Pular para o conteúdo principal

Sol, do re mi fá de chuva

Chove. Aqui, como em toda cidade que raramente chove, quando chove, chove sem preparação. Época já de findo verão e anunciação do inverno. Contudo, aqui não sabemos o que é inverno. Mesmo quando chove, faz calor. Da terra vem uma quentura que cola na pele, pegajosa pele. Quem sabe do inverno é o povo do sertão que vê os açudes sangrando, que aproveita a água do céu para plantar o milho e o feijão colhidos nas festas de São João.
Chove. De repente as ruas são tomadas por guarda-chuvas, passos apressados que pulam poças de água. Aqui, como em toda cidade que raramente chove, quando chove, o que se vê são ruas enlameadas, barracos encosta abaixo, velhas árvores desabando sobre carros. Somos uma cidade com vocação para o sol, daí negar que um dia choverá. A espera da chuva se faz sem crença.
Chove. A tarde se apresenta num lusco-fusco que cintila nas lâmpadas de mercúrio que conferem às ruas um ar fantasmagórico em meio à água que cai. Na calçada, a moça se desvia do banho irresponsável do motorista em velocidade espanando água pra todo lado. Na bicicleta, o rapaz mal se equilibra tentando proteção sob uma inusitada sombrinha.
Chove. Nesses tempos a água não cai mais de calhas oferecendo às crianças um banho de bica na chuva. Quem se molha é quem desprevenido não acreditou. Não há criança soltando barcos de papel na correnteza formada de rua em rua. O asfalto impossibilita o rio de outrora. É da janela que ela vê a chuva, agasalhada como se em pleno ártico.
Chove. Sem ter janela, o papelão retirado do supermercado se transforma em piso, parede e telhado debaixo da laje. Toda uma gente se agrega em espaços escuros fugindo d’água. Diferente água que dia após dia escava a vida em lagoas.
Chove. Não haverá demora nessa água. A manhã trará o sol e da chuva uma lembrança apenas na areia marcada, brilho nas calçadas, uma notícia a mais no jornal. O agasalho de tricô guardado, papelão dobrado no armazém por empréstimo. O rio aprisionado em suas margens ao longe divisa a ponte entrada de mar.

Comentários

Anônimo disse…
E não existe nada melhor do que um banho de chuva no terreiro, se houvesse terreiro.
Saudades de morar no sítio, quando chovia, nós quatro, os menores, filhos de mãe, pisáva-mos a terra branca e molhada. Um cheiro ímpar. Infância com chuva e terreiro.

Abraço, Ednice. Sempre grata pelas palavras.
Anônimo disse…
Nos noticiarios tem-se visto a tragédia das enchentes no nordeste.
Quanto desequilíbrio tem assolado este nosso planeta!
Acho que a culpa é de tanto pedir a deus pra mandar chuva: ele demora, mas ele atende, e como!!!
Besitos! Gsine.
Fantasma disse…
Não sabia que vc morava em Salvador. Talqualmente...

Postagens mais visitadas deste blog

Bugol

  Nos idos dos anos 60, os Estados Unidos implementaram um programa de assistência aos países do terceiro mundo denominado de Aliança para o Progresso. Através dele, a população carente recebia alimentos para suprir as necessidades nutricionais, além de recursos financeiros para o desenvolvimento do estado, como casas populares, escolas. Dessa leva, em Natal se construíram o conjunto habitacional Cidade da Esperança e o Instituto de Educação Pte Kennedy, enquanto o navio Hope, ancorado no Porto na Ribeira, distribuía leite em pó e realizava tratamentos médicos e cirurgias que até então eram inacessíveis aos potiguares. O símbolo do programa era um aperto de mãos entre indivíduos, simbolicamente estadunidenses e latinos americanos. Os americanos não estavam preocupados altruisticamente em salvar populações da fome. Estavam muito mais interessados em fazer com que o comunismo não aportasse e conquistasse terrenos por essas bandas. Era o tempo da guerra fria, o mundo polari...

ReiNo TriVial?

  Tenho algumas lembranças do tempo de Faculdade quando cursava Licenciatura em Letras e tinha como disciplinas Literatura Brasileira e Estrangeira. As aulas eram no recém criado Campus da UFRN, o Setor II ainda sem as edificações vizinhas, constituindo-se em um quase deserto. Muitos dos professores eram recém chegados de Mestrados e Doutorados fora de Natal, alguns do exterior. O ensino era na base das aulas expositivas, seminários e ainda não era obrigatória a apresentação de trabalho final, TCC. Alguns deles marcaram minha trajetória acadêmica, embora não a profissional, pois esta só se firmou quando, pelas circunstâncias, precisei ingressar na função docente. A professora Jacirema da Cunha Tahim ensinava Teoria Literária e impossível não lembrar os contos de Clarice Lispector estudados. Daí a minha paixão pela escrita da autora, a lembrança mais resistente sendo o conto Tentação , de cujo início nunca esqueci: “Ela estava com soluço. E como se não bastasse a claridade das...

