Pular para o conteúdo principal

EsPElhO EspeLHo meU

A faca desliza sem estranhamento. Um filete de sangue escorre, descobrindo a falta de realeza no vermelho que cai. Um impulso mais forte atravessa a pele causando um pequeno estremecimento. Não dor, um roçar mais quente. Acostumada, não se importa. Enfinca a ponta da faca, fazendo um semi-arco no braço, deixando um risco de sangue viscoso a escorrer. O alvor do pano se escurece no enxugar. Normal. Nada para ela é estranho.

Ninguém conhece esses traços que se misturam às veias das coxas, aos músculos das costas, às glândulas dos seios. Nua nunca se postara a ninguém, médico, amante. Só ao espelho se dá. E por causa dele começara a se lanhar em desespero à imagem refletida. Naquela hora aprendera a odiar seu corpo.

Não adiantava os vestidos moldados com desvelo que a mãe insistia em meter-lhe corpo afora. A lingerie comprada em grandes lojas, tecido que amaciava as mãos e punha-lhe fogo. Vestia obrigada e amuava-se calada e hirta na cadeira da sala à vista de todos. O silêncio lhe roendo por dentro, na cabeça de todos uma doida. De que adiantavam aqueles panos, se a carne era má e feia? Pra que tudo se a danação vivia dentro dela, forçando léguas? Des tá, dizia pra si, um dia verão!

A promessa nem mesmo lhe tinha sentido, pois não sabia o que fazer para descontar a raiva que lhe impregnava o viver. Olhar-se era o que lhe restava. A imagem era de um mar sem fim, o espelho parecia entronchar a moldura, querendo da parede se esvair. Se tivesse coragem, punha-se nua à frente de um médico pedindo que lhe arrancasse o excesso, deixando-a fina. A vergonha, no entanto, não lhe permite tal ousadia.

A casa se tornara um claustro. Há tempo deixara a escola, os encontros com as amigas. Contato só telefônico, mesmo assim com poucos. Como se mostrar larga ao ponto de mal caber numa cadeira? A imagem que via era grotesca, puxada por um guindaste para subir num ônibus, em automóvel qualquer, vítima de risos, olhares de repulsa, alguns até de pena.

Percebe que aos poucos uma inquietação se apodera da mãe. Olhares dissimulados, gavetas remexidas, sinais de uma vigilância disfarçada. Não se incomoda. Aprendera a esconder os sinais. Confiante, sabe que a mãe não lhe descobrirá os esconderijos onde seus utensílios de tortura são guardados, onde seus líquidos viscosos em fel são enterrados.

É preciso ter cuidado com o comer. Não pode se deixar convencer pela mãe que reclama da comida de pinto que jaz no prato. Todos os dias a cantilena à mesa lhe martela a necessidade de se alimentar bem, de se exercitar, que ela não está Moby Dick. Sabe de tudo isso, mas sucumbir àquele pudim é deixar mais disforme a imagem no espelho, é riscar mais sangue no corpo que a custo se mantém sobre os pés.

Aos poucos um cansaço toma conta de seu corpo, as pernas com vida própria se negam ao movimento, deixando-a prostrada na maior parte do tempo. Recusa o suco, o remédio, nega-se ao médico. Alucinações lhe atormentam e aos gritos pede para que retirem do quarto o espelho, onde se vê com tantas longitudes.

Alarmada ao ver os lanhos no corpo da filha, a mãe não compreende. O primeiro pensamento é de culpa pela cegueira em não ver o quanto a filha sofria. Na tentativa de remediar o que já parece definitivo, chama o médico. Basta um olhar para que o doutor se transforme em juiz decretando um fim. O espelho ainda no quarto atesta um corpo ludibriado pela ilusão de ser vasto, quando na cama repousa somente pele, ossos à vista.

Comentários

Fred Matos disse…
Um ótimo texto que retrata uma realidade cada dia mais corriqueira: uma doença mental, sim, mas que decorre de uma doença social se culto à magreza, de culto às aparências em detrimento da essência. Sim, é um ótimo conto.
Parabéns!
Que achado , desobrir seu blog!
excelente leitura.
um achado seu blog,
excelente texto...

Postagens mais visitadas deste blog

Bugol

  Nos idos dos anos 60, os Estados Unidos implementaram um programa de assistência aos países do terceiro mundo denominado de Aliança para o Progresso. Através dele, a população carente recebia alimentos para suprir as necessidades nutricionais, além de recursos financeiros para o desenvolvimento do estado, como casas populares, escolas. Dessa leva, em Natal se construíram o conjunto habitacional Cidade da Esperança e o Instituto de Educação Pte Kennedy, enquanto o navio Hope, ancorado no Porto na Ribeira, distribuía leite em pó e realizava tratamentos médicos e cirurgias que até então eram inacessíveis aos potiguares. O símbolo do programa era um aperto de mãos entre indivíduos, simbolicamente estadunidenses e latinos americanos. Os americanos não estavam preocupados altruisticamente em salvar populações da fome. Estavam muito mais interessados em fazer com que o comunismo não aportasse e conquistasse terrenos por essas bandas. Era o tempo da guerra fria, o mundo polari...

