Pular para o conteúdo principal

METAmorfose

Passaram as bonecas. Passara o tempo das brincadeiras de roda, das estórias contadas à noite para dormir, aconchegando o sono, afugentando os medos disfarçados nos caçadores que salvam vovozinhas, a ilusão em príncipes que cavalgam cavalos em busca de princesas.
Passara o medo de ir à escola, sentindo-se uma a mais em meio àqueles rostos às vezes amigos, às vezes ameaçadores na borracha e no lápis que tomam de vez, no beliscão escondido da professora aplicado selvagemente no braço.
Chegara o tempo de descobrir nas pontas dos dedos a sensação de um prazer nunca falado, nem mesmo murmurado entre colegas, apenas adivinhado no barulho à noite quando acordada pensava que algum monstro assaltara os sonhos da mãe, pois a cama fazia aquele mesmo som quando nela pulava nas brincadeiras de pular e correr pela casa.
Chegara o cheiro de um colega na escola, menino pouco maior que ela mesma, de cabelos pretos bem cortados. E aquele arrepio a que não sabia explicar se de frio ou de medo. Não podia ser frio, pois não havia chuva; medo, tampouco porque fazia de tudo para roçar seu braço no de Paulinho – o primeiro de uma série que na adolescente vida quase se perdera.
Chegara o tempo de em uma igual experimentar o calafrio de um leve roçar, um olho que vagueia à procura sempre daquele proibido ser. Não sabia o nome, nem de qual sensação queria escapar. Sabia apenas que havia no escuro da alma um clarão quando a via passar, aspirando um cheiro de perigo quando lábios tímidos se laçavam.
Crescera. Agora já sabe de quantas encruzilhadas a vida se faz, preparando-lhe armadilhas nos lugares mais vulgares, nas sensações mais fugazes. A febre do crescer acrescentara-lhe a ânsia do querer, querer tudo que lhe negavam, o que julgava ter direito, num ritmo tão atroz que sentia medo, logo desprezado pelo medo de sentir medo.
Cresce. E a cada tempo de todos os jogos, simplesmente corre pelo campo. Pára em jogadas estratégias, dribla os pés que se jogam a sua frente na tentativa de impedi-la, cabecea, ambidestra, não escolhe para onde a bola jogar, desde que continue em movimento, dando-se vida, sangue a pulsar.
No início da idade adulta, dita por todos como a do juízo, começa a ver os passos, a sentir que a chuva não é tão temerosa, a falar menos, mesmo que ainda muito bravo, gritandos seus direitos e liberdades, esperando, aprendendo a esperar, entregando-se ao amor que acredita ser eterno.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Bugol

  Nos idos dos anos 60, os Estados Unidos implementaram um programa de assistência aos países do terceiro mundo denominado de Aliança para o Progresso. Através dele, a população carente recebia alimentos para suprir as necessidades nutricionais, além de recursos financeiros para o desenvolvimento do estado, como casas populares, escolas. Dessa leva, em Natal se construíram o conjunto habitacional Cidade da Esperança e o Instituto de Educação Pte Kennedy, enquanto o navio Hope, ancorado no Porto na Ribeira, distribuía leite em pó e realizava tratamentos médicos e cirurgias que até então eram inacessíveis aos potiguares. O símbolo do programa era um aperto de mãos entre indivíduos, simbolicamente estadunidenses e latinos americanos. Os americanos não estavam preocupados altruisticamente em salvar populações da fome. Estavam muito mais interessados em fazer com que o comunismo não aportasse e conquistasse terrenos por essas bandas. Era o tempo da guerra fria, o mundo polari...

De amOR e de temPO

    Ainda quando estudava o antigo ginasial, uma professora de Português, interessada em que os alunos gostassem de ler e apreciassem os clássicos, passou como tarefa de avaliação uma redação sobre o texto  AMOR MENINO par te II do Sermão do Mandato – mas isso só soube muito depois já na faculdade - do Pe. Antonio Vieira. Agora, imaginem a dificuldade de adolescentes nos idos final dos anos 60 em cumprir essa tarefa. O que sabíamos do amor? Nada. Do tempo muito menos. O amor era em preto e branco nas fotonovelas que eu comprava no sebo na banca da feira livre, hábito também o das minhas amigas com quem trocava livros e revistas, caso contrário não leríamos nada. Apesar dessas imagens de amor, não lembro se as conversas já rondavam assuntos de namoro, casamento. Acho que não, pois éramos àquela época imaturas para tais assuntos. O universo ainda girava em volta de livros, estudar para provas, sorvetes, ouvir música e meninos não faziam parte do grupo. Aliás, eram olhados...

