Pular para o conteúdo principal

Leão ao meio-dia

O leão apareceu no meu caminho ao meio dia em plena avenida, carros e gente passando em linhas retas e transversais. Quando pus o pé na faixa de pedestre, olhei o sinal, levantei o olhar: lá estava a fera, à espreita, prontíssima a me devorar! Sua roupa vermelha alardeava ainda mais suas intenções - não segundas, mas primeira e única: me derrubar ali mesmo. (Se o momento não fosse tão trágico, eu teria rido: aquele leão vestido de vermelho era uma pantomima ridícula de uma tourada servilhana, fazendo da avenida uma arena, certamente esperando ansioso o Olé da multidão!).
Atônita pela surpresa, recuei. O pé voltou em câmera lenta para a calçada e meus olhos relâmpagos relancearam ao redor para ver se alguém estava tomando alguma atitude. Nada. Ninguém deu a mínima para o leão, todos passaram a faixa tranquilamente, prestando atenção aos carros, ao semáforo e tomando cuidado para não atrapalhar a travessia do outro.
O leão lá. Claro agora que o alvo era eu. Mas, o que diabo aquele leão teria contra mim? Não o conhecia, nunca o vira mais magro, mais gordo, menor ou maior! Seu olhar feroz (claro que só podia ser feroz!) congelava-se em mim, e, indiferente ao movimento da rua, ele ficou lá na outra ponta da avenida me esperando.
E agora, José? Parada, comecei a considerar uma estratégia de defesa, porque eu tinha que atravessar a rua, não havia outro caminho a seguir. Percebi que em minhas mãos não havia coisa alguma para jogar naquela fera. Na bolsa, os costumeiros papéis, caneta, celular, uma pasta sob o braço e dentro dela mais papéis e um livro fininho de capa vermelha com um general diante de um espelho. Bem que aquele general, na ficção um exímio caçador, poderia sair dali e me ajudar! O tempo do sinal aberto aos pedestres nunca me pareceu tão longo e intuí que minha saída era aproveitar o sinal verde aos carros e sair correndo por entre eles.
Entre correr por entre carros e correr o risco de morrer atropelada, e ficar parada e correr o risco de ser devorada, era preferível correr, cair e acordar no hospital (porque do ataque leonino eu não sairia inteira, não sob aquelas garras e dentes!).
Fiquei firme, respirei pronta para tomar impulso tal qual um corredor. O sinal abriu, os carros começaram a se movimentar. No primeiro passo, ergui os olhos para ver a posição do leão. O desgraçado também tinha se movimentado e estava no meio dos carros vindo na minha direção. Que merda! E agora? Se ele queria briga, agora ia ter de verdade!
Subi novamente na calçada, caminhei até a faixa e esperei o sinal fechar. Levantei a cabeça e encarei o leão. Ele, o provocador, tinha feito os mesmos movimentos e de lá me desafiava a atravessar (descarado, sentara tal qual a Esfinge guardando certamente a tumba de um faraó – quer dizer, eu dali a poucos minutos!).
O sinal fechou, segurei bem meus pertences, levantei a cabeça e comecei a travessia. O leão parado. E eu atravessando. Parecia que naquela avenida, antes barulhenta e quente, instalara-se de repente um silêncio prenunciando a tragédia, esfriando o sangue de todos para um espetáculo romano em pleno Coliseu. Ao chegar perto do leão, ele se ergueu vagarosamente, balançou a cabeça como cachorro depois do banho e me entregou um papel, sumindo dentro de mim.
Entre desespero e alívio, virei sobre mim mesma e não vi nada. O sinal abriu, os carros passaram, as pessoas esbarravam em mim e eu à procura do leão. Na mão, o papel. Na segurança da calçada, abri o papel e nele estava escrito: "Posso me olhar sem medo de me ver./Já decidi não ajudar no engano./Dói dizer. Mas é preciso./Convivi com centenas, sobretudo/convivi comigo mesmo." (Thiago de Mello).
Que leão safado!

Comentários

Anônimo disse…
Você é foda!!!! Me toca a alma, me deixa de guarda baixa perante tanta sensibilidade... me fez chorar. És minha amiga.
Anônimo disse…
Loba é parente de leão?
Fantástico.
Abraço.
Anônimo disse…
A fera de todas as horas que habita em mim, te elogia!

Parabéns, conseguiu cativá-la!
Fantasma disse…
Fera! Leio tudo, mas este não canso de reler.

Postagens mais visitadas deste blog

Bugol

  Nos idos dos anos 60, os Estados Unidos implementaram um programa de assistência aos países do terceiro mundo denominado de Aliança para o Progresso. Através dele, a população carente recebia alimentos para suprir as necessidades nutricionais, além de recursos financeiros para o desenvolvimento do estado, como casas populares, escolas. Dessa leva, em Natal se construíram o conjunto habitacional Cidade da Esperança e o Instituto de Educação Pte Kennedy, enquanto o navio Hope, ancorado no Porto na Ribeira, distribuía leite em pó e realizava tratamentos médicos e cirurgias que até então eram inacessíveis aos potiguares. O símbolo do programa era um aperto de mãos entre indivíduos, simbolicamente estadunidenses e latinos americanos. Os americanos não estavam preocupados altruisticamente em salvar populações da fome. Estavam muito mais interessados em fazer com que o comunismo não aportasse e conquistasse terrenos por essas bandas. Era o tempo da guerra fria, o mundo polari...

