sábado, junho 16

NaveG(E)aNTE

A sacola lhe pesa nos ombros. Na mão direita mais dois pacotes vagabundos em papel pardo lhe escorregam continuamente forçando-a de vez em quando a empurrar-lhes contra o corpo para não deixá-los cair. As compras se resumiram a um amontoado indigesto de enlatados, porque já não tem paciência, tampouco fogão e gás para cozinhar. Caminha pela rua e conta automaticamente os quadrados da calçada que faltam para alcançar a porta do prédio onde mora.
A sacola lhe pesa, mas não a tira nem por um momento do ombro, embora o peso e a alça fina cortante da bolsa já lhe deixem marcas vermelhas. Ali estão coisas que lhe são o mais precioso que tem e ela não deixa nem por breve minuto a bolsa escapar-lhe do alcance da mão e dos olhos. Ali estão vinte e cinco anos de trabalho.
Ao chegar em casa, abre os pacotes, arruma as coisas no armário, prepara um suco rápido e engole o sanduíche natural que comprara na lanchonete a caminho de casa. Coloca a sacola sobre o sofá e vai tomar um banho quente que possa lhe aliviar o cansaço do dia, deixando-se ficar sob o chuveiro, água e lágrimas se misturando, descendo pelo corpo ralo abaixo.
As lágrimas lhe parecem naturais, pois há muito estavam represadas no peito, contidas pelas obrigações do dia-a-dia, subjugadas à ordem dita a si mesma para não sucumbir àquela sensação dúbia de alívio e tristeza que já vinha sentindo. Agora não há por que não chorar, limpando alma e corpo.
Enxuga os cabelos vigorosamente, veste um velho roupão apesar do calor, abre as janelas e senta-se no chão da sala, puxando para perto a sacola. Antes de abrir, contempla sua forma e percebe que não há tanto ali guardado. Ri de si mesma, censurando-se por ter pensado que vinte e cinco anos era um tempo longo para guardar. Coloca a mão dentro da sacola e tateia os contornos das coisas que lá estão antes de tirá-las e arrumá-las uma a uma no chão. Pensa por um momento o que fará com cada coisa, mas, sem chegar a conclusão alguma, deixa para decidir depois.
De repente, a mão pára. Uma súbita agonia lhe atravessa o peito, deixando-a com medo. O que está ali dentro não lhe é desconhecido, pois ela mesma colocara, porém algo lhe turva a mente, uma sensação de finitude tomando-a por inteiro. Retira a mão da sacola e recosta-se na parede. A boca ressecada e uma súbita tontura são sinais de uma crescente ansiedade. Fecha os olhos e respira profundamente.
De que adianta abrir aquela sacola, alinhando no chão e depois numa prateleira o que ali está?, pensa agoniada. Aquele amontoado de coisas é apenas a parte material dos anos acumulados, são coisas perecíveis que o tempo dali a pouco vai corroer. São objetos que vão lhe atravancar ainda mais as prateleiras já cheias de livros, fotos, esculturas. Não, pensando bem, é melhor não ficar diante de tanta coisa espalhada impregnada de estórias. Basta a lição guardada dentro de si. Bastam-lhe as alegrias, as agonias, as amizades, o riso, o choro sentidos durante todo o tempo e que jamais lhe deixarão.
Levanta-se, fecha a sacola, envolve-a num saco plástico, fechando-o bem. Pendura a bolsa no prego mais alto na área de serviço, deixando à mostra aquele logotipo do lugar que para sempre estará com ela. E lembra de uma canção de Caetano Veloso, cujos versos a remetem ao poeta Fernando Pessoa:
"O barco, meu coração não aguenta
Tanta tormenta, alegria
Meu coração não contenta
O dia, o marco, meu coração, o porto, não
Navegar é preciso, viver não é preciso...".

2 comentários:

Anônimo disse...

Permita-me: acho que eu tenho uma sacola dessas. O problema é que, por muito pouco, ela ainda não estourou. E quando isso acontecer, só Deus sabe.

Como sempre, belas palavras, minha cara.
Abraço.
A propósito, gostei da foto nova.

Fantasma disse...

A coragem de parar requer muito esforço, muito sacrifício, muito sofrimento. Até um dia! Um dia, descobre-se que não parou. Só está trilhando por outro caminho, com outra sacola, com outro propósito. E o fio da vida vai ficando cada vez mais belo, com a nova caminhada trilhada pela tecelã.