domingo, janeiro 21

O ato nosso de cada dia

Com dinheiro pouco, entre comprar um livro cobiçado e uma blusa necessária, prefiro o livro. Quem senta comigo em restaurante sabe que ao final meu impulso é juntar os pratos e limpar a mesa. Maníaca por revista, antes de ler, folheio-a de trás para frente. Quem trabalha comigo vê minha agonia em dar conta da papelada sobre a mesa, em organizar os documentos em pasta e revirar as gavetas frequentemente, jogando o desnecessário fora. Anormal? Transtorno obsessivo compulsivo?
Uma amiga não usa sabonete em banheiro público, a não ser que seja líquido. Outra, na época que trocaram as lâmpadas públicas de mercúrio pelas de sódio, me telefonou dizendo que o remédio antidepressivo estava fazendo-a ver as ruas amarelas. Uma outra adora misturar sobremesas doces com salgados.
Kim Bassinger, ao ganhar o Oscar pela sua atuação no filme Los Angeles – Cidade Proibida, torcia muito mais para perder do que para ganhar, pois ganhando, ela teria que ir à frente e dizer algo. A atriz sofria de Síndrome do Pânico. Michael Douglas, após a filmagem de Instinto Selvagem, admitiu que tinha compulsão sexual; Elvis Presley, hipocondríaco, misturou tantas drogas que o coração arrebentou. Bem conhecido do público brasileiro, Roberto Carlos admite que tem TOC e só combina azul/branco e branco/azul.
Vincent Van Gogh, pintor impressionista, numa crise esquizofrênica cortou a própria orelha, enviando-a ao rival Paul Guaguin; Salvador Dali, acometido de um transtorno psicótico, tinha dificuldades em enfrentar o real, transformando sua excentricidade em imagens de um tempo distorcido; Beethoven, capaz de tantas sinfonias, oscilava entre sensibilidade e explosões por pequenas coisas, isolando-se para compor e ameaçando quem o perturbasse. Hemingway, Edgar Allan Poe, Edward Munch, Picasso, Tostói, estilos e artes diferentes, gênios das letras e das artes tendo em comum algum distúrbio depressivo, patológico que lhes atrapalhou a vida ou provocou-lhes crises isoladas.
Os parâmetros de normalidade/anormalidade têm variado muito no decorrer do tempo, principalmente se sairmos do terreno exclusivo das doenças mentais (esta própria com novo conceito atualmente). A ética anuncia todos os dias a diferença entre o agir moral e o imoral, até mesmo o amoral, aquele que não se incomoda com regra nenhuma seja boa ou ruim.
Nesse sentido, os conceitos de moral são esquecidos por que a maioria acha que o normal moralmente se estabelece quando algo acontece muitas vezes, muitas pessoas o praticam, acham legal. Assim, é normal e moralmente correto jogar lixo no chão e criança no lixo, furar fila, chegar atrasado ao trabalho e faltar continuamente, desperdiçar água na calçada, fumar em ambiente fechado, ligar o som do carro em alto volume e por aí vai. E o pior, de tanto se ver atos agressivos, a violência já não espanta e fica sendo normal bater na mulher porque se tem ciúme, roubar porque não se tem emprego, participar de rachas nas ruas provocando acidentes de trânsito, policia bater primeiro e perguntar depois, ter uma arma e exibi-la aos amigos, usá-la por qualquer somenos.
Estamos correndo o sério risco de internalizar o errado como normal. As manias próprias de cada um que não causam prejuízo nem abalam a ética, só mesmo a quem conosco convive, pois tem de aturá-las, podem muito bem continuar e entrar no folclórico mundo das conversas de bar. Mas, se é normal impor o ponto de vista; sair por aí furando fila; colocar Aviões do Forró (meu Deus! ninguém merece!) no último volume no som recém instalado naquele velho Monza; ter apenas dó da colega que agüenta grito do namorado, sem alertá-la para o fato; ser indiferente a quem morre por negligência ou porque a pessoa não aceitou que o relacionamento acabara; achar normal que meu aluno leve uma arma para a escola, roube o celular do colega, então,... aí sim, estaremos assumindo definitivamente que não somos nada normais.
Teremos perdido nossa capacidade maior, que é o discernimento em respeitar o outro, nossa capacidade de amar, não com um amor apaixonado, sem limites – como diz o Rei – mas com o amor necessário à raça humana, pois esta "é uma semana/do trabalho de Deus.../a ferida acesa/ uma beleza, uma podridão/o fogo eterno e a morte/a morte e a ressurreição.../risca,rabisca, pinta/a tinta, a lápis, carvão ou giz..." (Gilberto Gil), e, mesmo que tenhamos nossas descrenças, não nos cabe contribuir para a insensatez, para a barbárie que insistem em tornar normal.


Um comentário:

Alexis Peixoto disse...

O cinismo é que dá o tom desses tempos atuais e bicudos. "Amizade" passou a ser uma palavra brega, "amor" então, vixe - é slogan de lingerie erótica.

Como diria Mick Jagger, "War, sister, is just a shot away..."