De amOR e de temPO

    Ainda quando estudava o antigo ginasial, uma professora de Português, interessada em que os alunos gostassem de ler e apreciassem os clássicos, passou como tarefa de avaliação uma redação sobre o texto  AMOR MENINO par te II do Sermão do Mandato – mas isso só soube muito depois já na faculdade - do Pe. Antonio Vieira. Agora, imaginem a dificuldade de adolescentes nos idos final dos anos 60 em cumprir essa tarefa. O que sabíamos do amor? Nada. Do tempo muito menos. O amor era em preto e branco nas fotonovelas que eu comprava no sebo na banca da feira livre, hábito também o das minhas amigas com quem trocava livros e revistas, caso contrário não leríamos nada. Apesar dessas imagens de amor, não lembro se as conversas já rondavam assuntos de namoro, casamento. Acho que não, pois éramos àquela época imaturas para tais assuntos. O universo ainda girava em volta de livros, estudar para provas, sorvetes, ouvir música e meninos não faziam parte do grupo. Aliás, eram olhados...

Êh, vida de gado!

Não sei a quantos anos li A Face Oculta de Eva, livro da egípcia Nawal El Saadawi , que falava sobre a situação feminina na Índia, no Egito e em alguns países africanos, principalmente à operação para que das mulheres fosse negado o prazer sexual através da mutilação do clitóris. Prática ainda hoje em voga apesar de tanto conhecimento, tecnologia e da eficiente medicina do nosso tão exaltado século XXI . O livro foi editado no início dos anos 70 e devo ter lido na mesma década. E já naqueles anos fiquei indignada por tal prática acontecer com a decantada liberação feminina em efervescência. No início desse ano li Uma Distância entre nós, da jornalista indiana Thrity Umrigar e, por razões só um pouquinho diferentes, também fiquei indignada. Neste não há mulher sendo mutilada, mas o poder do macho é alarmantemente respeitado, esteja sua conduta certa ou errada. Para completar, li hoje (lá no salão, que é onde encontramos revistas vencidas e completamente dispensáveis) na revista Elle ...

CriAnÇa teM caDa Uma

Ontem em almoço com familiares, minha mãe relembrava a vez que o neto prendera a cabeça entre um cano de orelhão e a parede. Nem ele nem ela lembraram que idade ele tinha, mas ela lembrava como torceu e torceu a cabeça dele para sair daquele sufoco – literal pode se dizer! – e que já estava pensando em chamar o bombeiro para serrar o cano. Nas festas natalinas do ano passado, a filha de uma amiga de uma amiga, sentou-se no colo de Papai Noel lá no Midway e pediu uma bicicleta. O Papai Noel, sem saber das intenções da mãe – principalmente suas condições financeiras – disse para a garota de três anos que talvez ela não ganhasse o que estava pedindo, porque ele tinha muitos pedidos para atender, mas que ela não ficasse triste. Ela ganharia algo, mas ele não tinha certeza que seria uma bicicleta. A garota ouviu, não disse nada, levantou-se e caminhou em direção à mãe. A uma boa distância do Papai Noel virou-se e mandou: - Papai Noel, se você não mandar minha bicicleta, você tá fudido!!! ...

Ecce Homo

  Uma das passagens bíblicas mais conhecida, mesmo pelos que não professam a fé cristã, é a atitude de Pilatos em não assumir a liberdade de Jesus, preferindo entregar essa decisão ao povo, (difundido a expressão latina ecce homo – Eis o Homem) mesmo sabendo que Barrabás tinha crimes comprovados, enquanto Jesus, não. Não ter a coragem de decidir, pondo em risco sua posição diante dos superiores romanos, como também o medo da reação dos que apoiavam Jesus, preferindo demagogicamente levar o povo a acreditar que tinha o poder de decisão, o  fato é um exemplo poderoso do que a omissão, a fraqueza de uma pessoa pode provocar. Pilatos usou da tradição de se soltar um prisioneiro judeu no período que antecedia a páscoa, achou que o povo escolheria o criminoso confesso, ele ficando, portanto, bem com qualquer que fosse a decisão: cumpriria a lei condenando um criminoso, soltaria um inocente. Contrariando as expectativas de Pilatos, o povo decide por Barrabás, condenando Jesus. ...

SuSSuRRo

  A   mão corta a escuridão do quarto no afastar da cortina. A luz do poste lança sombras na parede. Sobre a cama uma indumentária de cigana a contempla. Não sabe como chegara ali.  Sonho.  Como sempre o relógio a acorda às 7 horas. E como de costume, pula da cama, termina de acordar sob o chuveiro, veste-se apressada, come alguma coisa, toma duas xícaras de café para acordar e sai. Não mais que 40 minutos se passara. Faz a maquiagem entre uma parada e outro nos sinais. Sons de buzina, freadas colaboram para o seu despertar. Depois de 40 minutos entre carros, 20 minutos dando voltas no quarteirão em busca de uma vaga, estaciona, desce do carro, bate a porta e caminha em direção ao prédio. Ao atravessar a rua, percebe que está sem bolsa. Assustada, pensa que foi assaltada, mas se dá conta que mal saíra do carro. Sem bolsa, o pensamento pula para a chave. Onde deixara? Dentro da bolsa, dentro do carro. Retorna. Porta destravada, pois a chave ficara na bolsa. No banco...