Pular para o conteúdo principal

SoNHo de Ícaro





Na mitologia grega, o céu era a morada dos deuses, sendo inalcançável aos pobres mortais. Na ânsia de fugir do labirinto na Ilha de Creta, Dédalo cola penas dos pássaros nas asas que construiu e instrui seu filho Ícaro a não subir muito, pois o sol derreteria a cera, tampouco ficar muito junto ao mar, a umidade faria as asas pesarem demais. Empolgado pelo prazer de voar, Ícaro não ouve o pai e cai, morrendo. Manifestava-se ali o desejo do homem de ser sempre mais, ir além dos seus próprios limites.
Por desobediência, Ícaro estatela-se no chão. Por desobediência, Adão e Eva são expulsos do Paraíso, pois não lhes bastara aquele conhecimento dado por Deus e ao querer mais provaram da árvore do conhecimento e se deram mal (nunca entendi porque uma maça, fruta insípida - linda, é verdade, mas sem gosto - poderia ter sido uma deliciosa jaca ou uma manga!).
Assim, da mitologia à crença cristã, caminha a humanidade sempre à procura de algo mais, seguindo na superação dos seus limites. Voar no sentido real há muito deixou de ser encarado como possível, porque a ciência de Santos Dumont à Apolo XI já mostrou que ao homem só será dado voar através de um meio de transporte, seja avião, aeronave, ônibus espacial. Entretanto, no sentido simbólico, despendemos muita energia treinando vôos.
A propósito de vôos e desobediência tenho três coisas a dizer:
1. É preciso desobedecer, transgredir. Caso contrário, ficaremos estagnados caminhando sob uma reta que nem sempre será atraente e motivacional o suficiente para nos provocar uma mudança, o alcance de novas metas, pois "todos nós deparamos com lugares que se tornam estreitos em determinado momento. Estes lugares, que outrora serviram para nosso desenvolvimento e crescimento, se tornam apertados e limitadores" (A alma Imoral, Nilton Bonder). Essa movimentação para a mudança traz inquietação, medo, mas é interessante observar o quanto tememos o que vai acontecer, achando-nos incapazes do novo, do diferente, sem que tenhamos dado um passo sequer, visto que "o maior inimigo é que está dentro de nós. É o subversivo capaz de estragar a festa..." (Bonder). Na caminhada, de repente percebemos que já demos os passos mais difíceis, que não morremos, que o novo caminho se torna conhecido, e que dentro de nós nova força vital brota impulsionando-nos. É de pessoas que desobedecem - que não temem as leis que lhe dizem não, a cultura que lhes diz vocês não podem, não devem, não têm mais idade - que o mundo é feito e continua girando.
2. O ato de desobedecer só tem sentido se intimamente ligado a vôos, porque não adianta desobedecer e ficar no chão. É preciso alicerçar a alma para que ela imponha à pessoa um enfrentamento tendo em vista uma barreira intransponível que só será superada com verdadeiros vôos, uma nova confiança, e é "esse profundo ato de confiança em si e no processo da vida (que) garante a passagem pelo vazio que magicamente se concretiza em chão sob nossos pés. O que não existia passa a existir e um novo lugar amplo se faz acessível" (Bonder). Voar é concretizar, fazer valer o ato da desobediência, é criar asas onde antes não era possível, é saber-se capaz, saber que a qualidade de vida e a possibilidade de continuidade só são viáveis se ousarmos alterar aquilo que nos dizem como verdades absolutas.
3. Desobediência e vôo. Por acreditarem que suas razões eram as certas, por transgredirem a lei que lhes dizia que nada mais poderia ser feito, que deveriam se recolher ao crochê feito em suas salas de estar e não na porta do governo, por acreditarem que precisavam voar em busca de um sonho, foi que as tricoteiras de Porto Alegre subiram naquele avião. O vôo não era apenas uma viagem a Brasília, não era um mero protesto para se ganhar uns mil reais a mais, não era uma viagem turística programada para os da terceira idade. Era uma transgressão à crítica de que senhoras com mais de 70 anos devem cuidar somente dos netos, era a alma em efervescência dizendo-lhes para tirar o pé do chão, não sucumbirem à resignação, era o lugar comum ir à luta! O vôo não era o andar de avião, vencendo o medo, os problemas de saúde que porventura tivessem. Era o vôo do renovar de esperanças, era mais um ato de vida. A elas de nada adiantarão as discussões sobre as causas do acidente. Nem mesmo nossa solidariedade será de grande valia e o que devemos é reconhecer que "há justos que, tão logo tenham cumprido a tarefa de suas vidas neste mundo, são chamados a abandoná-lo. Porém há os justos que, no momento em que concluem sua tarefa neste mundo, recebem uma nova tarefa e vivem até sua realização" (...) A nova tarefa que estende a existência e gera uma sobrevida é a capacidade de reorientar-se na vida. Dar a volta e encontrar novas tarefas, novos "bons", é receber nova força vital. É através da alma que essas novas tarefas se fazem conhecidas. Quem tem coragem de bancá-las não conhece a depressão" (Bonder).



Durante a vida, elas tiveram muitas vezes a renovação de tarefas, reorientaram-se muitas vezes na vida. A elas, o respeito de todos nós.

Comentários

Anônimo disse…
Oi! Finalmente consegui conhecer o seu blog. Muito bonito. Parabéns pelos textos. Coisas da alma e das reflexões.Eu gostaria de dizer que a maçã não é a fruta bíblica que caracteriza a desobediência de Adão e Eva. Isto é da cultura popular. Biblicamente não encontramos uma fruta como nome, no capítulo de Gênesis.
Abraços
Neto
Anônimo disse…
Post emocionante nesta página, opiniôes assim dão valor aos que observar neste espaço :)
Dá mais do teu espaço, aos teus leitores.

