Pular para o conteúdo principal

Adiamento de vida

Era uma vez uma menina e o seu maior sonho era aos dezoito anos sair de casa, ter sua própria casa, seu carro, tudo isso à custa de um belo e grandioso emprego. Não pensava em casar e isso torturava sua mãe, para quem filha minha só sai de casa casada.
Na festa dos seus quinze anos, entre tantos presentes, ganhou um relógio que usou por pouco tempo. Ser controlada pelo tempo não era seu forte. Até hoje é extremamente impontual, odeia rotina e o antigo relógio repousa na caixa original como uma lembrança de uma festa que tinha tudo pra dá errado. E deu.
O vestido rosa apertava-lhe o busto, a saia rodada não era nada do que tinha imaginado. A maquilagem que lhe foi feita serviu muito bem para esconder as lágrimas que durante todo o dia brigaram com a mãe na tentativa de convencer-lhe que a festa era dela, ela tinha o direito de resolver como fazer. Não teve.
Passado o trauma, quando conseguiu o primeiro emprego comprou uma televisão e a transportou de ônibus para casa. Era um troféu carregado sobre os ombros. Ela agora era gente. Ao ver aquele bem, a mãe não teve dúvida: requisitou o objeto novo para a cozinha, trocando-o pelo televisor velho de imagens trêmulas. Calada estava, calada ficou. Tem nada não, quando eu completar 25 anos eu saio de casa.
O segundo emprego a obrigou a estudar à noite. O comércio no shopping arrancava-lhe todas as forças, dormia na aula, mas foi aprovada nos três anos de ensino médio. Não comprou mais nada pra casa, o dinheiro repousava numa bela conta poupança. Não temia pela conta, Collor já tinha feito sua raspagem.
Perto dos 25 anos, a loja faliu e ela foi despedida. Adeus emprego, adeus cursinho para fazer vestibular. O seguro desemprego a sustentou durante três meses. Passado o tempo, nada de novo trabalho e a cada mês a conta minguava. Se não olhava pra relógio, passou a olhar para o calendário na parede da cozinha já repleto de X dos dias sem emprego. Sair de casa ficou adiado.
Depois de quase um ano assim, encontrou emprego, sustenta-se com ele e é uma das melhores profissionais no ramo. Já passou dos trinta anos, comprou carro, concluiu faculdade, e transformou o quarto na casa da mãe num apart-hotel e acha que só vai sair de casa quando casar. Isto é, quando arranjar um namorado, porque os homens de hoje são todos uns safados que não querem compromisso.
Como disse Marcelo, anda à procura da lincatura do sartejo!

_______
* Marcelo, é um gaúcho arretado, amigo virtual que escreveu um belíssimo conto chamado A Lincatura do Sartejo – as palavras não existem; são atribuídas às desculpas que usamos para não realizar determinada coisa.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Bugol

  Nos idos dos anos 60, os Estados Unidos implementaram um programa de assistência aos países do terceiro mundo denominado de Aliança para o Progresso. Através dele, a população carente recebia alimentos para suprir as necessidades nutricionais, além de recursos financeiros para o desenvolvimento do estado, como casas populares, escolas. Dessa leva, em Natal se construíram o conjunto habitacional Cidade da Esperança e o Instituto de Educação Pte Kennedy, enquanto o navio Hope, ancorado no Porto na Ribeira, distribuía leite em pó e realizava tratamentos médicos e cirurgias que até então eram inacessíveis aos potiguares. O símbolo do programa era um aperto de mãos entre indivíduos, simbolicamente estadunidenses e latinos americanos. Os americanos não estavam preocupados altruisticamente em salvar populações da fome. Estavam muito mais interessados em fazer com que o comunismo não aportasse e conquistasse terrenos por essas bandas. Era o tempo da guerra fria, o mundo polari...