ReiNo TriVial?

  Tenho algumas lembranças do tempo de Faculdade quando cursava Licenciatura em Letras e tinha como disciplinas Literatura Brasileira e Estrangeira. As aulas eram no recém criado Campus da UFRN, o Setor II ainda sem as edificações vizinhas, constituindo-se em um quase deserto. Muitos dos professores eram recém chegados de Mestrados e Doutorados fora de Natal, alguns do exterior. O ensino era na base das aulas expositivas, seminários e ainda não era obrigatória a apresentação de trabalho final, TCC. Alguns deles marcaram minha trajetória acadêmica, embora não a profissional, pois esta só se firmou quando, pelas circunstâncias, precisei ingressar na função docente. A professora Jacirema da Cunha Tahim ensinava Teoria Literária e impossível não lembrar os contos de Clarice Lispector estudados. Daí a minha paixão pela escrita da autora, a lembrança mais resistente sendo o conto Tentação , de cujo início nunca esqueci: “Ela estava com soluço. E como se não bastasse a claridade das...

Ecce Homo

  Uma das passagens bíblicas mais conhecida, mesmo pelos que não professam a fé cristã, é a atitude de Pilatos em não assumir a liberdade de Jesus, preferindo entregar essa decisão ao povo, (difundido a expressão latina ecce homo – Eis o Homem) mesmo sabendo que Barrabás tinha crimes comprovados, enquanto Jesus, não. Não ter a coragem de decidir, pondo em risco sua posição diante dos superiores romanos, como também o medo da reação dos que apoiavam Jesus, preferindo demagogicamente levar o povo a acreditar que tinha o poder de decisão, o  fato é um exemplo poderoso do que a omissão, a fraqueza de uma pessoa pode provocar. Pilatos usou da tradição de se soltar um prisioneiro judeu no período que antecedia a páscoa, achou que o povo escolheria o criminoso confesso, ele ficando, portanto, bem com qualquer que fosse a decisão: cumpriria a lei condenando um criminoso, soltaria um inocente. Contrariando as expectativas de Pilatos, o povo decide por Barrabás, condenando Jesus. ...

SuSSuRRo

  A   mão corta a escuridão do quarto no afastar da cortina. A luz do poste lança sombras na parede. Sobre a cama uma indumentária de cigana a contempla. Não sabe como chegara ali.  Sonho.  Como sempre o relógio a acorda às 7 horas. E como de costume, pula da cama, termina de acordar sob o chuveiro, veste-se apressada, come alguma coisa, toma duas xícaras de café para acordar e sai. Não mais que 40 minutos se passara. Faz a maquiagem entre uma parada e outro nos sinais. Sons de buzina, freadas colaboram para o seu despertar. Depois de 40 minutos entre carros, 20 minutos dando voltas no quarteirão em busca de uma vaga, estaciona, desce do carro, bate a porta e caminha em direção ao prédio. Ao atravessar a rua, percebe que está sem bolsa. Assustada, pensa que foi assaltada, mas se dá conta que mal saíra do carro. Sem bolsa, o pensamento pula para a chave. Onde deixara? Dentro da bolsa, dentro do carro. Retorna. Porta destravada, pois a chave ficara na bolsa. No banco...

PhOBos

Tenho medo dos que se afirmam muito religiosos. Daqueles quase santos que esperam apenas a ascensão direta aos céus, tal qual Cristo. Tenho medo dos que citam a Bíblia a torto e a direito. Nunca estão errados, os erros são creditados na conta de Deus e eles, somente eles, têm o privilégio de verem suas orações serem atendidas por que possuidores e distribuidores do bem. Tenho medo dos que guardam Deus na prateleira. E retiram-no a pretexto de tudo, inclusive para evocar os poderes na execução de suas pequenas vinganças pessoais. Deus está a posto para servi-los, como se empregado fosse, ou se a eles tenha sido atribuído o privilégio de serem guardiões do trabalho divino, Deus fosse um gênio fugido da garrafa disposto a satisfazer muito mais que três desejos. Tenho medo dos que retiram Deus da carteira e distribuem caridade à paga de remissão dos próprios pecados, garantindo entrada no reino celestial mediante quitação de carnê. E que fazem questão de que a mão esquerda divulgue o que a...