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A vida da palavra

"Ai, palavras, ai, palavras, que estranha potência a vossa! Ai, palavras, ai, palavras, sois de vento, ides no vento, no vento que não retorna, e, em tão rápida existência, tudo se forma e transforma! Sois de vento, ides no vento, e quedais, com sorte nova! Ai, palavras, ai, palavras, que estranha potência, a vossa! Todo o sentido da vida principia à vossa porta; o mel do amor cristaliza seu perfume em vossa rosa; sois o sonho e sois a audácia, calúnia, fúria, derrota..." (MEIRELES, Cecília. Das Palavras Aéreas. In.: Romanceiro da Inconfidência.)
A cada batida do coração o homem pensa que ama. Se a palavra não existisse, como amaria o homem? A cada lágrima que do rosto cai, o homem diz que sofre. Se a palavra não existisse, como choraria o homem? A cada abraço apertado, imagina o homem a amizade. Se não se fizesse a palavra, como se irmanaria o homem? A cada palavra pronunciada finge o homem revelar-se. Se não houvesse palavras, que significado teria o homem? Que significados teria o homem se as palavras fugissem do pensamento, migrassem de nossa alma, deixando-nos à deriva num oceano de silêncio, de gestos intraduzíveis? Seríamos menos homens. Seríamos um nada perdido numa escuridão inefável em busca de sons que pudessem nos traduzir, de letras que pudessem nos desenhar. Não seríamos homens. A palavra nos distingue dos animais, dando-nos o meio ideal de expressão, forma que nos faz criar, descobrir, viver num mundo de sons criado para exaltar nossa diferença e superioridade. Superioridade que aliada à harmonia e compreensão projeta a paz; aliada ao egoísmo e à intolerância, fabrica a guerra. Pela liberdade defendemos a palavra da tirania, pelo pacifismo alardeamos a palavra amor. Quando amamos, a intensidade do amor traduz em palavras nosso deslumbramento; ao sentir medo, buscamos na palavra o primeiro socorro; a alegria encontra sua manifestação traduzida em interjeições; o ser amado é mais amado ao ver no papel decifrado os seus dons; a violência é palavra mal escrita, o ódio é inexprimível em seu âmago, perversa alquimia da palavra grafitada em muros sujos que atestam nossa indignação diante da irracionalidade humana. As inquietações da alma encontram na palavra o seu alívio numa terapia de descobertas, sustentando-se além de si na coragem para prosseguir. A palavra se agita e num redemoinho de emoções encontra refúgio, e na ânsia de salvar-se o homem sobrepuja-se à dor, tornando-se mais humano. Somos um amálgama daquilo que podemos expressar e do que no recôndito de nós se esconde, misto de privacidade e medo, pelo respeito que a palavra suscita, conscientes de sua importância. O eco da palavra nos acompanha vida afora. Não sabemos do nome que receberemos, mas a palavra impregnada em nós dirá o que somos, dará rumo aos nossos passos e deles prestará contas a um criador que nos dirá a última palavra, a qual ressoará ad infinitum, transformando-nos nas palavras lembrança e saudade. Sem palavras seríamos menos que mudos, menos que surdos – a estes as palavras bailam pelos olhos, dançam nas mãos, dando-lhes sons mágicos; seríamos menos que terra, menos que ar – a estes as palavras brilham nas gotas de chuva, nas cores do arco-íris, oferecendo-lhes dádivas da natureza; seríamos menos que fogo, menos que água – a estes as palavras se revestem de brilho, oferecendo-lhes ousadia e transparência. Sem a palavra seríamos meros expectadores espantados pelo maravilhoso espetáculo que a palavra vida encena sem que dele pudéssemos participar.

Comentários

Anônimo disse…
As palavras...
No entanto, e conceda-me maxima venia, a meu ver, o que move aqueles que se movem pelo amor, seu alimento é o silêncio, sua fome só finda-se com o cheiro, o tato, o olho, a brisa, a música, a arte, o outro, a presença, as idas e vindas.
Eu prefiro o silêncio. Prefiro as palavras que são ditas sem palavras, que falam mais do que mil palavras...only words, no way!

>>>ouvindo Café do Vento, CD "Calangotango" --- recomendo e divulgo<<<<

Abraço, Dona Maria.E bom descanso.Já sei que seremos presentados mais vezes por aqui com a sua...PALAVRA. =D

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