domingo, julho 29

SoNHo de Ícaro





Na mitologia grega, o céu era a morada dos deuses, sendo inalcançável aos pobres mortais. Na ânsia de fugir do labirinto na Ilha de Creta, Dédalo cola penas dos pássaros nas asas que construiu e instrui seu filho Ícaro a não subir muito, pois o sol derreteria a cera, tampouco ficar muito junto ao mar, a umidade faria as asas pesarem demais. Empolgado pelo prazer de voar, Ícaro não ouve o pai e cai, morrendo. Manifestava-se ali o desejo do homem de ser sempre mais, ir além dos seus próprios limites.
Por desobediência, Ícaro estatela-se no chão. Por desobediência, Adão e Eva são expulsos do Paraíso, pois não lhes bastara aquele conhecimento dado por Deus e ao querer mais provaram da árvore do conhecimento e se deram mal (nunca entendi porque uma maça, fruta insípida - linda, é verdade, mas sem gosto - poderia ter sido uma deliciosa jaca ou uma manga!).
Assim, da mitologia à crença cristã, caminha a humanidade sempre à procura de algo mais, seguindo na superação dos seus limites. Voar no sentido real há muito deixou de ser encarado como possível, porque a ciência de Santos Dumont à Apolo XI já mostrou que ao homem só será dado voar através de um meio de transporte, seja avião, aeronave, ônibus espacial. Entretanto, no sentido simbólico, despendemos muita energia treinando vôos.
A propósito de vôos e desobediência tenho três coisas a dizer:
1. É preciso desobedecer, transgredir. Caso contrário, ficaremos estagnados caminhando sob uma reta que nem sempre será atraente e motivacional o suficiente para nos provocar uma mudança, o alcance de novas metas, pois "todos nós deparamos com lugares que se tornam estreitos em determinado momento. Estes lugares, que outrora serviram para nosso desenvolvimento e crescimento, se tornam apertados e limitadores" (A alma Imoral, Nilton Bonder). Essa movimentação para a mudança traz inquietação, medo, mas é interessante observar o quanto tememos o que vai acontecer, achando-nos incapazes do novo, do diferente, sem que tenhamos dado um passo sequer, visto que "o maior inimigo é que está dentro de nós. É o subversivo capaz de estragar a festa..." (Bonder). Na caminhada, de repente percebemos que já demos os passos mais difíceis, que não morremos, que o novo caminho se torna conhecido, e que dentro de nós nova força vital brota impulsionando-nos. É de pessoas que desobedecem - que não temem as leis que lhe dizem não, a cultura que lhes diz vocês não podem, não devem, não têm mais idade - que o mundo é feito e continua girando.
2. O ato de desobedecer só tem sentido se intimamente ligado a vôos, porque não adianta desobedecer e ficar no chão. É preciso alicerçar a alma para que ela imponha à pessoa um enfrentamento tendo em vista uma barreira intransponível que só será superada com verdadeiros vôos, uma nova confiança, e é "esse profundo ato de confiança em si e no processo da vida (que) garante a passagem pelo vazio que magicamente se concretiza em chão sob nossos pés. O que não existia passa a existir e um novo lugar amplo se faz acessível" (Bonder). Voar é concretizar, fazer valer o ato da desobediência, é criar asas onde antes não era possível, é saber-se capaz, saber que a qualidade de vida e a possibilidade de continuidade só são viáveis se ousarmos alterar aquilo que nos dizem como verdades absolutas.
3. Desobediência e vôo. Por acreditarem que suas razões eram as certas, por transgredirem a lei que lhes dizia que nada mais poderia ser feito, que deveriam se recolher ao crochê feito em suas salas de estar e não na porta do governo, por acreditarem que precisavam voar em busca de um sonho, foi que as tricoteiras de Porto Alegre subiram naquele avião. O vôo não era apenas uma viagem a Brasília, não era um mero protesto para se ganhar uns mil reais a mais, não era uma viagem turística programada para os da terceira idade. Era uma transgressão à crítica de que senhoras com mais de 70 anos devem cuidar somente dos netos, era a alma em efervescência dizendo-lhes para tirar o pé do chão, não sucumbirem à resignação, era o lugar comum ir à luta! O vôo não era o andar de avião, vencendo o medo, os problemas de saúde que porventura tivessem. Era o vôo do renovar de esperanças, era mais um ato de vida. A elas de nada adiantarão as discussões sobre as causas do acidente. Nem mesmo nossa solidariedade será de grande valia e o que devemos é reconhecer que "há justos que, tão logo tenham cumprido a tarefa de suas vidas neste mundo, são chamados a abandoná-lo. Porém há os justos que, no momento em que concluem sua tarefa neste mundo, recebem uma nova tarefa e vivem até sua realização" (...) A nova tarefa que estende a existência e gera uma sobrevida é a capacidade de reorientar-se na vida. Dar a volta e encontrar novas tarefas, novos "bons", é receber nova força vital. É através da alma que essas novas tarefas se fazem conhecidas. Quem tem coragem de bancá-las não conhece a depressão" (Bonder).



Durante a vida, elas tiveram muitas vezes a renovação de tarefas, reorientaram-se muitas vezes na vida. A elas, o respeito de todos nós.

2 comentários:

Anônimo disse...

Oi! Finalmente consegui conhecer o seu blog. Muito bonito. Parabéns pelos textos. Coisas da alma e das reflexões.Eu gostaria de dizer que a maçã não é a fruta bíblica que caracteriza a desobediência de Adão e Eva. Isto é da cultura popular. Biblicamente não encontramos uma fruta como nome, no capítulo de Gênesis.
Abraços
Neto

Anônimo disse...

Post emocionante nesta página, opiniôes assim dão valor aos que observar neste espaço :)
Dá mais do teu espaço, aos teus leitores.