sábado, janeiro 26

Caso de verão

A areia quente da praia não permite um andar vagaroso. A falta de firmeza a impede de correr. Às 8 da manhã já percorria a orla indo e vindo e até agora muitos nãos. Meio dia, a hora mais adequada para que consiga o que quer. Caso não se arranje até as três horas, o jeito será desistir, dobrando-se cansada, guardando-se para amanhã.
Nessa época a cidade é um amontoado pelas praias, pelas ruas. Os bares cheios a toda hora, carros tomando ruas e calçadas. Os bares não têm o que procura, nem mesmo aqueles à beira-mar, não querem o que está oferecendo. Nas ruas não encontra pretensa companhia, mesmo com tanta gente. O melhor lugar é a praia. Como há muitas, tem que escolher a cada dia aonde vai, pois o dinheiro não dá para pegar condução de uma zona a outra da cidade. Quando escolhe o litoral - sul ou norte - percorre todas as praias à beira d'água, molhando-se em parte, o que a deixa pesada, quase se arrastando pela areia.
Todo o verão vive isso. Teimosamente resiste contrária às opiniões que lhe dizem para não insistir nesse tipo de oferta, que não vai encontrar quem a queira. No inverno, talvez, quem sabe. Não escuta. Sempre foi teimosa e não foi feita para ficar à toa, sozinha sem par. Alguém há de querê-la. Afinal, não dizem que não falta uma bota para um pé inchado? Então! Também lhe avisam do perigo que corre se oferecendo por aí. Perigo até de doença que deixa manchas, que mata. Ela se protege e também a quem com ela está, não é boba.
Não pode viver do tanque para o varal como se não houvesse um corpo com quem a vida partilhar. Admite que não seja mais vistosa, já tenha seus próprios vincos, marcas de tanto uso. É considerada velha, mas ainda serve, tem gente que daria tudo para tê-la. A essa gente não procura, é orgulhosa, não quer ficar colada o tempo todo em alguém que mal se sustenta de pé. Quer pelo menos um ar apresentável, sabendo que será usada, como sempre o foi, não conhece forma diferente e até a isso se acostumara. Melhor isso a ser deixada de lado.
Às vezes pensa em sair da cidade que é do sol o ano inteiro, morar num lugar mais frio. Aí pensa que teria outro problema, não foi feita para tanto frio, quase raquítica, pele azulada de veias amostras. O orgulho mais uma vez lhe atravessa o caminho, pois sabe que não conseguiria viver escondida sob casacos de pele, longos sobretudos, cachecóis vistosos brilhando mais do que ela. Nem olhariam para ela e isso ela não suportaria.
Cansada, resolve arriscar uma vez mais. Se nada conseguir, vai embora e quem sabe amanhã. Aproxima-se de um grupo sentado na areia. Timidamente, oferece-se. O espanto de todos já lhe diz o não. Insiste, não adianta. De tão espantados, nada falam. Um entre o grupo arrisca a dizer o que ela já sabe, como sabe que o verão inteiro ouvirá a mesma resposta:
- Tá doida? Nem pensar em ficar com você! A última coisa que a gente quer agora é uma calça!

sábado, janeiro 19

Represa

Quando Isaura enlouqueceu, todos se surpreenderam. Nada em seu comportamento prenunciava a escuridão. Eles não sabiam que se enlouquece sem alarde, sem deixar rastros nas calçadas, sem gritar em amplificadores. Eles não sabiam que se enlouquece nas sombras.
A camisola sobre a cabeça joga Isaura na normalidade construída cuidadosamente diante do espelho. Água no corpo, roupa limpa, desenhada no rosto a fantasia de há muito. O cheiro do café invade os cômodos ecoando os gritos de quem já se foi. Na imensa casa, apenas a mãe, ela e os empregados. Três: algoz, vítima, testemunhas; cozinheira, arrumadeira, jardineiro. Pagos pelos irmãos como paga a quem restou. Não é mais do que isto, não há ali mais do que isto: restos.
Espremida entre os mais velhos e os mais jovens, foi ficando quando as despedidas se tornaram comuns. No quarto antes dividido com duas irmãs foi sobrando espaço preenchido com livros, papéis, caixas, um velho baú herdado da avó. À chave guardava ali o seu pranto, seu canto tal disco arranhado na vitrola.
Depois de tanto, ainda lembra de Joel com quem ia se casar virgem de tudo como boa cristã. Filho bem nascido, herdeiro de terra e gado, bom partido não se podia negar. O pai ainda vivo ficara todo prosa com a sorte da filha. A mãe, nem tanto. Pra que casar tão cedo, antes das irmãs nem pensar, tinha que esperar. E as irmãs, nada. Parecia de propósito. Durante três anos esperou; no quarto Joel desistiu, namorando, casando em seis meses com a filha do Seu Gabriel. Depois, nem demorou e as irmãs apareceram com namorados, casando as duas no mesmo dia para economizar nas festas.
De propósito sabe que as irmãs fizeram. De propósito, começou a se encontrar às escondidas com Joel. Não importava ser boa cristã. De encontro em encontro vivia o amor que a mãe impôs adiar. Era a outra na vida de Joel, não se importava. Cuidava de tudo em casa, mãe, pai doente, definhando até o fim, deixando terra perdida, gado morto. Com a morte do pai, arrendaram as terras, mudaram-se para a rua da igreja numa casa grande de onde via os casamentos, batizados e funerais. Guardava tudo no baú, até o adeus de Joel partindo para a capital com a família.
Desacostumada a ilusões, Isaura começou a riscar os braços na ponta da faca. A água recolhida na bacia engrossava de sal na ardência do corpo na hora do banho. Os livros apareciam cortados sem que ninguém soubesse como e o quê deles era arrancado. A réstia de alho amanhecia torcida, cabeças mordidas. O relógio amanhecia de ponta cabeça, o velho cuco pintado de carvão.
A luz do sol encontrava Isaura de braços cobertos pronta para os afazeres. Sob intenso calor, fazia longas tranças no negro cabelo. Atendia a mãe que em sua realeza considerava inferior falar com empregada. Ao pedido que fizera para lecionar na escola da fazenda, recebera não, filha dela não trabalha, tampouco fica de andança por aí. Calada, Isaura fervia tal água em ebulição represada em chaleira. Nas poucas horas longe, viajava nos livros que escondido da mãe encomendava na livraria de seu Miguel, entregues no balaio no meio das verduras.
Numa noite de agonia cortou o cabelo a tesouradas cegas, embrulhando-o num lençol branco amarfanhando-se no baú. Além dos braços cobertos, o sol apresentava Isaura de turbante na cabeça. Para o povo, esquisitice de moça velha sem homem. A ela não importava os falatórios, seu tempo já passara. Organizava tudo em casa, nada faltava. Remédios na hora certa, comida, roupa lavada, imaculado tudo. Mantinha o visível sob controle. À noite revirava.
Numa manhã de inverno, estranhou a luz e saiu do quarto com os sapatos nas mãos vestida de noiva, gritando para que Joel a esperasse. Ela não demoraria, era só o tempo de pegar o baú. Na claridade, os empregados viram os braços lanhados, o cabelo tosado. Isaura chamava por Joel, abrindo-lhe os braços ali na porta, indiferente aos apelos que tentavam levá-la de volta ao quarto. Sentada à mesa, a mãe via e gritava com a filha desavergonhada, perdida. Isaura, num gesto rápido, livrou-se da mão da empregada, virou-se pra mãe e gritou-lhe toda a raiva guardada. Calçando os sapatos, saiu de porta afora ao encontro de Joel que no sonho lhe avisara a hora de chegar.