela rede largada no alpendre de casa. Era uma delícia ir-se no balanço, espiar os bichos indo e vindo, o sol derriando a luz lá pra trás do rio, visto só em uma nesga ao longe. Levantava pouco e o que mais comia era água, descendo fresca garganta abaixo. Tinha preguiça de mastigar e além de água, só comia papa, sopinha, leite, comida de gente triste. Ia mostrar ao pai que o melhor era consentir no namoro, se não quisesse vê-la defunta. As aulas não tinham mais importância, a biblioteca da Prefeitura começou a ser muito longe.
Vendo a hora Tonha morrer, Quincas resolveu falar com o doutor Severo. Pegou o cavalo e foi encontrar o homem lá no cercado onde as reses eram marcadas a ferro. Aproximando-se, o que primeiro viu foi a arma na cintura do empregado posto ao lado do dono. Com o chapéu na mão e a uma distância maior que o braço de Seu Severo, Quincas contou o que estava acontecendo. As últimas palavras o doutor Severo nem ouviu, correndo para o cavalo, galopando de volta pra casa.
Puxando as rédeas rudemente, Seu Severo pulou e da beira da rede gritou pra Tonha deixar de palhaçada, pois ele já sabia que aquilo tudo era fingimento, que não adiantava aquela encenação, porque com aquele safado do Quincas ela não casaria, agora mais do que nunca. Onde já se vira fingir-se de triste, deixar quase de comer por causa de um moleque daqueles! E trate logo de se levantar dessa rede se não eu mesmo corto os punhos, jogando você no chão pra acabar de vez com isso.
Tonha, acolhida pela rede, mal ouvia o pai, não entendia o porquê dos gritos, ela num tava obedecendo suas ordens de não namorar o Quincas, então pra que isso? Não queria se levantar, queria só beber água e olhar aquele sol.
Parado logo atrás do pai de Tonha, Quincas viu o que os gritos não deixavam o doutor Severo vê: Tonha não tinha mais forças, a tristeza tomara de conta e pra ela não era mais um fingimento. Tonha morria de verdade.

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