De amOR e de temPO

    Ainda quando estudava o antigo ginasial, uma professora de Português, interessada em que os alunos gostassem de ler e apreciassem os clássicos, passou como tarefa de avaliação uma redação sobre o texto  AMOR MENINO par te II do Sermão do Mandato – mas isso só soube muito depois já na faculdade - do Pe. Antonio Vieira. Agora, imaginem a dificuldade de adolescentes nos idos final dos anos 60 em cumprir essa tarefa. O que sabíamos do amor? Nada. Do tempo muito menos. O amor era em preto e branco nas fotonovelas que eu comprava no sebo na banca da feira livre, hábito também o das minhas amigas com quem trocava livros e revistas, caso contrário não leríamos nada. Apesar dessas imagens de amor, não lembro se as conversas já rondavam assuntos de namoro, casamento. Acho que não, pois éramos àquela época imaturas para tais assuntos. O universo ainda girava em volta de livros, estudar para provas, sorvetes, ouvir música e meninos não faziam parte do grupo. Aliás, eram olhados...

Êh, vida de gado!

Não sei a quantos anos li A Face Oculta de Eva, livro da egípcia Nawal El Saadawi , que falava sobre a situação feminina na Índia, no Egito e em alguns países africanos, principalmente à operação para que das mulheres fosse negado o prazer sexual através da mutilação do clitóris. Prática ainda hoje em voga apesar de tanto conhecimento, tecnologia e da eficiente medicina do nosso tão exaltado século XXI . O livro foi editado no início dos anos 70 e devo ter lido na mesma década. E já naqueles anos fiquei indignada por tal prática acontecer com a decantada liberação feminina em efervescência. No início desse ano li Uma Distância entre nós, da jornalista indiana Thrity Umrigar e, por razões só um pouquinho diferentes, também fiquei indignada. Neste não há mulher sendo mutilada, mas o poder do macho é alarmantemente respeitado, esteja sua conduta certa ou errada. Para completar, li hoje (lá no salão, que é onde encontramos revistas vencidas e completamente dispensáveis) na revista Elle ...

CriAnÇa teM caDa Uma

Ontem em almoço com familiares, minha mãe relembrava a vez que o neto prendera a cabeça entre um cano de orelhão e a parede. Nem ele nem ela lembraram que idade ele tinha, mas ela lembrava como torceu e torceu a cabeça dele para sair daquele sufoco – literal pode se dizer! – e que já estava pensando em chamar o bombeiro para serrar o cano. Nas festas natalinas do ano passado, a filha de uma amiga de uma amiga, sentou-se no colo de Papai Noel lá no Midway e pediu uma bicicleta. O Papai Noel, sem saber das intenções da mãe – principalmente suas condições financeiras – disse para a garota de três anos que talvez ela não ganhasse o que estava pedindo, porque ele tinha muitos pedidos para atender, mas que ela não ficasse triste. Ela ganharia algo, mas ele não tinha certeza que seria uma bicicleta. A garota ouviu, não disse nada, levantou-se e caminhou em direção à mãe. A uma boa distância do Papai Noel virou-se e mandou: - Papai Noel, se você não mandar minha bicicleta, você tá fudido!!! ...

Ecce Homo

  Uma das passagens bíblicas mais conhecida, mesmo pelos que não professam a fé cristã, é a atitude de Pilatos em não assumir a liberdade de Jesus, preferindo entregar essa decisão ao povo, (difundido a expressão latina ecce homo – Eis o Homem) mesmo sabendo que Barrabás tinha crimes comprovados, enquanto Jesus, não. Não ter a coragem de decidir, pondo em risco sua posição diante dos superiores romanos, como também o medo da reação dos que apoiavam Jesus, preferindo demagogicamente levar o povo a acreditar que tinha o poder de decisão, o  fato é um exemplo poderoso do que a omissão, a fraqueza de uma pessoa pode provocar. Pilatos usou da tradição de se soltar um prisioneiro judeu no período que antecedia a páscoa, achou que o povo escolheria o criminoso confesso, ele ficando, portanto, bem com qualquer que fosse a decisão: cumpriria a lei condenando um criminoso, soltaria um inocente. Contrariando as expectativas de Pilatos, o povo decide por Barrabás, condenando Jesus. ...

SuSSuRRo

  A   mão corta a escuridão do quarto no afastar da cortina. A luz do poste lança sombras na parede. Sobre a cama uma indumentária de cigana a contempla. Não sabe como chegara ali.  Sonho.  Como sempre o relógio a acorda às 7 horas. E como de costume, pula da cama, termina de acordar sob o chuveiro, veste-se apressada, come alguma coisa, toma duas xícaras de café para acordar e sai. Não mais que 40 minutos se passara. Faz a maquiagem entre uma parada e outro nos sinais. Sons de buzina, freadas colaboram para o seu despertar. Depois de 40 minutos entre carros, 20 minutos dando voltas no quarteirão em busca de uma vaga, estaciona, desce do carro, bate a porta e caminha em direção ao prédio. Ao atravessar a rua, percebe que está sem bolsa. Assustada, pensa que foi assaltada, mas se dá conta que mal saíra do carro. Sem bolsa, o pensamento pula para a chave. Onde deixara? Dentro da bolsa, dentro do carro. Retorna. Porta destravada, pois a chave ficara na bolsa. No banco...