Postagens mais visitadas deste blog

Bugol

  Nos idos dos anos 60, os Estados Unidos implementaram um programa de assistência aos países do terceiro mundo denominado de Aliança para o Progresso. Através dele, a população carente recebia alimentos para suprir as necessidades nutricionais, além de recursos financeiros para o desenvolvimento do estado, como casas populares, escolas. Dessa leva, em Natal se construíram o conjunto habitacional Cidade da Esperança e o Instituto de Educação Pte Kennedy, enquanto o navio Hope, ancorado no Porto na Ribeira, distribuía leite em pó e realizava tratamentos médicos e cirurgias que até então eram inacessíveis aos potiguares. O símbolo do programa era um aperto de mãos entre indivíduos, simbolicamente estadunidenses e latinos americanos. Os americanos não estavam preocupados altruisticamente em salvar populações da fome. Estavam muito mais interessados em fazer com que o comunismo não aportasse e conquistasse terrenos por essas bandas. Era o tempo da guerra fria, o mundo polari...

De amOR e de temPO

    Ainda quando estudava o antigo ginasial, uma professora de Português, interessada em que os alunos gostassem de ler e apreciassem os clássicos, passou como tarefa de avaliação uma redação sobre o texto  AMOR MENINO par te II do Sermão do Mandato – mas isso só soube muito depois já na faculdade - do Pe. Antonio Vieira. Agora, imaginem a dificuldade de adolescentes nos idos final dos anos 60 em cumprir essa tarefa. O que sabíamos do amor? Nada. Do tempo muito menos. O amor era em preto e branco nas fotonovelas que eu comprava no sebo na banca da feira livre, hábito também o das minhas amigas com quem trocava livros e revistas, caso contrário não leríamos nada. Apesar dessas imagens de amor, não lembro se as conversas já rondavam assuntos de namoro, casamento. Acho que não, pois éramos àquela época imaturas para tais assuntos. O universo ainda girava em volta de livros, estudar para provas, sorvetes, ouvir música e meninos não faziam parte do grupo. Aliás, eram olhados...

CONjugaSÓS

Eu te conheço tu me conheces nós nos desconhecemos. Eu te amo tu me amas nós nos sufocamos. Eu te confio tu me confias nós nos duvidamos. Eu te prometo tu me prometes nós nos esquecemos. (Imagem: Eros e Psiquê - Edward Munch. Galeria Mun. de Arte - Oslo)

E por falar em saudade...

Há exatamente 28 anos entrava numa sala de aula pela primeira vez. As aulas do estágio não contam; contam esses anos que vivi rodeada de alunos a quem pude realmente chamar de meus alunos. Como tudo que é novo, naquele dia tive medo. Não sabia o que encontraria e sentia que o aprendido na Universidade não seria bastante. Saber dá aula é completamente diferente do saber o que ensinar. Saber o que ensinar é indispensável, mas saber o como é uma aprendizagem que transcorre no decorrer do tempo, através dos acertos e dos erros cometidos. Na época eu sabia o que ensinar, não como deveria ensinar. As teorias aprendidas eram palavras e palavras que não se aplicavam ali à frente daquele mundo de alunos, que, independente das idades, têm como passatempo predileto tirar o juízo do professor. E se vai tentanto: o bonzinho não dá certo, porque eles levam na bagunça; o tirano não dá certo porque eles fazem de tudo para sair da sala e tirar, no dizer deles, !a moral" do professor. A medida cer...

SuSSuRRo

  A   mão corta a escuridão do quarto no afastar da cortina. A luz do poste lança sombras na parede. Sobre a cama uma indumentária de cigana a contempla. Não sabe como chegara ali.  Sonho.  Como sempre o relógio a acorda às 7 horas. E como de costume, pula da cama, termina de acordar sob o chuveiro, veste-se apressada, come alguma coisa, toma duas xícaras de café para acordar e sai. Não mais que 40 minutos se passara. Faz a maquiagem entre uma parada e outro nos sinais. Sons de buzina, freadas colaboram para o seu despertar. Depois de 40 minutos entre carros, 20 minutos dando voltas no quarteirão em busca de uma vaga, estaciona, desce do carro, bate a porta e caminha em direção ao prédio. Ao atravessar a rua, percebe que está sem bolsa. Assustada, pensa que foi assaltada, mas se dá conta que mal saíra do carro. Sem bolsa, o pensamento pula para a chave. Onde deixara? Dentro da bolsa, dentro do carro. Retorna. Porta destravada, pois a chave ficara na bolsa. No banco...

Miolo de quartinha e carga d'água

Não adianta. Não adianta colocar os dedos sobre o teclado e fazer um download que me leve à inspiração quando os acontecimentos me travam para o escrever e preencher o espaço do blog esta semana. Já pensei numa série de coisas, fictícias ou reais, e nada. Já li alguns jornais em busca de uma notícia que merecesse um comentário e nada. E olha que encontrei um bocado de coisa: no Paraná, um cinegrafista morreu atropelado por um avião. O rapaz de apenas 26 anos, olhando pela angular da câmera, não percebeu que o avião estava verdadeiramente próximo e sofreu o impacto fatal. Um marinheiro russo, servindo em um submarino, foi preso porque plantou maconha em uns jarrinhos perto da escotilha e estava "abastecendo" os colegas (isso sim é que visão capitalista!); o estilista famoso da Luciana Giminez, Ronaldo não sei das quantas, foi preso no cemitério roubando dois vasos de flores. Ele se explicou cientificamente: disse que estava tomando um remédio antidepressivo que o fazia comete...