sexta-feira, abril 13

Ave, Clarice!

"O que me descontrai, por incrível que pareça, é pintar. Sem ser pintora de forma alguma, e sem aprender nenhuma técnica. Pinto tão mal que dá gosto e não mostro meus, entre aspas, quadros, a ninguém. É relaxante e ao mesmo tempo excitante mexer com cores e formas sem compromisso com coisa alguma. É a coisa mais pura que faço (...) Acho que o processo criador de um pintor e do escritor são da mesma fonte. O texto deve se exprimir através de imagens e as imagens são feitas de luz, cores, figuras, perspectivas, volumes, sensações." CLARICE LISPECTOR.


Abaixo, quadro denominado LUTA SANGRENTA PELA PAZ, pintado pela escritora em 1975.







Fui apresentada ao mundo de Clarice Lispector por uma professora ainda quando estava na faculdade. E nunca me esqueci do conto "Tentação", cujo primeiro parágrafo diz: "Ela estava com soluço. E como se não bastasse a claridade das duas horas, ela era ruiva". O conto narra a solidão de uma garota sentada desolada num degrau e vê em um cachorro que se aproxima a "sua outra metade". Comprometidos ambos, separam-se e ela "debruçada sobre a bolsa e os joelhos" o vê partir. Ali estava toda a solidão, a angústia de uma separação inevitável! E o que me impressionou no conto me maravilha até hoje na escritora: a capacidade de clara e concisamente traduzir a alma humana, transformar em puro lirismo fatos corriqueiros muitas vezes impercebíveis!
Somente depois é que o dinheiro deu para comprar alguns de seus livros que ainda estão comigo. Um deles, "Um Sopro de Vida", exaustivamente grifado, anotado, indignada às vezes; na maioria, maravilhada.
Eis que agora, uma amiga virtual mais do que real, proporciona-me novo encontro com Clarice e lá vou eu feito louca apaixonando-me novamente, eu que jurara don't fall in love again!

Clarice, ao lado de Cecília Meireles, é uma das escritoras que me pega naquilo que tenho de mais íntimo e freudiano. As duas escreveram com alma, consideraram o ato de escrever uma pulsão incontrolável, embora a própria Clarice tenha afirmado que só escrevia quando queria, pois se considerava uma amadora e fazia "questão de continuar a ser, (pois) profissional é aquele que tem uma obrigação consigo mesmo de escrever, ou então em relação ao outro. Agora, eu faço questão de não ser profissional, para manter minha liberdade." Possivelmente, as duas faziam do não escrever um escrever tão pleno, desnudando-se tanto, conhecedoras de todas as aflições, solidões, certezas e incertezas da vida, daquele cerne que a todos nós é imutável, mesmo que vistamos máscaras e roupagens diferentes, sabiam que "por mais que se ande, é certo:/-não se encontra o bem perfeito./Vai nascendo só deserto/pelo peito./E entre o desejado e o aceito/dorme um horizonte encoberto." (Cecília Meireles).
No livro enviado pela paulimineibaiana Lucila (que me perdoe o neologismo) estão as crônicas publicadas no Jornal do Brasil. Algumas bem conhecidas, como a que fala da colega que "possuía o que qualquer criança gostaria de ter: um pai dono de livraria" e todo o tormento sofrido para ler emprestado o livro As reinações de Narizinho; a que conta sua paixão em roubar rosas; o que era sair de madrugada para tomar banho de mar em Olinda, como também a tristeza que mascarou o carnaval, quando toda fantasiada teve que ir à farmácia comprar remédio para a mãe doente, perdendo dentro de si o sabor da festa. É terno – embora quase hilário - vê-la contar seu desencanto na eternidade perdida num chiclete!
Penetrar no universo lispecteano para alguns é adentrar num mundo repleto de linguagem inacessível, colhendo seres e objetos que parecem irreais. Estes não conseguem ir além, porque a consideram não uma escritora, mas uma invencionista, uma hábil jogadora de palavras. E aqui cabe refletir que ficcionista Clarice pode ter sido, se seus personagens somos todos nós? Se nosso âmago, se dele quisermos saber, está todo nas linhas dos seus livros?
Para outros, no entanto, é mergulhar em si mesmo, ir além daquilo que os sentidos percebem, rompendo o convencional, acreditando, como ela disse, que "se houvesse um céu, uma pessoa que se sacrificou por covardia ia ser punida e iria para um inferno qualquer. Se é que uma vida morna não é ser punida por essa mesma mornidão. Pegue para você o que lhe pertence, e o que lhe pertence é tudo o que sua vida exige. Parece uma vida amoral. Mas o que é verdadeiramente imoral é ter desistido de si mesma."


Para estes, não há solução. E vezes sem conta, anos após anos, leituras pós leituras, sucumbimos ao fascínio das palavras que não envelhecem, pois, tal qual a vida, renovam-se todos os dias; vivemos a metáfora da esperança, não o inseto, mas "a clássica, que tantas vezes verifica-se ser ilusória, embora mesmo assim nos sustente sempre."



PS.: Essa é minha reverência especial a Lucila Casseb e aos ERRANTES que aportaram e vão aportar no porto da Clarice.

2 comentários:

Fantasma disse...

Cumadi,
se seu intento era me matar, conseguiu!
Estou aqui mortinha da silva xavier de emoção e pasma de espanto, com a habilidade e sensibilidade com que você desenha as palavras.

Anônimo disse...

Duas coisas não se discutem: 1ª Clarice é apaixonante e 2ª descrita por tuas palavras é cativante. Passa a ser amor "pra casar".

Parabéns!