Ecce Homo

  Uma das passagens bíblicas mais conhecida, mesmo pelos que não professam a fé cristã, é a atitude de Pilatos em não assumir a liberdade de Jesus, preferindo entregar essa decisão ao povo, (difundido a expressão latina ecce homo – Eis o Homem) mesmo sabendo que Barrabás tinha crimes comprovados, enquanto Jesus, não. Não ter a coragem de decidir, pondo em risco sua posição diante dos superiores romanos, como também o medo da reação dos que apoiavam Jesus, preferindo demagogicamente levar o povo a acreditar que tinha o poder de decisão, o  fato é um exemplo poderoso do que a omissão, a fraqueza de uma pessoa pode provocar. Pilatos usou da tradição de se soltar um prisioneiro judeu no período que antecedia a páscoa, achou que o povo escolheria o criminoso confesso, ele ficando, portanto, bem com qualquer que fosse a decisão: cumpriria a lei condenando um criminoso, soltaria um inocente. Contrariando as expectativas de Pilatos, o povo decide por Barrabás, condenando Jesus. ...

De amOR e de temPO

    Ainda quando estudava o antigo ginasial, uma professora de Português, interessada em que os alunos gostassem de ler e apreciassem os clássicos, passou como tarefa de avaliação uma redação sobre o texto  AMOR MENINO par te II do Sermão do Mandato – mas isso só soube muito depois já na faculdade - do Pe. Antonio Vieira. Agora, imaginem a dificuldade de adolescentes nos idos final dos anos 60 em cumprir essa tarefa. O que sabíamos do amor? Nada. Do tempo muito menos. O amor era em preto e branco nas fotonovelas que eu comprava no sebo na banca da feira livre, hábito também o das minhas amigas com quem trocava livros e revistas, caso contrário não leríamos nada. Apesar dessas imagens de amor, não lembro se as conversas já rondavam assuntos de namoro, casamento. Acho que não, pois éramos àquela época imaturas para tais assuntos. O universo ainda girava em volta de livros, estudar para provas, sorvetes, ouvir música e meninos não faziam parte do grupo. Aliás, eram olhados...

SuSSuRRo

  A   mão corta a escuridão do quarto no afastar da cortina. A luz do poste lança sombras na parede. Sobre a cama uma indumentária de cigana a contempla. Não sabe como chegara ali.  Sonho.  Como sempre o relógio a acorda às 7 horas. E como de costume, pula da cama, termina de acordar sob o chuveiro, veste-se apressada, come alguma coisa, toma duas xícaras de café para acordar e sai. Não mais que 40 minutos se passara. Faz a maquiagem entre uma parada e outro nos sinais. Sons de buzina, freadas colaboram para o seu despertar. Depois de 40 minutos entre carros, 20 minutos dando voltas no quarteirão em busca de uma vaga, estaciona, desce do carro, bate a porta e caminha em direção ao prédio. Ao atravessar a rua, percebe que está sem bolsa. Assustada, pensa que foi assaltada, mas se dá conta que mal saíra do carro. Sem bolsa, o pensamento pula para a chave. Onde deixara? Dentro da bolsa, dentro do carro. Retorna. Porta destravada, pois a chave ficara na bolsa. No banco...

Vai de RetRO

Tem gente demais atrapalhando a vida de outros. Na hora de fazer o trabalho, não faz. Não sugere, não oferece críticas para melhorar.Trabalho realizado, concluído, fala. Reclama disso, desse, daquele e daquilo. O mar está todos os dias no mesmo lugar. As ondas vão e vêm. As fases da lua influem no movimento das ondas. Mas, as ondas não deixam de ir e vir. Seguem. Esperam que o mar continue favorecendo o movimento. Esperam que as areias se acomodem e se agitem no fundo do mar. Ou na praia. Esperar pelo outro é bobagem. O outro é o outro, sempre. Não se muda o mau caráter. O normal para ele é o de agitar a praia onde o outro se deita e se banha. Para ele é melhor enlamear a água, jogar areia e esperar a onda levar. De preferência para longe, para nunca mais. Não pensa que ele também é mar, é onda, é areia. Não pensa que um dia a maré não estará para tubarão, que ele pensa ser. Não se vê peixe em um grande cardume. O movimento do mar é inexorável. Nada para. Pode chover, pode fazer sol. M...