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Fermento

Não parecia, mas era. Era bruxa. Não das antigas com vassoura e balde e corvos sobre os ombros. Das modernas, aliás bem modernas. Tinha uma namorada. É verdade que a namorada não valia nada, só queria o bem estar proporcionado pelo dinheiro, mas tava ali toda noite lhe dando uma costela quente. Nem sempre o algo mais.
Tinha 60 anos, aparência de 50 depois de algumas correções estéticas, aposentada por órgão federal depois de muito trabalho e algumas bruxarias. Viagem anual à Europa, banho de civilização e guarda-roupa renovado nas calles espanholas e piazzas italianas. Quando necessário, usava alguns truques sem que os outros percebessem. Era uma fera na arte da dissimulação.
A namorada era o alvo preferido. Freqüentava o mesmo bar há anos, embora de restaurante tivesse mais opções, porque era adepta da boa mesa. E era no bar onde as brigas sempre começavam. Bastava um olhar atravessado, um sorriso mais gentil para que os demônios lhe cutucassem disparando suspeitas em volta da pobre moça que nada fizera – nem sempre, é verdade!
Ciumenta, todo o conforto que conferia a Alzira – esse o nome da infeliz (embora não muito) - era cobrado em atenções eternas, mínimas e possessivas. Era o telefonema que não dava quando chegava na academia, quando saía – a moça fazia academia religiosamente todos os dias, paga, claro, pela bruxa; o chá que não deixara já feito na garrafa térmica quando saíra para a faculdade – paga pela bruxa; era o decote da blusa um pouco mais embaixo nas costas, um tanto da barriga saradíssima aparecendo sob a blusa, mostrando o piercing do umbigo – pago pela tal. Era um rol de atenções que deixava Alzira completamente antenada. Suas mentiras tinham que ser cuidadosamente planejadas.
E havia várias. Morrer de estudar era uma delas, a que tinha mais valor. Nessa, mal freqüentava às aulas, assistia apenas o essencial para não perder nenhuma disciplina, nem tanto pelo conhecimento não aprendido, mas porque a bruxa saberia e daria um belo sermão, do qual ela já andava cheia. Outra bem satisfatória era a da colega que passava por alguma dificuldade e precisava dos seus cuidados – o altruísmo sempre lhe dava pontos! – o que lhe permitia algumas escapadas, mesmo que à la cinderela estivesse em casa antes de meia-noite.
No final não tinha do que reclamar. Ficaria atônita se soubesse que a bruxa dissimulava a aceitação das mentiras. Sabia de todas as andanças de Alzira, mas ainda não chegara a hora. Chegaria, ah! chegaria, ela faria acontecer quando estivesse pronta. Quando todos os ingredientes estivessem misturados, os astros posicionados corretamente. Não tinha pressa.
Quando conhecera Alzira achara que enfim a felicidade batera à porta e entrara. Há 5 anos estão juntas, trinta e cinco anos de diferença entre elas, embora isso não fora problema no início, nem mesmo agora. Apesar da idade, sentia-se jovem, era saudável, tinha fôlego ainda para muita empolgação. Não era à toa que gastava uma verba considerável com cosméticos, alimentos orgânicos, hidropônicos, reposição hormonal e o escambau.
Enganara-se. O problema não era a diferença de idade, mas o caráter de Alzira. No início desculpara, achara que era deslumbramento de menina de periferia. Depois, não. Era mau caráter mesmo e tinha que encarar. Encarava, mas de ladinho, dando uma face, escondendo a outra. Não era bruxa por nada.
Alzira não suspeitava que a enganada era ela. Achava-se o máximo nas mentiras inventadas, atuações de verdadeira atriz. A dupla se completava, rancor de ambos os lados inundando a alma tal rio na vazão do açude. Um dia arrebentaria, ambas sabiam, mas cada uma a sua maneira confiava na própria vitória, vantajosa vitória arrasando a outra sem muito alarde, na surdina onde todo ódio fermenta.
Um domingo após o café, Alzira começou a passar mal. Dores terríveis acometiam-na no abdômen como se algo se partisse dentro de si. A dor não lhe era estranha, vez por outra vinha, principalmente se a comida era apimentada e tomava-lhe o fôlego, deixando-a a ponto de desmaiar. Sozinha, pois a bruxa saíra para a caminhada e ainda não voltara, foi penosamente à cozinha e tomou uma dose de um poderoso analgésico. De volta à sala, arriou no sofá esperando que o remédio fizesse efeito, adiando a necessidade de chamar por alguém que pudesse levá-la ao hospital.
Mas nada. A dor não diminuía e a bruxa não chegava. As chamadas para o celular só caíam na caixa postal. Lívida, o suor inundando-lhe o corpo, resolveu ligar para a emergência. Não entendia por que a bruxa não atendia tampouco por que ainda não voltara. Será que acontecera algo? Não dava tempo de pensar de tanto que era a dor. A ambulância chegou e foi transportada para o hospital, o enfemeiro de imediato verificando o quanto a pressão estava alta.
Entre a casa e o hospital, Alzira desmaiou. Assim, não viu que sobre a maca o corpo da bruxa encolhia-se todo machucado pelo assalto sofrido durante a caminhada. Um sujeito de capuz lhe assaltara no parque e ao ver que não estava com nada de valor, além de celular, batera-lhe, roubara a chave de casa encontrada no bolso do moleton. A bruxa por entre as dores, viu o camarada correr com a chave na mão e só pensou o que ele faria com Alzira. Mal sabia ela que Alzira tomara do analgésico cuidadosamente preparado para aumentar-lhe a pressão quando sentisse dor.
Chegara a hora. A bruxa não podia usufruir da vitória. Alzira sob os cuidados médicos, via sua vida subindo e descendo no ar, sem saber que o cara fizera o ataque encomendado sem deixar marcas de premeditação, arrombando-lhe agora a casa e roubando-lhe os dólares cuidadosamente escondidos.

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