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Vida perdida viagem

Não choveu. Não houve colheita. A seca chegara. Até onde a vista alcançava era só árvores secas, chão seco, o rio minguado onde nem os animais encontravam alívio. O sol a tudo queimara, secara as lágrimas de quem plantara, umedecera as mãos de quem não colhera. O sertanejo de mãos vazias olhava a amplidão. Seca. Seca. A palavra ecoava como tambores. E agora? Eu só sei trabaiá a terra. E a chuva, meu Deus, e a chuva? Ele plantara com fé milho, feijão, batata, algodão. Eu fazia fé nessa colheita de argodão. Ia cumprá uns trecos que andamo necessitado. E agora? A comida existente agüenta só uns dois meses, depois o que ele irá fazer? Não tem dinheiro, não tem crédito. Pedir ajuda aos vizinhos? Mas, cumo, se eles tão na merma, num tem mais do que nós. Talvez seja mió arribá, ir pra Sum Paulo, trabaiá lá. Fazer o quê?
- O senhor sabe ler e escrever?
- Num senhor.
- Mas, é operário especializado?
- Cuma?
- O senhor tem curso de mecânico, eletricista, encanador, torneiro mecânico?
- Num senhor.
- Então, não temos emprego para o senhor. Sinto muito.
E ele partira. Fora cheio de esperança, o coração apertado de saudade. Deixara a mulher e cinco filhos menores. Assim que arrumá trabaio, eu mando dinheiro pra ocês. Se lá for bão, eu mando busca ocês. Nóis vai miorá de vida. O sonho de melhorar de vida. Educar os filhos, ter um barracão para morar, comer um pedaço de carne umas duas vezes na semana, ter uma roupa nova e um par de sapato no fim do ano.
A cidade o assustou. Nunca que eu pensei que Sum Paulo fosse assim. A primeira coisa a fazer era procurar uns compadres que moravam lá e depois procurar trabalho, que foi para isso que ele deixou seu pedaço de terra e sua família. Para melhorar de vida.
Maria, bênçã pros meninos. Tô mandando um dinheirinho prá ocês. Tô trabalhando numa construção, misturando massa e carregando tijolo e durmo aqui mermo, porque os cumpadres num tão mais morando em São Paulo, foram prá o Rio vê se lá é melhor. Quem tá escrevendo é um rapais que trabalha aqui com eu na construção. Desde que cheguei que só penso em vortar. Já choveu? Aqui faiz um frio danado. O pessoal só mim chama de baiano. Já faz uns quatro mês que tô trabaiando e só agora mando esse dinheiro, porque tava juntando pra ver se dava pelo menos uns trezentos real. Aqui tem muito assalto e é melhor eu mandá logo se não me robam. Depois eu mando mais e se as coisas miorá por aí, mande dizer que eu vorto.
Faz seis meses que ele está em São Paulo. Fez argamassa, levantou latas de cimento, andou com carrinho de mão pra lá e pra cá, operário de construção. Um ser humano em destruição. Trabalhou três meses numa construção, mas a obra terminou e não conseguiu colocação em outra. Existem várias construções. Existem milhares como ele procurando emprego. Desde então foi engraxate, colocou tabuletas de anúncio nas costas pelas ruas, agora está pastorando carros nas ruas do centro. Come pouco. Dorme quase nada. Para aliviar a fome e o cansaço, cheira de vez em quando uma garrafa cheia de uma coisa amarela que um colega disse que era um remédio pra cansaço. O frio entra por sua pele, tornando mais fria sua alma. As esperanças de voltar cada vez mais frágeis. Onde é que eu arranjo dinheiro pra vortá? E Maria, e os meninos como tão? Lá é minha terra, eu preciso arranjar uns dinheiro.
O Posto de Gasolina São Cristóvão foi assaltado ontem à noite por quatro homens armados. Os vigilantes do Posto reagiram ao assalto, mas mesmo assim três dos assaltantes conseguiram fugir com a importância de cinco mil reais. O tiroteio resultou nas mortes de um vigilante e de um dos assaltantes, ainda não identificado. Em seus bolsos encontraram apenas uma carta enviada por uma tal Maria residente no Rio Grande do Norte. Por essa carta os policiais esperam descobrir a identidade do assaltante.
- Cumadre, teve notícia de cumpadre João?
- Tive sim, cumadre. Recebi carta dele há uma sumana. Ele diz que deixou de trabaiá na construção e que junto cum uns amigos tão fazendo um negócio bão e que daqui a uns mêis vem pra casa de vez e que vai trazer um dinheirinho pra gente miorar de vida aqui mermo. Faiz treis dias que pedi para Zé da Farmácia escrever pra ele contando as novidades daqui. Vai ser bom quando ele vortá, né cumadre?

- Pois então, cumadre. Imagine quando ele suber que choveu. Vai ficar feliz por demais.


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