De amOR e de temPO

    Ainda quando estudava o antigo ginasial, uma professora de Português, interessada em que os alunos gostassem de ler e apreciassem os clássicos, passou como tarefa de avaliação uma redação sobre o texto  AMOR MENINO par te II do Sermão do Mandato – mas isso só soube muito depois já na faculdade - do Pe. Antonio Vieira. Agora, imaginem a dificuldade de adolescentes nos idos final dos anos 60 em cumprir essa tarefa. O que sabíamos do amor? Nada. Do tempo muito menos. O amor era em preto e branco nas fotonovelas que eu comprava no sebo na banca da feira livre, hábito também o das minhas amigas com quem trocava livros e revistas, caso contrário não leríamos nada. Apesar dessas imagens de amor, não lembro se as conversas já rondavam assuntos de namoro, casamento. Acho que não, pois éramos àquela época imaturas para tais assuntos. O universo ainda girava em volta de livros, estudar para provas, sorvetes, ouvir música e meninos não faziam parte do grupo. Aliás, eram olhados...

CONjugaSÓS

Eu te conheço tu me conheces nós nos desconhecemos. Eu te amo tu me amas nós nos sufocamos. Eu te confio tu me confias nós nos duvidamos. Eu te prometo tu me prometes nós nos esquecemos. (Imagem: Eros e Psiquê - Edward Munch. Galeria Mun. de Arte - Oslo)

E por falar em saudade...

Há exatamente 28 anos entrava numa sala de aula pela primeira vez. As aulas do estágio não contam; contam esses anos que vivi rodeada de alunos a quem pude realmente chamar de meus alunos. Como tudo que é novo, naquele dia tive medo. Não sabia o que encontraria e sentia que o aprendido na Universidade não seria bastante. Saber dá aula é completamente diferente do saber o que ensinar. Saber o que ensinar é indispensável, mas saber o como é uma aprendizagem que transcorre no decorrer do tempo, através dos acertos e dos erros cometidos. Na época eu sabia o que ensinar, não como deveria ensinar. As teorias aprendidas eram palavras e palavras que não se aplicavam ali à frente daquele mundo de alunos, que, independente das idades, têm como passatempo predileto tirar o juízo do professor. E se vai tentanto: o bonzinho não dá certo, porque eles levam na bagunça; o tirano não dá certo porque eles fazem de tudo para sair da sala e tirar, no dizer deles, !a moral" do professor. A medida cer...

SuSSuRRo

  A   mão corta a escuridão do quarto no afastar da cortina. A luz do poste lança sombras na parede. Sobre a cama uma indumentária de cigana a contempla. Não sabe como chegara ali.  Sonho.  Como sempre o relógio a acorda às 7 horas. E como de costume, pula da cama, termina de acordar sob o chuveiro, veste-se apressada, come alguma coisa, toma duas xícaras de café para acordar e sai. Não mais que 40 minutos se passara. Faz a maquiagem entre uma parada e outro nos sinais. Sons de buzina, freadas colaboram para o seu despertar. Depois de 40 minutos entre carros, 20 minutos dando voltas no quarteirão em busca de uma vaga, estaciona, desce do carro, bate a porta e caminha em direção ao prédio. Ao atravessar a rua, percebe que está sem bolsa. Assustada, pensa que foi assaltada, mas se dá conta que mal saíra do carro. Sem bolsa, o pensamento pula para a chave. Onde deixara? Dentro da bolsa, dentro do carro. Retorna. Porta destravada, pois a chave ficara na bolsa. No banco...

Miolo de quartinha e carga d'água

Não adianta. Não adianta colocar os dedos sobre o teclado e fazer um download que me leve à inspiração quando os acontecimentos me travam para o escrever e preencher o espaço do blog esta semana. Já pensei numa série de coisas, fictícias ou reais, e nada. Já li alguns jornais em busca de uma notícia que merecesse um comentário e nada. E olha que encontrei um bocado de coisa: no Paraná, um cinegrafista morreu atropelado por um avião. O rapaz de apenas 26 anos, olhando pela angular da câmera, não percebeu que o avião estava verdadeiramente próximo e sofreu o impacto fatal. Um marinheiro russo, servindo em um submarino, foi preso porque plantou maconha em uns jarrinhos perto da escotilha e estava "abastecendo" os colegas (isso sim é que visão capitalista!); o estilista famoso da Luciana Giminez, Ronaldo não sei das quantas, foi preso no cemitério roubando dois vasos de flores. Ele se explicou cientificamente: disse que estava tomando um remédio antidepressivo que o fazia comete...